quarta-feira, 15 de agosto de 2012

De ateu marxista a católico romano

Pietro Barcelonna é um notável filósofo e jurista (civilista) italiano, que foi ateu com longa militância no Partido Comunista do país e que, segundo suas palavras, se converteu a Cristo, embora admita que ainda não se aquietou.

O relato de sua conversão, publicado no jornal católico Avvenire, e reproduzido no Brasil pelo IHU, vale também pela aula (abreviadamente excelente) de como se articula o pensamento italiano:

Como me tornei cristão

"Hoje eu estou convencido de que o que o Cristo representa na história da relação entre o humano e o divino é um divisor de águas da nossa visão de mundo. Mas o Cristo pelo qual eu me sinto atraído e fascinado não é o da hierarquia e dos preceitos, mas sim aquele muito mais arriscado de tentar reviver a sua presença em todo encontro com quem sofre o desespero da desilusão afetiva e da dor da solidão".

O depoimento é do deputado italiano Pietro Barcellona, do Partido Comunista Italiano, professor emérito de filosofia do direito da Università di Catania e ex-membro do Conselho Superior da Magistratura da Itália. Expoente do ateísmo materialista, provocou polêmica em 2010, ao relatar a sua "conversão" ao jornal dos bispos italianos, Avvenire.

O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 04-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Nota da IHU On-Line: Em português, pode ser lido o livro de Pietro Barcellona intitulado Egoísmo maduro e insensatez do capital (Editora Icone, 1985). Ele é autor também de inúmeros outros livros como Diritto senza società (Dedalo, 2003).

Eis o texto.

Em todos os perfis que se referem a mim na internet ou em outros contextos, como por exemplo nas resenhas dos meus livros, sou sistematicamente definido como "um ateu marxista que se converteu ao cristianismo".

Nos termos em que essa espécie de definição da história intelectual de uma pessoa se resolve em uma mera notícia, ela não é apenas falsa, mas também instrumental a uma espécie de dupla censura: por parte dos jornais seculares, porque as minhas posições parecem viciadas por uma grave contaminação religiosa, e por parte do mundo católico, porque elas não seriam confiáveis e tendencialmente fora de toda linha eclesial.

Como continuo me colocando idealmente naquela área da esquerda que persiste tenazmente na crítica ao capitalismo como forma totalizante de vida e que, ao mesmo tempo, considera indispensável uma profunda revisão das nossas categorias interpretativas da relação com a transcendência, eu gostaria de tentar tornar explícito o meu percurso por uma razão de clareza e de respeito por todos aqueles aos quais eu me dirigi nos meus escritos e nos meus livros.

Eu não me converti anteontem por causa de uma repentina iluminação, mas eu vivi em toda minha vida um percurso atormentado de busca daquilo que, de vez em quando, parecia ser a última explicação possível do nosso estar no mundo.

O fio constante da minha busca foram a crítica do presente e a rejeição de um mundo que nunca me pareceu ser o melhor dos mundos possíveis. A minha reflexão política, por isso, sempre se entrelaçou com a reflexão filosófico-religiosa. Aos 18 anos, estudante dos salesianos, apresentei um programa autônomo que incluía o conceito da angústia em Kierkegaard (Escola do cristianismo) e a Fenomenologia do Espírito de Hegel.

Era a minha primeira rebelião ao conformismo do programa oficial. Alguns anos depois, nos tempos da universidade, encontrei um jovem agitador comunista, que foi para a Sicília por encargo do partido, e logo me tornei seu amigo e companheiro de pensamentos. A minha necessidade de revolta contra um estado de coisas repugnantes encontrou em um livro que me foi sugerido pelo amigo turinense o ponto mais significativo para dar ordens aos meus pensamentos confusos.

Tratava-se do livro onde de Concetto Marchesi em que o autor explicava as razões do seu ser comunista com a insuportável visão dos jovens trabalhadores braçais que voltavam doentes de malária do lago de Lentini com um saco de pão e uma garrafa de vinho.

O que me chamou a atenção foi que Marchesi não era propenso a uma atitude de altruísmo caridoso, mas sim afetado na sua própria pessoa como se essa fosse uma ofensa à sua própria dignidade por causa das condições subumanas dos trabalhadores de Lentini. Desde então, eu comecei a procurar as razões do meu espírito de divisão com relação a uma sociedade homologada no conformismo pequeno-burguês que considerava a injustiça um puro acidente natural ao qual se devia dedicar algum remédio compensatório.

O problema de quem sofre violência

Já naqueles anos, ao contrário, havia se tornado central o problema da dor de quem sofre a violência da marginalização e que é implicitamente condenado a sempre ocupar o último degrau da escala social. Uma raiva crescia dentro de mim, que não se referia apenas a uma genérica vocação à generosidade para com os mais fracos, mas sim à consciência de uma ferida interior, que tocava a minha própria identidade de meridional.

Como escreveu admiravelmente Massimo Cacciari no livro Ama il prossimo tuo, o samaritano do Evangelho não é um altruísta, mas alguém que sente na ferida do outro a sua própria ferida, um homem que cuida do outro para curar a si mesmo.

Por isso, eu escrevi em anos já distantes o livro L'egoismo maturo e la follia del capitale [O egoísmo maduro e a insensatez do capital], porque o que me impressionava na hegemonia capitalista sobre a vida cotidiana era a louca pretensão de reduzir o ser humano a uma pura dimensão econômica. A alienação da qual eu havia aprendido com Marx a extraordinária manifestação no fetichismo das mercadorias e do dinheiro me pareceu ser subitamente um furto da alma e eu vi na expropriação da liberdade interior a razão mais profunda da passividade das massas, especialmente as meridionais.

