terça-feira, 18 de março de 2008

O evangelho de Lucas - parte 9

No capítulo 8, Lucas aborda dois temas que lhe são muito caros, começando a dar-lhes a especial atenção que caracterizará os capítulos seguintes: as mulheres e as parábolas. Primeiramente, registra a presença de "algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades", entre elas Maria Madalena (da qual saíram sete demônios); Joana, mulher de um procurador (uma espécie de administrador financeiro) de Herodes, e Susana. Madalena era de Magdala, um pequeno vilarejo entre Cafarnaum e Tiberíades. O primeiro aparecimento do seu nome em Lucas, logo após o relato da mulher pecadora (prostituta) do final do capítulo 7, fez com que, por muito tempo, Maria Madalena fosse confundida (às vezes propositalmente) com a prostituta que havia enxugado os pés de Jesus com os cabelos. Sobre Joana e Susana nada se sabe além do que Lucas aqui escreve. Joana será citada novamente junto com Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, por ocasião da ressurreição (Lucas 24:10). Muito provavelmente eram mulheres muito importantes no ministério de Jesus, pois Lucas faz questão de reforçar que muitas delas acompanhavam os discípulos ou, ainda, sustentavam economicamente o grupo. O fato do marido de Joana ser citado, e ter uma excelente posição social para a época, não deixa de ser, também, um testemunho claro aos leitores de Lucas de que aquela história era efetivamente verdadeira, e havia como comprová-la com as fontes indicadas.

Curiosamente, embora seja o evangelista que mais cita mulheres, Lucas é o mais econômico ao citar Maria Madalena; faz isso apenas duas vezes (Mateus cita 3 vezes; Marcos, 4; João, 3). Madalena era, certamente, muito influente no grupo, e muito importante para Jesus, tanto que ela é a primeira a vê-lo ressuscitado (Marcos 16:9). Talvez o fato dela ter sido exorcizada por Jesus tenha influído na sua credibilidade como testemunha da ressurreição diante dos apóstolos e discípulos (Marcos 16:10, Lucas 24:11), que nela não acreditaram e a julgaram vítima de "delírios". O argumento de que Pedro teria, de alguma maneira, ficado incomodado com a presença dela não se justifica se analisarmos que Marcos é o evangelista mais próximo a Pedro e o que dá a ela mais importância. Lucas, entretanto, a ignora no relato de Atos. Ao que parece, se Madalena podia incomodar algum apóstolo, provavelmente seria Paulo. Mesmo desaparecendo dos atos dos apóstolos, Maria Madalena deve ter tido muita importância para os primeiros cristãos, já que até um evangelho apócrifo lhe foi atribuído. Paulatinamente, vai diminuindo a importância que as mulheres haviam tido durante o ministério terreno de Jesus, e a Igreja institucionalizada tende a reproduzir as condições sócio-culturais da civilização em que estava inserida, ou seja, à mulher cabia funções subalternas e subservientes aos homens, a quem cabia o poder. Começa, portanto, a descida de Madalena ao inferno da liturgia e da hierarquia eclesiástica. Aos poucos, ela vai perdendo sua importância, chegando a perder a própria reputação, ao confundirem-na (propositalmente, a meu ver) com a prostituta de Lucas 7. Assim ela é retratada numa homilia do papa Gregório I no ano 591. Esta situação vai perdurar por muitos séculos, até que em 1969, finalmente, a Igreja Católica desfaz o "engano" milenar. A razão para esse, digamos, "descuido", me parece muito mais uma medida ideológica para desvalorizar a mulher dentro da hierarquia da Igreja do que propriamente uma teoria da conspiração, como quis fazer-nos crer Dan Brown em seu "Código da Vinci".

