segunda-feira, 31 de março de 2008

Carta aos Romanos - 17

Romanos 14 é um desses capítulos que eu acho que os crentes deviam "recitar" todo santo culto ou toda santa reunião. É um chamado à tolerância e à convivência pacífica entre os irmãos, que se fosse lido periodicamente pela Igreja reunida, a manteria exatamente assim, unida, e evitaria muitas divisões, que geralmente se baseiam na vaidade e no orgulho de apontar (e julgar) no outro a razão para se afastar dele. E esta razão, não raras vezes, está na maneira do outro encarar alguns detalhes menores (às vezes minúsculos) da vida cristã, como o que comer, o que vestir, que dia guardar, o que dizer. A regra de ouro de Paulo é, digamos, um tripé: "cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente" (v. 5), "nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si" (v. 7) e "quer vivamos ou morramos, somos do Senhor" (v. 8). Portanto, devemos acolher os irmãos que são fracos na fé, mas "não para discutir opiniões" (v. 1). Há irmãos que acham que tudo podem comer, inclusive carne, e carne de porco (algo que, para os judeus, era proibido, conforme, em especial, as leis alimentares de Levítico 11 e Deuteronômio 14). Há outros que se escandalizam com isso, e preferem ser vegetarianos (v. 2). É isto motivo para que se afastem uns dos outros? Paulo diz que não, e faz questão de esclarecer duas coisas: o fraco na fé é o que não come de tudo (v. 2) e quem tem a maior responsabilidade na tolerância para com o outro é o forte na fé (v. 1). Entretanto, isto não exime o fraco na fé de, na medida das suas possibilidades racionais e espirituais, procurar aceitar o que come de tudo (v. 3), nem o forte de aceitar o fraco, pois o Senhor é que os sustenta a ambos (v. 5).

A mesma tolerância se deve dar em relação àqueles que fazem diferença entre dia e dia (v. 5). Como vimos no início de Romanos, a Igreja de Romana era composta por uma maioria de pagãos convertidos e uma minoria de judeus e prosélitos também cristãos. Paulo não especifica se está falando sobre o sábado judeu ou domingo cristão, ou se está falando sobre as festas judaicas do Velho Testamento, que provavelmente muitos judeus convertidos ao cristianismo, e que estavam na igreja de Roma, sentiam necessidade de observar os feriados correspondentes àquelas festas. A tradução para aquele que "julga iguais todos os dias" deve ser entendida como "julga santos todos os dias" ou "considera todos os dias santos". Houvesse alguma necessidade de se estabelecer o sábado como o único dia santo, Paulo certamente teria estabelecido isto aqui, mas a maior preocupação dele é fazer com que os judeus que estavam na Igreja de Roma, e ainda estivessem com os seus costumes religiosos arraigados de tal maneira que não conseguissem ter paz de consciência sem observá-los, pudessem ser respeitados pelos seus irmãos que não tivessem este passado, esse, digamos (por falta de melhor palavra portuguesa), background judeu, e também respeitassem-nos (aos gentios) por não observarem os dias sagrados do Velho Testamento. O importante era que cada um tivesse uma "opinião bem definida em sua própria mente" (v. 5), ou seja, de novo a "consciência" opera uma função fundamental na visão de Paulo do que devia ser considerado como certo ou errado pelos cristãos, como veremos mais adiante. Todas as coisas, fossem elas jejum, abstinência, banquetes, festas, dias normais, etc., eram feitas para o Senhor (v. 6) e assim deveriam ser vividos em permanente ação de graças, tolerando as diferenças de usos e costumes de cada grupo dentro da igreja. O lema de Paulo, neste aspecto, era "unidade na diversidade". Os interesses individuais e grupais deviam ser "sacrificados" em nome da tolerância e da união de todos.

De qualquer maneira, e acima de tudo, ninguém deveria ter por objetivo de vida colocar tropeço ou escândalo no caminho do irmão, mas justamente o contrário: evitar que os seus usos e costumes porventura escandalizassem aquele que fosse mais fraco na fé (v. 13). A liberdade cristã não deveria servir de pretexto para excluir o outro, mas para incluí-lo, "porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo" (v. 17). A exemplo de Pedro na visão que teve na casa de Cornélio (Atos 10:10-15), Paulo estava convencido "no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si mesmo impura, salvo para aquele que assim a considera; para esse é impura" (v. 14). De novo, a consciência perante Deus é que deveria determinar o que é puro ou impuro. Ainda nas palavras de Paulo, "bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, porque o que faz não provém de fé; e tudo o que não provém de fé é pecado" (vv. 22-23). Assim, se alguém aprova que se coma de tudo, e tem a consciência tranqüila a respeito disto, não está pecando, mas se tem alguma dúvida, aí peca, pois está se condenando a si mesmo naquilo que aprova para os outros, mas tem um pé atrás no que diz respeito a si mesmo. Dou um exemplo pessoal. Por ocasião do primeiro concílio cristão, o de Jerusalém (Atos 15), na dúvida sobre quais práticas judaicas os gentios deviam observar, o parecer final de Tiago é que os gentios deviam se abster "da carne de animais sufocados e do sangue" (Atos 15:20). Eu, por exemplo, acho a "morcilla" argentina (uma espécie muito melhorada do chouriço brasileiro) uma delícia, mas quando soube que era feita de sangue temperado, fiquei com dúvida em função desse texto, e por ter dúvidas, preferi me abster. Obviamente, esta é uma posição muito pessoal minha, e não posso criticar quem quer que seja que não tenha dúvidas em comê-la, é entre a pessoa e Deus, não cabe a mim julgar. O fato é que o Concílio de Jerusalém foi a primeira tentativa cristã de se harmonizar os distintos costumes dos crentes de diferentes origens, e que estavam a exigir uma padronização mínima de comportamento, em que a liberdade cristã fosse preservada.

Outra decisão do concílio foi que os cristãos deviam se abster "das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas", o que significava não só a impureza sexual que girava em torno de alguns cultos pagãos, mas também das comidas que lhes eram oferecidas em sacrifícios. Esta é uma das razões pelas quais Paulo insiste tanto nesta questão da comida em Romanos 14. Afinal, os cristãos de Roma viviam numa cidade com dezenas de templos dedicados aos deuses de outras tantas religiões pagãs. O sincretismo religioso romano era muito parecido com o grego de Atos 17, em que no Areópago de Atenas havia ídolos de todas as religiões conhecidas pelos gregos, e até um monumento ao "deus desconhecido". Quase todas as religiões pagãs ofereciam comidas e/ou sacrifícios animais aos seus ídolos, e boa parte da carne que sobrava era dividia entre os sacerdotes ou doada aos pobres para que a consumissem. Na mesma época da carta aos romanos, Paulo já havia dedicado um capítulo de sua primeira carta aos coríntios (o 8) à questão das comidas sacrificadas aos ídolos, falando da liberdade cristã e do respeito à consciência do crente fraco (1 Coríntios 8:7-8), e agora ele insistia que os romanos deviam observar a mesma prática e o mesmo respeito. O que importava, realmente, era não destruir "a obra de Deus por causa da comida" (Rom 14:20) e seguir "as coisas da paz e também as da edificação de uns para com os outros", pois "todas as coisas, na verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com escândalo" (vv. 19-20). A fé de cada um deve ser exercida em particular para com Deus (v. 22), sem menosprezar o que o seu irmão pensa, mas, em tudo, tendo a paz, a unidade e a tolerância como objetivos maiores a serem perseguidos, sempre. Como diz Romanos 15:1, "nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos", mas isso é assunto para o próximo texto.

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