Desde então, eu contaminei o meu diletantesco conhecimento sobre o marxismo com a contribuição da psicanálise como antídoto a uma pura aceitação do presente dominado por um conformismo sem nenhum espírito crítico que produzia passividade e adaptação nas massas meridionais.

Naqueles anos, o encontro com Ingrao foi decisivo, porque ampliou os meus horizontes para além da triste banalidade das explicações economicistas. A crítica ao economicismo que eu desenvolvi em todos os meus escritos substancialmente pôs em discussão um dos pontos que então pareciam indiscutíveis da vulgata marxista: a distinção entre estrutura e superestrutura. Convenci-me de que permanecer na armadilha da gestão econômica do capitalismo impede toda verdadeira transcendência do estado das coisas presentes. O código do capitalismo é o do egoísmo competitivo e do individualismo exacerbado e, seguindo esse caminho, ficamos fatalmente prisioneiros de uma lógico calculista e contável.

O impacto traumático com a crise de 1989 sacudiu a minha existência até provocar em mim uma depressão grave que eu enfrentei com uma longa psicanálise. Convenci-me, através dessa dolorosa experiência, que, na ideia de comunismo que eu havia buscado, se manifestava um delírio de onipotência (Democrazia e tecnocrazia, Editori Riuniti), em que uma espécie de explosão megalomaníaca tendia a impedir o surgimento de todo ponto de vista diferente. Era o tema da ortodoxia absoluta que eu começava a ver como o verdadeiro inimigo do pensamento. O que me parecia claro era que, enquanto o ser humano pretenda explicar com os seus próprios saberes tudo que diz respeito às condutas humanas, ele acabará negando o que de especificamente humano a nossa condição mortal expressa: a necessidade de transcender o horizonte dentro do qual estamos agindo para redescobrir uma presença ulterior com relação à ação dos seres humanos.

Serviram-se nesses anos as reflexões de Ernesto de Martino que intuía como, na tendência à transcendência, havia algo a mais do que uma pura instintividade natural. Aprofundando esse tema, eu fui obrigado a esclarecer as relações entre teologia e política, e entre o messianismo e a esperança de uma sociedade de homens livres. Compartilho a reflexão de Massimo Cacciari e a de Mario Tronti, em que se afirma com clareza que não pode haver espaço ulterior para um pensamento teológico-político sem abordar o tema da transcendência.

Depois da queda do Muro de Berlim, me senti fisicamente assediado pelo não senso da existência. Por que não matar, não explorar, não violentar, não torturar um outro homem que obstaculiza os teus desejos de gozo se não há uma razão ulterior que institui o critério para distinguir, de algum modo, o que se pode fazer do que não se pode fazer?

Continuando essa reflexão de busca, escrevi livros muito transparentes em suas intenções e que marcam um processo orientado para uma meta, mas nunca concluídos em uma asserção definitiva. La critica della ragione laica [A crítica da razão secular] e a aula magistral realizada pelo aniversário de Ingrao sobre o tema da era do pós-humano já eram expressamente indicativas de uma busca que tendia a pôr em campo a questão da transcendência. Dentre outras coisas, era retomada toda a reflexão de Kristeva sobre a absoluta novidade de um deus sofredor que se coloca como percurso doloroso para alcançar uma salvação efetivamente transformadora da condição humana.

As páginas de Kristeva sobre o Cristo sofredor me envolveram e me comoveram. Portanto, a minha não é uma conversão, mas sim um processo longo, aberto e atormentado. Nesse processo, apareceu-me a possibilidade de sentir a presença fora de você de algo que lhe solicita apenas a seguir um exemplo de amor, em que a alteridade não é o espelho iluminista do Eu, mas sim a pura partilha de uma experiência que se realiza principalmente no plano da existência concreta e não no plano intelectualístico da racionalidade.

Vinha diante dos meus olhos um Cristo pasoliniano, banhado em paixões humanas, propondo um modelo de vida fundamentado essencialmente na identificação com o próximo sofredor. Na leitura dos Evangelhos que eu tentei fazer, Jesus Cristo sempre me pareceu um interlocutor humano que se limitava a propor um modelo de identificação com o últimos marginalizados e excluídos. Na minha experiência, eu pude verificar o que significa, no plano existencial, a identificação com uma outra pessoa, o ato de fazê-la se tornar uma parte de você e de cuidar dela como você cuida de si mesmo.

A identificação não é uma pura imitação de um modelo, mas sim uma integração da própria pessoa com as partes dolorosas que foram primeiro reconhecidas no outro.

Por isso, hoje eu estou convencido de que o que o Cristo representa na história da relação entre o humano e o divino é um divisor de águas da nossa visão de mundo. Mas o Cristo pelo qual eu me sinto atraído e fascinado não é o da hierarquia e dos preceitos, mas sim aquele muito mais arriscado de tentar reviver a sua presença em todo encontro com quem sofre o desespero da desilusão afetiva e da dor da solidão.

Nesses termos, eu não sei se é precisamente correto definir o meu status como o de um "convertido", que definitivamente se aquietou. Seguramente, eu sou um cristão que, no clima do presente, está convencido de que só o discurso de Cristo pode se opor ao niilismo biológico do cientificismo que busca apagar qualquer especificidade da condição humana. Eu penso com absoluta convicção que o caminho da salvação e a saída do pensamento único da economia dominante só podem se realizar restituindo ao ser humano a sua vocação divina. Não para fazer dele o arrogante e presunçoso substituto de Deus, mas sim o interlocutor privilegiado de uma história tão enigmática como continua sendo a da salvação com relação à inevitável "morte do Sol" que nenhum saber jamais conseguirá explicar.



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