Nos versículos seguintes, Lucas se concentra no outro tema que lhe agrada muito: as parábolas. Como a Bíblia anotada por Russel Shedd ensina, "parábola" vem do grego παραβολή (parabolē), "comparação", que literalmente significa "lançar duas coisas semelhantes uma contra a outra". Ainda segundo Shedd, "significa colocar uma coisa ao lado da outra para estabelecer a semelhança ou distinção. Nos lábios de Jesus, veio a ser método especial de usar histórias terrenas para desvendar verdades espirituais àqueles que se entregam a Ele. Um dos motivos era atingir os simples, fixar as verdades nas mentes dos ouvintes (Mc 4.3), e sobretudo distinguir entre as pessoas de boa fé que queriam aprender, e as demais que ivessem zombar ou discutir (cf. Is 6.9-10)". Assim, Lucas relata duas parábolas em seguida, a do semeador (vv. 4-8) e a da candeia (vv. 16-18), intermediadas pela explicação da primeira (vv. 9-15), da mesma maneira como haviam feito Mateus (13:1-23) e Marcos (4:1-20). Apenas algumas parábolas tiveram explicação detalhada da parte de Jesus (a do joio e do trigo, por exemplo - Mateus 13:24-40, 36-54). A intenção de Jesus, me parece, que é aquela que Russel Shedd apontou na sua definição de parábola, ou seja, atingir os simples de coração e afastar os escarnecedores e mal intencionados. Assim, nas palavras de Jesus, "fala-se por parábolas para que, vendo, não vejam; e, ouvindo, não entendam" (Lucas 8:9). Obviamente, Jesus não estava querendo ser incomunicável ou fazer-se propositalmente ininteligível. Os fariseus se julgavam superiores pelo seu nível de instrução e treinamento religioso, e devem ter ficado espantados por se depararem com alguém que sabia, como ninguém, dominar as palavras. Devem ter se preocupado com a afirmação de Jesus de que "nada há oculto, que não haja de manifestar-se, nem escondido, que não venha a ser conhecido e revelado" (v. 17). O Mestre sabia, como sabemos hoje, que inteligência não é exatamente a capacidade de acumular conhecimento, mas de associar idéias, e isso independe do nível social da pessoa.

Em seguida, Lucas narra a presença de "sua mãe e seus irmãos", que vieram ter com Jesus (v. 19) e não podiam vê-lo por causa da multidão. Ele lhes dá uma resposta que soa mal educada, de que sua mãe e seus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam (v. 21), mas de alguma maneira Jesus estava colocando as coisas no seu devido lugar. É óbvio que a família lhe era importante, tanto que Maria estava aos pés da cruz, mas aquele era o momento do seu ministério público, em que seus parentes deviam se conformar com um lugar mais abaixo na Sua lista de prioridades, embora sua própria família não acreditasse na sua vocação messiânica nessa época (João 7:5) e achasse que ele estava fora de si (Marcos 3:21, 31-32). Marcos 6:3 cita o nome de 4 dos irmãos, Tiago, José, Judas e Simão, além de suas irmãs. A tradição católica diz que os "irmãos" de Jesus eram, na verdade, seus primos ou filhos de um primeiro casamento de José, e não propriamente irmãos, já que Maria teria sido perpetuamente virgem. O dogma da virgindade perpétua de Maria vai ser definido pela primeira vez no Concílio de Constantinopla de 553, mas, com todo o respeito aos irmãos católicos, não me parece que seja essencial ao evangelho que Maria fosse eternamente virgem. Se assim o fosse, certamente os evangelhos e as cartas de Paulo teriam afirmado esta condição, mas não é o que ocorre. Assim, me parece, como parece à maioria dos protestantes, que os irmãos a que se refere Lucas no v. 19 eram efetivamente irmãos de sangue, sem desprezar a possibilidade de que fossem filhos de um primeiro casamento de José, embora também não haja qualquer evidência bíblica neste sentido. Entendo a definição do dogma, tal como apresentado pela Igreja Católica, como uma medida muito mais ideológica do que teológica, no sentido de manter a mulher permanentemente dominada pelo poder patriarcal ou marital, dentro do mesmo espírito que norteou a condenação papal de Maria Madalena à prostituição ("aquela que foi sem nunca ter sido"), ou seja, de se valorizar o papel subalterno, angelical, virginal, da mulher numa sociedade eminentemente machista. Não é estranho, entretanto, que isto se dê através de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que se elevam as virtudes de Maria, mãe de Jesus, as mulheres, que nela deviam inspirar-se, são rebaixadas na sua condição social.

