segunda-feira, 4 de março de 2013

O papa que sumiu do mapa

Este raro e estranho espaço de tempo entre a morte (ou – agora – a renúncia) de um papa e a eleição de um novo é um período (oficialmente denominado “sé vacante”) que remete a uma certa curiosidade de todos sobre a história dos papas, bem como à expectativa, torcida e (em alguns casos) adivinhação e apostas sobre quem será o próximo pontífice romano.

Mesmo quem não é católico não consegue ficar indiferente, além do bombardeio midiático constante, a esta armadilha humana do tempo, talvez porque o mecanismo de escolha de um papa pareça um procedimento arcaico tão contrastante com o mundo antenado em que vivemos hoje.

Depois de eleito o novo líder católico, ao ser apresentado ao mundo na sacada da Basílica de São Pedro, o último mistério a ser desvendado é o nome com o qual ele quer ser chamado a partir de então.

Só para lembrar os últimos 5 papas, Bento XVI foi o nome escolhido por Joseph Alois Ratzinger, João Paulo II por Karol Józef Wojtyła, João Paulo I por Albino Luciani, Paulo VI por Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini e João XXIII por Angelo Giuseppe Roncalli.

Ao escolher o seu nome litúrgico, o novo papa já dá uma indicação de que linha pretende seguir. É seu primeiro recado ao mundo sobre os valores que ele preza (e pretende reforçar) e os antecessores que admira (e quer homenagear).

Bento XVI, por exemplo, se apresentou – de certa maneira – como sucessor de Bento XV (1914-1922), que liderou a igreja durante a Primeira Guerra Mundial, agindo como pacificador, e fez reformas administrativas no Vaticano, no que – aparentemente – Joseph Ratzinger não teve a mesma sorte.

Por sua vez, João Paulo II fez referência ao curto papado de 33 dias de João Paulo I, cujo carisma e simpatia o papa polonês teve muito sucesso não só em replicar como elevar a níveis estratosféricos.

Já João Paulo I quis fazer uma homenagem aos papas imediatamente seus antecessores, João XXIII e Paulo VI, numa indicação de que queria sedimentar e – talvez – aprofundar as mudanças na igreja católica promovidas pelos dois durante o revolucionário Concílio Vaticano II, que aproximou muito mais o Vaticano da realidade do mundo atual. Não teve tempo para tal missão.

Portanto, fica a dúvida um tanto quanto de jogo de adivinhação. Que nome tomará o futuro papa? Bento XVII? João Paulo III? Paulo VII? João XXIV? Pedro II, como predizem as profecias catastróficas? Outra linhagem de um nome já consagrado pela tradição? Ou um nome completamente novo?

Aí, quando se vai pesquisar os nomes possíveis, assim a título de experimentação (ou curiosidade mórbida), não há nenhuma hipótese que seja mais complicada do que um novo João, justo ele que compôs o nome de três dos últimos cinco papas.

O primeiro papa João XXIII,
condenado ao esquecimento
por seu homônimo do séc. XX
Primeiro, porque houve dois João XXIII na história dos papas: o último a usá-lo, que reinou de 1958 a 1963 e ficou conhecido como “o papa bom”, e o outro João XXIII (1410-1415) que passou para lista infame dos antipapas.

Isto se deveu ao Grande Cisma católico do Ocidente de 1378 a 1417, interregno em que os católicos chegaram a ter três papas concomitantes, cada um com sede em Roma, Avinhão e Pisa, respectivamente.

O primeiro João XXIII (cujo nome de batismo era Baldassarre Cossa e reinou em Pisa) pertenceu a este conturbado período da igreja católica, lembrando que o Grande Cisma do Oriente (o rompimento com os ortodoxos) já havia ocorrido de forma definitiva em 1054.

João XXIII esteve presente no Concílio de Constança (1414-1418), que - além de resolver a pendência sobre os três papas - condenou o proto-reformador, outro "João" - Jan Hus - à fogueira, executado que foi em 6 de julho de 1415.

Ocorre que, como todo "bom" papa da época, o primeiro João XXIII também tinha vendido indulgências para custear sua guerra contra o rei Ladislau de Nápoles, situação à qual João Hus (ou Huss, segundo outra grafia) veementemente se opôs.

Daí você percebe que a Reforma Protestante levada adiante por Lutero 100 anos depois não foi assim algo inusitado (ou inesperado) na história da igreja católica.


Jan Hus, um pré-protestante imolado
em meio à guerra de três papas.

Já quanto ao antipapa, por ele não ter sido excomungado quando (nem depois) da unificação do papado sob Martinho V (1417-1431), sempre houve muita controvérsia sobre a validade do primeiro João XXIII, havendo quem advogasse pela sua legitimidade.

Tanto isto é verdade que - por mais de 500 anos - o nome (que era tão comum até então) não voltou a ser usado até o segundo João XXIII, que podia ter se chamado João XXIV, mas ao escolher o numeral XXIII, excluiu definitiva e oficialmente o primeiro João da lista oficial dos papas, onde constava, ainda que bem timidamente, até a década anterior, mais precisamente 1947, ano em que seu antecessor, Pio XII, já havia feito uma reforma radical na lista sucessória.


Pio XII, cujo nome de batismo era Eugenio Maria
Giuseppe Giovanni Pacelli, também ele um "João",
só que na certidão de nascimento.
Em 19/01/1947, numa martelada só, o papa Pio XII anunciou a retirada de 6 papas da lista oficial do Vaticano, sob a alegação de que "um engano foi cometido porque eles nunca existiram". 

Pio XII autorizou também a retificação da cronologia de vida de 74 papas, e revogou a canonização ("declaração de santidade") de 4 deles, fazendo-os descer dos altares católicos.

