terça-feira, 7 de agosto de 2012

O mito da meritocracia

Existem algumas palavras-coringa que são tiradas do bolso do colete para expressar uma ideia que pretende encerrar uma discussão e assim evitar que a análise seja aprofundada e se investigue o que elas querem realmente dizer ou se servem apenas para ocultar os interesses escusos de quem as utiliza.

Afinal, tem político que até utiliza a palavra para justificar a contratação de cupinchas que tiveram o "mérito" de serem excelentes puxa-sacos oportunistas.


"Mérito" é algo bom quando não representa uma desculpa para a perpetuação de uma elite no poder com a consequente exclusão da maioria das pessoas do acesso não ao oportunismo, mas às oportunidades que lhe são sistematicamente negadas com base nessa tal "meritocracia", segundo excelente artigo publicado no IHU:

O fim da chamada meritocracia

“A meritocracia aparece como a ideologia que as elites promovem, nos meios que controlam, para justificar seu poder.” É o que pensa Vicenç Navarro, em artigo publicado no sítio Rebelión, 01-08-2012. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Uma das consequências da enorme crise financeira e econômica que estamos experimentando é a perda de confiança nas elites governamentais, sejam estas financeiras, econômicas, midiáticas ou políticas. Esta se perdendo, rapidamente, a confiança que um sistema político democrático requer que exista entre o “establishment” – as instituições que governam as diferentes atividades financeiras, econômicas, midiáticas e políticas do país – por um lado, e as classes populares por outro.

As pessoas comuns, que costumavam crer que “os que mandam” são melhores e possuem mais informação, pelas quais tomam as decisões, já não acreditam neles. Mais e mais pessoas questionam se as elites que estão mandando, estão nessa posição devido ao seu mérito. Segundo a última pesquisa sobre valores, realizada pela “Pew Foundation”, a maioria da população dos países em recessão, incluindo os países da zona do euro, não confiam nas elites governantes. E isso explica que tais elites estejam perdendo não apenas a confiança, mas sua legitimidade para “mandar”, seja em qual setor for.

Há muitas consequências para este fato, facilmente evidenciáveis. Porém, uma das mais importantes é que além do esquema político direita-esquerda, é necessário incluir outra linha divisória que separa os que estão em cima do restante, que constitui a grande maioria da população. Esta maioria percebe que a linha ascendente na grade social não é determinada pelo mérito, mas por determinadas ligações e relações interpessoais, em grande parte pela origem social do indivíduo, definido por classe social e gênero.

Na realidade, a evidente incompetência dos que estão em cima (tanto nos setores financeiros, como nos políticos), que aparece claramente na contínua e persistente tentativa de seguir as políticas de austeridade e que conduzem estes países ao desastre, mostra que o mérito tem pouco a ver com o fato de estarem onde estão. As ligações e redes de interesses (que os sociólogos chamam de capital social e as pessoas comuns chamam de ligações e tampões) que permitem que eles escalem, explica porque estão em cima. Esta é a percepção generalizada hoje.

É lógico, pois, que a grande maioria dos cidadãos questione o sistema que permite que as elites existam, permaneçam e se reproduzam, sem nenhuma justificativa ou responsabilidade frente aos demais (o que em inglês se chama "accountability"). A meritocracia aparece como a ideologia que as elites promovem, nos meios que controlam, para justificar seu poder. A perda da credibilidade dessa ideologia é clara e enorme. A grande maioria da população, na citada pesquisa Pew, não acredita que as elites governantes sejam “melhores” que as pessoas comuns. Na realidade, começa a se enxergar o contrário disto. Algumas porcentagens, que estão crescendo, são daqueles que pensam que as pessoas de cima são mais corruptas do que as pessoas comuns. Que não estão enriquecendo por seus méritos, mas devido aos seus contatos e ligações (repito, o chamado capital social).

