Independentemente do que você creia ou deixe de crer, todo o patrimônio religioso construído ao longo dos milênios pertence, de certa forma, a toda a humanidade, retrato que é da peregrinação do engenho humano por todo o planeta desde priscas eras.
Não se trata, obviamente, de ficar cantando "ah ah uh uh, o Islã é nosso!" ou "o Vaticano é nosso!", mas de respeitar os lugares sagrados e os objetos de culto de todas as religiões, lembrando a seus seguidores que eles fazem parte, também, da nossa herança comum.
São relíquias das pegadas que nossos ancestrais nos legaram em suas aventuras pessoais e coletivas ao redor do globo, para que seguíssemos, admirássemos e/ou investigássemos seus rastros.
Assim, por exemplo, nos indignamos quando radicais islâmicos destruíram boa parte dos tesouros arqueológicos de Timbuktu, no Mali, ou quando o Talebã explodiu as enormes estátuas de Buda no Afeganistão.
Como é do conhecimento comum, Meca (مكة - Makka), localizada na Arábia Saudita, é a cidade mais sagrada do islamismo, onde nenhum não muçulmano pode entrar e à qual todo muçulmano deve peregrinar pelo menos uma vez na vida, se tiver condições para tanto, a fim de cumprir o Hajj (حج).
Entretanto, boa parte da enorme tradição islâmica, construída em Meca a partir de sua conquista definitiva pelo profeta Maomé no ano de 630 d. C., pode não resistir às atuais investidas do governo saudita, segundo denuncia o jornal britânico The Independent.
É que, a pretexto de seguir com o plano bilionário de reformar e expandir a Grande Mesquita, a mais importante do Islã, conhecida como Masjid al-Haram (المسجد الحرام), tratores e escavadeiras demoliram as suas antigas estruturas dos tempos do Império Otomano, como mostram as fotos publicadas pelo diário inglês, uma das quais está acima.
A Grande Mesquita foi edificada ao redor da Kaaba (الكعبة), a construção em forma de cubo com a rocha sagrada (a Pedra Negra - الحجر الأسود - al-Ḥajar al-Aswad), em torno da qual milhões de muçulmanos fazem suas orações durante as peregrinações.
Muitas das antigas colunas - agora derrubadas - da Grande Mesquita continham inscrições dos tempos otomanos, em que os nomes do profeta Maomé e seus companheiros estavam marcados, bem como descrições de momentos fundamentais de sua jornada.
Uma coluna em especial parece ter sido derrubada, justo aquela que, segundo a tradição islâmica, marca o ponto em que o profeta teria começado sua última viagem no ano 632, num cavalo alado que o teria levado a Jerusalém antes de sua ascensão aos céus na mesma noite.
Suspeita-se que tanto Meca como Medina, a segunda cidade mais sagrada do Islã, estão sucumbindo ao consumismo desenfreado que caracteriza (agora não somente) o mundo ocidental.
O governo saudita justifica as reformas dos últimos anos em ambas as cidades, dizendo que precisa adequá-las ao crescente número de peregrinos (contados em milhões) que visitam os locais sagrados durante o Hajj.
Há quem diga, com uma certa dose de razão, que os interesses empresariais e imobiliários em hospedar e entreter os milhões de peregrinos estão transformando as cidades sagradas numa espécie de Las Vegas das Arábias.
Curiosamente, a construtora que ganhou a licitação para a obra bilionária é do grupo saudita Binladin, cujo nome - como você deve ter percebido - remete a um certo Osama Bin Laden, já que foi seu pai, Mohammed bin Laden, que fundou o império da construção civil na península arábica.
Alguns líderes islâmicos, entretanto, incentivam a destruição das relíquias históricas sob o argumento de que as mesmas, sob qualquer pretexto, não podem se converter em centros de idolatria, atitude que o Islã repele veementemente.
Por outro lado, a exemplo do ocorrido em Timbuktu, é preciso ter sempre em mente a noção de que os inúmeros legados religiosos do passado pertencem não só a uma religião específica, mas a toda a humanidade, ainda que sejam maltratados e desprezados aqui e ali.
A repercussão do fato foi tão grande que o príncipe Charles, do Reino Unido, e sua esposa, a Duquesa da Cornuália, desembarcaram esta semana em Riad, capital da Arábia Saudita, para uma agenda não revelada, mas que, ao que tudo indica, levará as legítimas preocupações do mundo inteiro ao monarca saudita, o rei Abdallah, e a seus príncipes, a fim de se evitar ainda mais destruição do patrimônio histórico-cultural-sagrado do Islã (e de todos nós, indistintamente).