domingo, 23 de março de 2008

Carta aos Romanos - 14

Ainda sobre os dois primeiros versículos do capítulo 12 da Carta de Paulo aos Romanos, eu gostaria de deixar registrado aqui um comentário muito interessante de Calvino sobre o trecho em questão, nas suas Institutas:

CAPÍTULO VII

A SUMA DA VIDA CRISTÃ. ONDE SE TRATA DA RENÚNCIA PESSOAL

1. PERTENCEMOS A DEUS, NÃO A NÓS, PARA QUEM TEMOS DE VIVER E MORRER, EM CRISTO E PELO ESPÍRITO.

Ainda que a lei do Senhor tenha mui excelente e de forma mui conveniente formulado sistema de regular-se a vida cristã, contudo, pareceu bem ao Mestre celestial conformar os seus à própria regra que prescrevera na lei, buscando formulação ainda mais precisa. Aliás, desta formulação, o princípio é este: que é dever dos fiéis "apresentar seus corpos a Deus por sacrifício vivo, santo e a ele aceitável", e este é o fundamento do culto legítimo [Rm 12.1]. Daí se segue a exortação de "não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação de vossa mente, para que experimenteis qual seja a vontade de Deus" [Rm 12.2].

Ora, é um ponto transcendental saber que estamos consagrados e dedicados a Deus, para que não cogitemos nada além disso, nem falemos ou meditemos, ou façamos a não ser para sua glória, pois o sagrado não se aplica a usos profanos sem grave ofensa a ele. Ora, se não nos pertencemos, mas ao Senhor, faz-se patente que se deva evitar não apenas o erro, mas ainda a que fim devemos dirigir todas as ações de nossa vida; portanto, não nos pertencemos em nossos planos e ações, nossa razão não deve estar no comando, e muito menos nossa vontade; portanto, não nos pertencemos e nem nos proponhamos a buscar o que nos convenha segundo a carne; portanto, não nos pertencemos, e, até onde seja exeqüível, esqueçamos a nós mesmos e a tudo que é nosso.

Pelo contrário, somos de Deus; logo, vivamos e morramos para ele [Rm 14.8]. Somos de Deus; logo, que sua sabedoria e vontade presidam a todas as nossas ações. Somos de Deus; logo, que todas as expressões de nossa vida se polarizem para ele como a um só fim legítimo. O quanto de proveito tem experimentado aquele que, ensinado que não é dono de si mesmo, anulou sua própria razão, soberania e mandato, para que Deus de tudo se aproprie! Ora, como a peste mais eficaz é fazer com que os homens se percam, quando se conformam a suas próprias inclinações, assim o único porto de salvação é nada saber, nem por si mesmo querer, senão tão-somente seguir ao Senhor, indo ele à frente [Rm 14.8].

Portanto, este é o primeiro passo: que o homem se desprenda de si mesmo, para que aplique ao serviço do Senhor toda a força de seu entendimento. Chamo serviço não apenas ao que permanece na obediência da Palavra, mas ainda àquele pelo qual a mente do homem, esvaziada do próprio senso da carne, se volta todo ao arbítrio do Espírito de Deus. Esta transformação, que Paulo chama de renovação da mente [Rm 12.2; Ef 4.23], embora seja o acesso primordial à vida, todos os filósofos a ignoraram. Pois eles só consideram a razão como moderadora ao homem, julgam que só a esta se deve ouvir, afinal unicamente a esta única consentem e entregam o governo da forma de proceder. A filosofia cristã, porém, ordena que ela deve ceder lugar, sujeitar-se e ser submissa ao Espírito Santo, de sorte que o homem em si já não viva, mas que deixe Cristo viver e reinar em sua vida [Gl 2.20].

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, pp. 161-162)

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