segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Quando éramos religiosamente canibais

Houve uma época no Brasil em que nossos antepassados aborígenes tinham em alta monta morrer - literal e ritualisticamente - comido pelos inimigos.

Era essa a maior honra que um guerreiro indígena - tupi ou guarani - podia almejar, e lhe assegurava o passaporte para a imortalidade no seu contato carnívoro com o além.

Contato este que - como você pode imaginar - sofreu uma radical conversão de rumo quando chegaram os primeiros portugueses, trazendo consigo a religião cristã e, a seguir, a catequese.

Esse é o "delicioso" tema do livro "Os Vivos e os Mortos na América Portuguesa", de Glória Kok, cuja excelente resenha foi publicada no Jornal UNICAMP e reproduzida no blog História Viva:

A história sobrenatural do Brasil

Livro resgata fatos obscuros do trabalho de cristianização dos índios na América portuguesa

Luiz Sugimoto

Antropofagia, bebedeiras coletivas, poligamia, rituais pagãos, nomadismo, cotidianas guerras tribais. Como conviver com um povo deste? Para os dominadores portugueses do Brasil colônia, era impossível. Daí a decisão de catequizar os indígenas ou, havendo resistência, de escravizá-los ou dizimá-los.

Os vivos e os mortos na América portuguesa – Da antropofagia à água do batismo é um livro de Glória Kok, lançado pela Editora da Unicamp, enfocando os vínculos que índios e jesuítas estabeleceram com o mundo sobrenatural. Formada em filosofia, mestre e doutora em história social pela USP, Glória reuniu testemunhos preciosos sobre a forma como os nativos brasileiros – notadamente os tupis-guaranis – encaravam a morte e o paraíso, as suas práticas xamânicas, o significado de suas guerras, as formas de resistência diante dos colonizadores e das atrocidades de que foram vítimas em nome da cristianização.

A partir do reconhecimento pelo papa de que os índios são seres racionais (em 1537) e da chegada da Companhia de Jesus (em 1549), Glória Kok resgata fatos obscuros da história colonial até hoje pouco divulgados. Esta omissão, de um lado, ajudou a eternizar o preconceito contra ritos ancestrais, pois, por ignorarmos seus significados, nos habituamos a vê-los como manifestação da ignorância dos índios. De outro lado, contribuiu para manter imaculada a história oficial, onde praticamente não se menciona o genocídio de nativos e que somente agora começa a ser revista e recontada aos alunos da rede básica.

Na opinião da pesquisadora da USP, houve nos últimos anos grande produção de teses e livros de historiadores, o que iluminou o tema da colonização da América portuguesa sob diferentes prismas. “Esses textos são gradualmente transpostos, ainda que com filtros, para os livros de ensino fundamental e médio. Assim, os conflitos inerentes ao processo de catequização e à escravidão já se apresentam indissociados da história da colonização em vários livros didáticos e paradidáticos do mercado brasileiro", afirma.

Glória, porém, ressalta que isso não basta. "Na minha opinião, os livros também devem contemplar uma abordagem mais detalhada e dinâmica dos rituais indígenas tupis-guaranis e a leitura que deles fizeram os jesuítas, bem como a que os índios fizeram do mundo cristão, para que os alunos possam entender as disputas simbólicas que estruturam nosso imaginário".

Hoje - Solicitada a avaliar a postura da Igreja de hoje ante os índios, a autora de Os vivos e os mortos lembra que, mesmo na Colônia, os jesuítas reuniram todas as forças para a catequese e, para isso, precisaram flexibilizar os seus próprios procedimentos. Ela crê que este enfoque em relação aos índios mudou, sobretudo a partir dos anos 70, com o surgimento da Teologia da Libertação na América Latina, quando a Igreja passou a se colocar ao lado dos oprimidos. "Não sou uma especialista na matéria, mas nota-se que, por um lado, a Igreja desenvolveu um padrão bem mais tolerante com relação às culturas diferentes e ancestrais e, por outro, muitos povos indígenas aguçaram a consciência da necessidade de preservação das tradições tribais e das diferentes culturas, organizando movimentos de resistência".

