domingo, 9 de março de 2008

Leis escritas e tradição (m)oral

No forum Atos, discutindo sobre a lei mosaica, um dos debatedores disse que Moisés teria se inspirado no Código de Hamurabi para compor os seus mandamentos, insinuando que ele teria que pagar royalties a Hamurabi, como se isso fosse assim uma tese absolutamente inédita (veja o tópico clicando aqui). Isto me levou a fazer uma viagem retrô aos velhos e bons tempos do direito primitivo, conforme explico a seguir.

Primeiramente, mesmo que Moisés tivesse se inspirado no Código de Hamurabi, isto não teria nenhum problema. A Bíblia nunca se pretendeu original, e, mesmo que os cristãos a entendam inspirada por Deus, ela foi feita para o planeta Terra, e não para Marte, logo trata de problemas comuns a várias culturas de várias regiões em várias épocas. O mesmo pode se dizer em relação à legislação civil moderna, que decorre quase que toda ela do Código Civil francês de 1804, chamado de "Código de Napoleão", mas nem por isso os governos do mundo todo pagam royalties à França.

Em segundo lugar, o Código de Hamurabi é eminentemente civil, ainda que prescrevesse algumas penas para crimes, mas naquela época não havia essa divisão entre direito civil e criminal, como vemos hoje. Para ir mais fundo, não havia nem Direito como o entendemos hoje, e o que havia era uma regulação de atividades essenciais à vida em comunidade, que nem pode se chamar de "legislação" ou de "direito" no sentido moderno das palavras. Já a lei mosaica é eminentemente religiosa, e mesmo que tivesse "tomado emprestado" normas civis de civilizações contíguas ou anteriores, o seu propósito era organizar a vida em sociedade de maneira espiritual.

Deve-se lembrar, também, que o "ideal político" da Bíblia (se podemos chamar assim), quando da formação da nação de Israel (e aqui estou também laborando conscientemente em equívoco, pois "Estado", "nação" e país são conceitos modernos que não se aplicam àquela época), era a formação de uma teocracia, em que o povo seria comandado por Deus e seus sacerdotes, havendo periodicamente a aclamação de juízes que funcionariam como líderes de todo o povo. E, neste sentido, a Bíblia foi muito avançada para a sua época, já que um dos primeiros juízes foi, na verdade, uma juíza, Débora, regendo os destinos de Israel por determinado período, o que era algo impensável nas tribos e culturas vizinhas. Somente depois de um longo tempo, é que o povo de Israel pediu um rei, para seguir o exemplo dos seus vizinhos, sendo que aí Deus deu-lhes o rei Saul e assim começa a fase da monarquia. Percebe-se, portanto, que a Bíblia não proíbe que se "copie" os regimes civis e políticos dos países vizinhos, porque não há nenhuma vergonha em fazer isso, tanto que a monarquia foi instaurada em Israel pelo desejo de se seguir um modelo típico dos reinos vizinhos (1 Samuel 12).

Em terceiro lugar, há um equívoco que muita gente comete, o que também não é nenhuma vergonha, porque ninguém é obrigado a saber isso, mas não se pode imaginar que só houvesse direito escrito na época. Mesmo hoje, muita gente imagina que só existe lei quando ela está escrita, e o sistema costumeiro britânico é a maior prova de que as leis não precisam estar escritas, pois há princípios fundamentais que são aplicados caso a caso no sistema do direito anglo-saxão, tanto que soa estranho alguém dizer que "leu a Constituição da Inglaterra", porque são os juízes que decidem o que é constitucional ou não lá, o que é lícito ou ilícito, e isto com base nos costumes arraigados naquela cultura há vários séculos, mas nem por isso deixam de adaptá-los às necessidades modernas. Logo, o Código de Hamurabi era uma feliz inscrição em pedra das leis vigentes naquele tempo e local, mas ele também já devia se basear numa tradição oral cuja origem se perdeu na poeira da Mesopotâmia, e era comum a todos os povos da região. Não foi o Hamurábi que reuniu a galera um dia e disse: "Moçada... me bateu um ataque de originalidade hoje... vamos inventar umas leis aqui e vamos escrevê-las na pedra!". As leis até hoje são apenas um reflexo do patrimônio moral e civilizatório que todos trazemos, de alguma maneira, impregnados no nosso inconsciente coletivo, por assim dizer. Este tema é muito vasto, controverso e ainda pouco conhecido. Recomendo, portanto, a leitura dos artigos que estão nesse tópico.

Logo, ninguém pode afirmar com certeza, como alguns pretendem, que Moisés tenha de fato se inspirado no Código de Hamurabi, que é apenas a manifestação pontual de uma cultura jurídica ainda incipiente numa determinada região do globo em certa época, e nada mais do que isso. É altamente improvável que fosse original no sentido de que apresentou "leis" novas, distintas daquelas que a tradição oral do povo já apontava como obrigatórias ou recomendáveis para a vida em sociedade naquela região específica. Muitos capítulos de Gênesis trazem algumas práticas tribais antigas, como o direito de pasto do gado, a vida peregrina dos clãs em seus contatos com outros clãs e aldeias, o direito de poços de água numa terra árida, a primogenitura, o direito de um local de sepultura, enfim, uma série de "pequenos" direitos cotidianos que se foram estruturando ao longo do tempo, sem nenhuma pretensão de ineditismo ou exclusividade.

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