terça-feira, 28 de abril de 2015

A difícil reconciliação entre turcos e armênios

No último dia 24 de abril, publicamos aqui um artigo sobre o centenário do genocídio armênio. O jornal britânico The Independent trouxe naquele dia, também, um excelente artigo de Robert Fisk que traça um panorama histórico detalhado do conflito e aponta a estreita porta que ainda pode ser aberta para uma reconciliação entre turcos e armênios.

O artigo foi traduzido e publicado no Carta Maior:

Genocídio Armênio: Os perigos da negação

Me lembro de uma senhora armênia descrevendo como militares turcos ateavam fogo a pilhas de bebês vivos. Até quando a Turquia negará o genocídio?

Às sete da noite desta sexta-feira, um grupo de homens e mulheres muito valentes se reuniu na Praça Taksim, no centro de Istambul, para organizar uma comemoração sem precedentes, e ademais comovedora. Homens e mulheres, turcos e armênios, se reuniram para recordar os mais de 1,5 milhão de cristãos armênios, homens, mulheres e crianças, assassinados pelos turcos otomanos no genocídio de 1915. Esse Holocausto armênio – o precursor direto do Holocausto judeu – começou há cem anos atrás, a poucos metros dessa mesma Praça Taksim, quando o governo da época sequestrou centenas de intelectuais e escritores armênios de suas casas e os preparou para a morte e a aniquilação de seu povo.

O Papa também irritou os turcos otomanos, ao classificar este – o mais terrível massacre da Primeira Guerra Mundial – como um ato de maldade, e um genocídio, por que isso era: uma deliberada e planejada operação para erradicar uma etnia. O governo turco – mas, graças a Deus, não todos os turcos – se mantiveram negando esse capítulo da história através dos tempos, de forma petulante e infantil, baseados na versão de que os armênios não foram mortos segundo um plano (a antiga desculpa de que “havia caos devido à guerra e não se podia ter controle sobre as consequências”), e que a palavra “genocídio” foi concebida somente depois da Segunda Guerra Mundial, e que aplicá-la sobre um caso anterior seria inadequado. Seguindo essa lógica, a Primeira Guerra Mundial não deveria ser a Primeira Guerra Mundial, já que não foi chamada de “Primeira Guerra Mundial” naquele momento.

Dois pensamentos vêm à mente, então, neste centenário da carnificina, da violação massiva e dos assassinatos de crianças em 1915. O primeiro é que, para um poderoso governo, de uma forte – e valente – nação europeia e da OTAN, como é a Turquia, continuar negando a verdade desta massiva crueldade humana significa que vale a pena insistir numa mentira criminosa. Contudo, mais de 100 mil turcos descobriram que têm avós armênias, ou bisavós – as mesmas mulheres sequestradas, escravizadas e estupradas nas marchas da morte, que partiram de Anatólia até o deserto da Síria – e os próprios historiadores turcos (desgraçadamente, não em quantidade suficiente) agora apresentam as provas documentadas detalhada das sinistras ordens de extermínio emitidas por Talat Pasha desde a capital antes conhecida como Constantinopla.

Entretanto, qualquer um que se oponha à negação do genocídio por parte do governo termina sendo vilipendiado. Durante quase um quarto de século, venho recebendo cartas de turcos sobre minhas opiniões a respeito do genocídio. Comecei em 1992, cavando com minhas próprias mãos os ossos e crânios de armênios massacrados fora do deserto da Síria. Alguns poucos correspondentes queriam expressar seu apoio. A maioria das cartas eram quase malignas. E temo que a contínua negação do governo turco poderia ser tão perigosa para a Turquia, como é a indignação dos descendentes armênios das vítimas. Me lembro de uma senhora armênia, bastante velha, descrevendo para mim como ela viu os militares turcos fazendo pilhas de bebês vivos para depois atear fogo sobre eles, e que os gritos que se escutavam depois eram como o som de suas almas indo ao céu. Não é exatamente isso – além da escravidão das mulheres – o que o Estado Islâmico (EI) está cometendo hoje contra seus inimigos étnicos, exatamente do outro lado da fronteira turca? A negação está cheia de perigos.

E nos podemos perguntar o que aconteceria se o atual governo alemão afirmasse que qualquer demanda para reconhecer os “eventos” de 1939-1945 – nos quais seis milhões de judeus foram assassinados – como um genocídio se tratava somente de “propaganda judia” e “mutilação da história e da lei”. Porém, isso é mais ou menos o que o governo turco disse na semana passada, quando a União Europeia pediu que o país reconhecesse o genocídio armênio. Para o Ministério de Relações Exteriores turco, a UE havia sucumbido à “propaganda armênia” sobre os “eventos” de 1915, e acabou “mutilando a história e a lei”. Se a Alemanha houvesse adotado tais imperdoáveis palavras sobre o Holocausto judeu, seriam tantos gases saindo dos escapamentos dos veículos diplomáticos em Berlim que não permitiria que as autoridades do país pudessem ver a debandada dos embaixadores de todos os países do mundo.

Porém, a pequena e valente comemoração desta sexta-feira na Praça Taksim é um sinal para a grande parte do mundo ocidental que se reunirá com os líderes turcos a poucos quilômetros de Istambul para honrar os mortos de Gallipoli, a extraordinária e brilhante vitória de Mustafá Kemal sobre os aliados, em 1915, na Primeira Guerra Mundial. Quantos deles recordarão que, entre os heróis turcos lutando pela Turquia em Gallipoli, havia um certo capitão armênio, Torossian, cuja própria irmã seria uma das vítimas do genocídio?

Minha intenção era a de informar sobre a comemoração em Taksim em companhia de amigos turcos. Mas o segundo pensamento que me vem à mente –e os amigos armênios que me perdoem – é que não estou muito interessado no que os armênios dizem e fazem neste centésimo aniversário. Quero saber o que pensam em fazer no dia seguinte ao do centésimo aniversário. Os sobreviventes armênios – os que puderam recordar – já estão todos mortos. Em 30 anos mais, os judeus de todo o mundo vão a encarar essa mesma profunda tristeza, quando seus últimos sobreviventes desapareçam do mundo, junto com seus testemunhos. Mas os mortos podem continuar vivendo, sobretudo quando seu estado de vítima é negado – uma maldição que os obriga a morrer uma e outra vez. Minha sugestão é que os armênios deveriam, agora, elaborar uma lista dos valentes turcos que salvaram suas vidas durante a perseguição de seu povo. Há pelo menos um governador de província, e alguns soldados e policiais turcos, que arriscaram suas próprias vidas para salvar os armênios naquele momento horrível da história turca. Recep Tayyip Erdogan, o primeiro-ministro triunfalista da Turquia, falou de sua dor pelo que aconteceu com os armênios, sem deixar de negar o genocídio. Se atreveria a negar o respaldo a um livro de homenagem às vítimas do genocídio armênio que trouxesse também uma lista dos valentes turcos que tentaram salvar a honra de sua nação em sua hora mais obscura?

Venho insistindo há anos sobre essa ideia com meus amigos armênios. Propus também aos armênios da comunidade em Detroit, na semana passada. Honrar os bons turcos. Infelizmente, todos aplaudem, mas não dizem nada.

* Jornalista e escritor britânico com sede em Beirute, premiado várias vezes por seu trabalho sobre o Oriente Médio. É um dos poucos repórteres ocidentais que fala árabe fluentemente. The Independent do Reino Unido. Especial para Página/12 da Argentina, 23.04.15.



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