Há uma tempestade narrada por Lucas nos vv. 22-25, em que Jesus repreende o vento para que a bonança retorne, e, diante do desespero dos discípulos, censura a sua falta de fé. Todos eles vão, então, à terra dos gerasenos (cfe. também Marcos 5:1 ). Aqui há uma controvérsia com o relato de Mateus 8:28, em que as pessoas de lá são chamadas de gadarenos e há dois endemoninhados, em vez de um. Há ainda alguns manuscritos dos três evangelhos sinópticos que trazem ainda o gentílico "gergesenos", havendo também manuscritos de Mateus que trazem a palavra "geraseno". Aparentemente, se trata do mesmo fato e da mesma região, mas há alguma discrepância quanto ao nome e ao relato, embora os estudiosos entendam que tanto Gadara como Gerasa eram cidades situadas a alguns kilômetros da orla, faziam parte da região chamada de Decápolis ("dez cidades" – ver mapa acima/ao lado) e Gerasa era a capital da região em que se encontrava Gadara, e, por isso, o nome podia ser usado tanto de uma como de outra. Quanto ao número dos endemoninhados serem dois ou um, a versão mais aceita é de que eram dois, mas apenas um se adiantou para falar com Jesus. O fato deste geraseno/gadareno "corajoso" reconhecer que Jesus como Filho do Deus Altíssimo (v. 28), e do número de demônios que nele estavam (uma "legião" – v. 30 -, que para os romanos englobava algo em torno de 6.000 soldados) revela alguém em terrível situação de possessão demoníaca, e, talvez por isso mesmo, ousado o suficiente para apresentar-se diante de Jesus, contrastando com a falta de fé que os discípulos haviam demonstrado na travessia do mar da Galiléia (v. 25). Aquela região era habitada por gentios, como se vê no fato de criarem animais considerados impuros pelos judeus, e talvez a rejeição do Mestre naquele lugar se tenha se dado pelo medo de que um grupo de judeus liderado por Jesus, que havia provocado a morte de boa parte de sua manada, viesse a lhes causar mais prejuízos. Entretanto, o homem que antes vivia nu nos sepulcros, e agora estava livre dos demônios, "vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus" (v. 35), embora quisesse segui-lO, foi-lhe incumbida a missão de anunciar por toda a cidade (que havia rejeitado tanto a ele como ao Mestre), tudo aquilo que Deus lhe havia feito. Esta é uma história estranha, mas repetitiva, não só quanto ao lado espiritual. Muitas vezes, as pessoas e sociedades inteiras rejeitam o progresso, a cura, o desenvolvimento, o bem-estar, em nome da manutenção de um estilo de vida que não se importa com quem vive e anda nu se machucando pelos sepulcros. Uma grande história com muitos ensinamentos, sem dúvida. Há uma linda meditação de Lloyd John Ogilvie sobre esta passagem, que eu postarei em seguida (ver aqui).

O capítulo 8 de Lucas, como vimos, é pródigo em lições, e termina com mais duas mulheres. O médico Lucas faz questão de salientar que havia 12 anos que a mulher sofria de uma hemorragia incessante, o que a tornava proscrita segundo a Lei mosaica (Levítico 15:25). Tal constrangimento e sofrimento não a impediu, entretanto, de se aproximar da multidão (da qual havia sido excluída) para tocar Jesus. A cena que se segue é encarada com um certo desdém pelos discípulos quando Jesus diz que "alguém" o havia tocado (vv. 45-46): "Mestre, as multidões te apertam e te oprimem e dizes: Quem me tocou?". Vendo a confusão, a mulher toma coragem e se aproxima, no que é recompensada por Jesus que lhe diz que a sua fé a havia salvado. Há outra repercussão digna de nota no comportamento, digamos, espalhafatoso de Jesus ao fazer com que a mulher se expusesse publicamente. Afinal, já havia 12 anos que ela estava excluída da sociedade local, e agora, era necessário um reconhecimento público da sua cura para que ela pudesse ser aceita de volta ao convívio da sua família, dos seus parentes e amigos. A mulher entendeu o que o evangelista também havia feito questão de enfatizar: ela, que não era ninguém pela Lei mosaica, agora havia se transformado em ALGUÉM por e para Jesus.

O chefe da sinagoga local, Jairo, presenciara o acontecimento, e, mal havia Jesus despedido em paz a mulher (v. 49), alguém de sua casa chegou afoito dizendo que não incomodasse mais o Mestre, pois sua filha estava morta. Jesus, ciente da multidão que o acompanhava e da repercussão de suas palavras, diz a Jairo que não se preocupasse, mas que apenas cresse e a menina seria salva. Vão, então, até a casa de Jairo, e somente Pedro, Tiago e João têm autorização para entrar. Diante da afirmação de Jesus de que a menina apenas dormia, a multidão que chorava passa a rir (v. 53), o que não impede Jesus de ressuscitar a menina para espanto geral, ordenando, a seguir, que seus pais não contassem a ninguém o que havia acontecido. Com os gadarenos, Jesus havia preferido a publicidade, agora queria anonimato. Talvez porque uma ressurreição naquele momento poderia apressar demais o ritmo dos acontecimentos e provocar a Sua morte antes do previsto, como de fato ocorreu logo após a ressurreição de Lázaro, que provocou a imediata reunião (e conspiração) do Sinédrio (João 11:46-50).

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