Os mortos em desassossego

Segue uma reprodução (praticamente literal) de alguns tópicos do Capítulo 1 de Os vivos e os mortos na América portuguesa – Da antropofagia à água do batismo. O capítulo leva o título acima e este resumo, obviamente, não reflete a riqueza de detalhes com que Glória Kok resgata as relações dos indígenas com o mundo sobrenatural:

*Por ocasião da chegada dos europeus à América portuguesa, os Tupi viviam na orla atlântica do Amazonas até Cananéia e na região da bacia amazônica, enquanto os Guarani distribuíam-se pelo litoral de Cananéia ao Rio Grande do Sul, infiltrando-se nas margens dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Esta ocupação dos tupi-guarani era interrompida apenas em alguns pontos do litoral: na foz do Rio Paraíba pelos Goitacá, pelos Aimoré no sul da Bahia e norte do Espírito Santo, e pelos Tremembé na faixa entre Ceará e Maranhão. Esses povos não-Tupi eram chamados de tapuias.

*As guerras entre tribos indígenas, mesmo de mesma língua, fervilhavam por todo o território. O motivo desses conflitos era um só: eles queriam vingar a morte dos seus pais antepassados. Para os europeus, essas guerras não tinham o menor sentido, já que não visavam nem a expandir o território, nem enriquecer, nem dominar, explorar ou aniquilar o inimigo. Muitas vezes, um grande contingente de homens era mobilizado para incursões guerreiras, cujo resultado era a captura de um único prisioneiro, que depois seria comido ritualmente pela tribo.

*Na aldeia vitoriosa, o índio capturado era recebido com muita alegria e entusiasmo. Era pouco vigiado, pois se fugisse seria considerado um covarde em sua terra e acabaria passando a vergonha de ser morto pelos índios de sua própria tribo. A morte pelo inimigo era a ideal, almejada por todos: a consagração do guerreiro. Não se encontrava prisioneiro que não preferisse ser morto e comido a pedir perdão.

*Para os covardes e os homens que nunca mataram um inimigo, o destino lhes reservava a mortalidade da alma, o apodrecimento do corpo, a transformação em uma existência espectral, que não conservava nada mais de humano. Aos guerreiros valorosos, que aprisionaram e mataram muitos inimigos, ou ainda às mulheres dedicadas ao preparo da carne dos prisioneiros e à sua ingestão, era permitido o ingresso a essa vida ideal coroada pelo convívio com os antepassados, deuses e heróis-civilizadores.

*É lícito afirmar que os índios acreditavam na realidade de uma substância para além do corpo físico, a que os europeus atribuíram o nome de alma. Mas a alma índia não envolvia a idéia de desmaterialização absoluta. Tampouco suprimia todas as ligações entre a "alma" e os restos mortais ou a desvencilhava das primitivas necessidades. Nessa ótica, a morte representava uma fenda na pessoa, a partir da qual o corpo e a alma submetiam-se a intensos processos de transformação.

*Contrapondo-se à vítima do terreiro que não demonstrava o menor vacilo ante o golpe de tacape, ciente de que seu corpo posteriormente seria consumido pelos inimigos, o índio que era acometido por alguma doença e percebia a proximidade da morte vivia trespassado pelo medo. Pode-se deduzir que o medo era, em grande parte, oriundo da decomposição física. "(...) dizem que é triste cousa morrer, e ser fedorento e comido pelos bichos".

*O curso das relações entre os vivos e os mortos nas tribos tupis-guaranis alterou-se substancialmente com a chegada dos jesuítas que, ao trazerem um outro modelo de sobrenatural, desfiguraram e esgarçaram o vínculo existente entre os vivos e os mortos. No entanto, antes de implantá-lo, trataram, sobretudo, de minar a resistência indígena que se manifestaria em várias regiões e de formas variadas.

SERVIÇO
Os vivos e os mortos na América portuguesa - Da antropofagia à água do batismo
Glória Kok
Editora da Unicamp
Campinas, 2001
183 páginas




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