Como diria Zagalo, “aí então fomos surpreendidos novamente”... A gente nunca deve menosprezar a possibilidade de ser pego de surpresa por alguma notícia estranha vinda da igreja evangélica brasileira. Leio no blog
Genizah que o pastor presidente da Assembleia de Deus no Estado da Paraíba, João de Deus Cabral, se converteu ao islamismo. A notícia – se verdadeira, há que ressalvar - não chamaria tanto a atenção se não se tratasse de um pastor que, além de ter comandado a Convenção Estadual da maior denominação evangélica no Brasil, foi secretário nacional da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil por 15 anos. É normal que, todo santo dia, pessoas transitem (se “convertam”) de uma religião pra outra (ou à negação dela) no mundo inteiro, afinal o que não falta são religiosos (e ateus) nominais.
Segundo as informações colhidas até o momento, o ex-pastor teria se oposto à doutrina da Trindade, à celebração do Natal, além de acreditar na surrada teoria da conspiração de que Constantino teria sido o, por assim dizer, consolidador da religião cristã . No fundo, cá entre nós, essas são apenas desculpas para quem nunca foi cristão nem entendeu o que significa a cruz de Cristo. Entretanto, estava lá, falando em nome da maior denominação evangélica do Brasil. Por isto mesmo, não deixa de ser uma oportunidade para se avaliar a situação em que se encontra a igreja no país.
Muitos cristãos nominais não se preocupam em – pelo menos – tentar entender o que significa a doutrina da Trindade (e da correlata Encarnação) para o cristianismo. É claro que é uma doutrina inalcançável para a razão humana, mas sem essas duas doutrinas o cristianismo não subsiste, porque não haveria salvação se Jesus – como sendo 100% Deus e 100% homem – não tivesse sido sacrificado em nosso lugar, discussão que procurei aprofundar no texto “
A doutrina da Trindade – Uma Introdução”, ao qual remeto o leitor que busca compreender melhor a sua importância. Com relação à celebração do Natal, cujo antagonismo de alguns evangélicos – como Edir Macedo - tem se tornado uma verdadeira superstição antissuperstição, recomendo a leitura do artigo “
Esclarecimento sobre as origens do Natal”, de autoria do Gustavo, coeditor deste blog. A questão natalina, a meu ver, é mera perfumaria argumentativa, dessas filigranas que servem de desculpa pra qualquer coisa, já que nenhum ramo do cristianismo impõe a seus seguidores a obrigação de celebrar o Natal. Provavelmente, algumas “igrejas” estão querendo evitar que seus fiéis gastem seu dinheiro em presentes de Natal e o destinem aos cofres da organização.
Retornando aos dogmas da Trindade e da Encarnação, eles, entretanto, são decisivos. A atitude de negá-los explica bastante sobre as heresias que saíram da Igreja primitiva, como o nestorianismo e o monofisismo dos séculos V e VI, com resultados parecidos como o que vemos hoje na Paraíba do século XXI, por incrível que pareça. Num brevíssimo resumo, o nestorianismo pregava que havia em Jesus duas naturezas absolutamente distintas, a divina e a humana, de forma que eram dois entes independentes, sem qualquer ligação. Já o monofisismo dizia que havia em Jesus apenas a natureza divina que, digamos, “absorvia” a humana. A doutrina da Trindade, para eles, gravitava em torno das suas doutrinas exóticas da Encarnação, e terminavam por condená-la à morte, conforme exposto no texto
Trindade – Uma Introdução. Essas heresias tiveram enorme influência nas igrejas orientais, em especial na região da península arábica, na qual outra seita já havia florescido, ainda no século II: os ebionistas. O ebionismo, como ensina o historiador cristão Justo L. González (leia o excerto clicando
aqui), foi fortemente influenciado pelo gnosticismo e pelos grupos judaizantes da época, e, em suma, negava a Jesus qualquer divindade, colocando-o no patamar de apenas mais um dos grandes profetas de Deus. González acrescenta: “Ele não era mais o filho unigênito de Deus, mas um mero profeta dentro da sequência de profetas. Ele não era mais o salvador, mas simplesmente um elemento – algumas vezes secundário – da ação de Deus ao longo desta era”. Desta maneira, todo este caldo de cultura com referências cristãs, mas que negava as doutrinas cristãs básicas da Trindade e Encarnação, muito provavelmente terminou influenciando Maomé na fundação do islamismo, para quem Jesus era de fato um dos grandes profetas, mas não o unigênito e todo-divino Filho de Deus. O historiador Paul Johnson, em sua obra clássica “História do Cristianismo” (Ed. Imago, 2001, p. 291 – leia o excerto clicando
aqui) relata que na sua primeira grande vitória, no Rio Yarmuk, em 636, o profeta do Islã contou com o apoio de 12.000 árabes cristãos, que não tiveram problemas significativos com os muçulmanos por muitos séculos.
Não deveria ser surpresa, portanto, que cristãos nominais iludidos e mal formados se convertam ao islamismo. Mas infelizmente é, e este fato exige redobrada atenção das igrejas evangélicas brasileiras, hoje muito mais preocupadas com o “evangelho do desempenho”, em que a salvação pode ser perdida a qualquer momento, se determinadas obras não forem cumpridas, certos alvos financeiros não forem alcançados e "dons espirituais" coreografados não sejam exibidos à exaustão, num profundo desprezo por tudo que os grandes reformadores protestantes resgataram da poeira dos séculos amontoada nas Escrituras e nos repassaram. Por outro lado, vemos um constante solapamento dos dogmas fundamentais do cristianismo, como a Trindade e a Encarnação, aliado à proliferação de práticas judaizantes. Além disso, o
gnosticismo (com suas revelações especiais particulares e numerologia, por exemplo), infesta muitas igrejas. Registre-se, ainda, essa verdadeira fixação de muitos evangélicos pela novidade, venha ela de onde vier. Queiram ou não, o islamismo é uma religião com representatividade minúscula no espectro populacional brasileiro, e não deixa de ser “novidade” que ocorra uma conversão como essa aqui destacada.
Cabe a cada denominação e a cada pastor cuidarem bem de seu rebanho. Isto não se faz com a “espetacularização” do evangelho para satisfazer alguns corações novidadeiros, insaciáveis e voláteis. Tudo passa pelo fortalecimento doutrinário dos irmãos e das confissões de fé de cada igreja cristã, que deve permanecer firme no ensino da Palavra e intransigente no testemunho de fidelidade da Igreja primitiva, sem negociar com a areia movediça das conversões não tão convictas assim. Espero que a Assembleia de Deus, por sua importância estatística no país, debata a fundo o assunto, para que ela própria continue relevante do ponto de vista espiritual e não siga o caminho das seitas orientais do primeiro milênio.