Esta tomada de consciência leva a uma situação que tem um enorme potencial explosivo, pois o maior grau de conhecimento e a maior exigência que isso acarreta, conduz para uma situação em que a falta de credibilidade da ideologia meritocrática provoca o desejo de mudá-la ou eliminá-la. E, assim, surgem os movimentos contestatórios: da conscientização de que os que têm grande poder no país não defendem os interesses gerais da população, mas os particulares que eles representam, carecendo de legitimidade para estar onde estão e ter o poder que possuem.

Os movimentos contestatórios

Não é por acaso, portanto, que tais movimentos tenham surgido em países como Espanha e Estados Unidos, onde há maior concentração do poder financeiro, econômico, midiático e político, e onde a relação existente entre estes diferentes establishments é mais acentuada. Por exemplo, a relação e conexão entre o "establishment" financeiro, midiático e político, alcançam dimensões elevadas na Espanha e nos Estados Unidos. Daí o surgimento do 15-M e do Occupy Wall Street. São movimentos de denúncia da grande concentração do poder e das enormes limitações que provocam no sistema democrático de tal país. Nos dois países as limitações do sistema democrático são enormes e evidentes. O “não nos representam”, do movimento 15-M, é amplamente entendido e compartilhado pela maioria dos cidadãos, mais em relação às pessoas com sensibilidade progressista, mas também presente em pessoas com sensibilidade conservadora.

Isso implica uma distância cada vez maior entre os governantes e os governados, que inclui os governados de diferentes sensibilidades políticas. Nos dois países, tais movimentos contestatórios atuam como consciência coletiva da maioria da população. Seu grande poder deriva do grande apoio popular que recebem. Daí, o enorme temor que tais “establishments” tem demonstrado, aumentando a repressão, que na Espanha e na Catalunha tem alcançado um nível não visto desde os tempos da ditadura.

Tais movimentos, diferente de uma imagem intencionada e enviesada promovida pelos meios conservadores, tem sido altamente exitosos, pois colocam no centro do debate e da visibilidade midiática as enormes falsidades em que o sistema se apoia. Na Espanha, há uma escassez de representatividade do sistema político (“não nos representam”), uma enorme corrupção das estruturas políticas, uma exigência de mudança (“se não nos deixarem sonhar, não os deixaremos dormir”), e uma longa lista de slogans que refletem, gráfica e simbolicamente, os enormes déficits do sistema político-econômico herdado da transição “inmodélica”, feita em termos muito desiguais com o grande domínio das forças conservadoras naquele processo de transição, determinando uma democracia muito incompleta, com um bem-estar muito insuficiente (ainda hoje, a Espanha tem mais baixo gasto público social, da UE-15, por habitante).

Estes movimentos, com suas estratégias de ridicularizar ao “establishment” (com grande criatividade e humor) estão mostrando que o rei está nu. A maneira como os “vovôs flauta”, um grupo de cidadãos com idade avançada, ridicularizam a pomposidade do poder é digna de aplauso e apoio. Ao poder é preciso mostrar o que é: a mera defesa de interesses particulares para o enriquecimento de elites que sobem à custa de todos os demais.

Não é seu objetivo se converter num partido político, mas denunciar os enormes déficits democráticos e radicalizar os instrumentos políticos e sociais que necessitam ser agitados para que sirvam melhor à cidadania. E estão conseguindo.

Uma última observação. Este distanciamento entre governantes e governados, resultado das enormes insuficiências do sistema democrático espanhol, não deve levar a um sentimento antipolítico, que conduz a um fascismo antidemocrático (Franco era o indicador máximo da antipolítica), mas a um nível maior de exigência democrática, solicitando com toda a contundência que sejam feitas as transformações profundas daquilo que se chama democracia na Espanha.

Isto para que se consiga uma democracia real e autêntica, em que a cidadania seja a origem de todo o poder, expresso tanto na forma direta como indireta, dentro de um sistema autenticamente proporcional em que cada cidadão tenha a mesma capacidade decisória no país, por meio de referendos vinculantes (tanto em nível central como autonômico e municipal), como também por meio de instituições autenticamente representativas. E exigindo uma pluralidade nos meios de comunicação, hoje praticamente inexistente na Espanha, que represente a existente pluralidade que há na cidadania espanhola.



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