Cá entre nós, esta foi a maior acochambrada que a lista sucessória papal recebeu na história.

João XXIII, o "papa bom",
não foi nada bom para
o seu homônimo do séc. XV
Pouco tempo depois, apesar daquele seu jeito bonachão, o papa João XXIII pegou pesado com seu homônimo de 5 séculos antes.

OK, resolvido então o problema com o nome João? A resposta é um rotundo “não”.

Se você achava que todo o imbroglio acima relatado já era o suficiente, pode tirar o seu cavalinho da chuva. Há mais duas celeumas envolvendo a alcunha. E – pasme! – são ainda mais incríveis. 

O segundo problema com o nome João é que você procura, procura, procura na lista sucessória oficial dos papas e não acha nenhum João XX. Ele simplesmente não existiu. Escafedeu-se sem ter sequer aparecido.

“Como assim?”, você certamente perguntará. “Pularam do João XIX para o XXI como se não houvesse amanhã?". A resposta agora para o “sumiram com o papa João XX?” é um rotundo “sim”.

O fato é que, entre os papas João XIX (1024-1032) e João XXI (1276-1277), não existe nenhum outro romano pontífice chamado João.

Papa João XXI.
Sim, já houve papa português!
Que nossos patrícios nos perdoem, mas os investigadores da matéria jogam a culpa no português Pedro Hispano, que ao assumir o papado, avocou a si o nome de João XXI.

Entre tantos candidatos a culpado pela confusão generalizada na lista dos "Joões", foram escolher justo alguém que nasceu em Lisboa.

Antes de fazer piada com nosso querido amigo lusitano de 8 séculos atrás, ao que tudo indica ele teve razões (até então) sólidas para pular o número XX, a não ser que tivesse alguma superstição com o algarismo 20, o que jamais saberemos.

É que, lá atrás, nos séculos XI e XII, já havia alguns historiadores que se dedicavam a colecionar os poucos dados disponíveis sobre a sucessão papal, e eles garantiam de pés juntos que tinha havido um papa chamado João entre o antipapa Bonifácio VII (984-985) e o Papa João XV (985-996).

Além disso, existe a confusão em torno do papa João XVI, que teria sido mais um antipapa, Giovanni Filagato, que reinou de 997 a 998 . João XVII (que governou a igreja por menos de 2 meses em 1003) pelo menos considerou a numeração anterior como válida, ainda que seu detentor tivesse sido excomungado.

Aquela corrente histórica, muito provavelmente, foi tão forte e influente que convenceu Pedro Hispano a pular o número XX e atribuir-se a si mesmo o número XXI. 

Só que ele, coitado, também errou, mas como palavra de papa não pode ser mudada e é definitiva, a exemplo do ocorrido com João XXIII, tudo ficou como estava.  Persistiram no erro. Tudo como dantes no reino de Abrantes.

Aí você provavelmente pensaria: “OK, já encheu o saco essa história de papa chamado João”. Lamentamos informar que não dá para terminar por aqui, pois há outra estória (com “e” mesmo) curiosíssima que decorre da ausência do vigésimo João.

A coisa passa agora para o terreno do fantástico, provando que ficção e lenda urbana não são fenômenos assim tão atuais na história da humanidade.

A papisa Joana virou até filme.
Este misterioso sumiço de João XX deu origem a uma lenda que, embora oficialmente desmentida, dura até hoje: a da papisa Joana.

Sim, é isso mesmo que você leu: “papisa”, uma mulher. Segundo o mito, não existe João XX na lista oficial de papas porque “ele” era na verdade “ela”.

Há muitas variações da estória, todas elas cheias de informações detalhadas (e delirantes) que buscam lhes dar um toque de seriedade, mas o enredo básico dá conta de uma mulher (de origem inglesa segundo a versão mais contada) muito culta que chega travestida de homem a Roma, se apresenta como monge e se infiltra na igreja, até ser elevada à condição de cardeal, quando finalmente atinge o papado com o nome de "João", sucedendo Leão IV no ano 855.

A fantasiosa papisa Joana teria, então, se dedicado às práticas carnais (das quais, diga-se a favor do mito, muitos papas reais desfrutaram à beça) no seu curto reinado de dois anos e meio, e teria ficado grávida de algum membro da corte vaticana.

Rezam as más línguas que, numa procissão pelas ruas de Roma, o cavalo que levava Joana empinou assustado com a multidão e a papisa (até então tida como homem) veio ao chão, onde, para espanto de todos, deu início a um parto prematuro. Imagine a cena...

O povão talvez pensando que o papa João tinha engordado por causa dos banquetes no Vaticano, e - ploft! - "ele" dá à luz um bebê (!!?).

A pobre (e desmascarada) Joana teria sido, então, amarrada a um cavalo e apedrejada até a morte por haver profanado o trono de Pedro. 

Daí teria - também - originado toda a confusão na numeração dos papas de nome João. Havia que suprimir o João travesti.

O parto da papisa Joana, sátira de Giovanni Boccaccio, mais conhecido por "Decameron"

Se você queria que nós poupássemos os leitores de mais detalhes sórdidos, lamentamos contrariá-lo porque há mais uma fofoca de bastidor (consagrada pela história) a ser contada. 

Já há muito tempo não há dúvidas de que a estória da papisa Joana foi só uma lenda jocosa que os súditos (não tão católicos assim, como Boccaccio na gravura acima) construíram ao longo dos séculos para satirizar o poderio e a libertinagem dos papas da época.


O que não faltou na Idade Média e no Renascimento foi gravura ridicularizando a infausta papisa Joana
Só que o chiste mitológico deve ter sido tão forte que teria sido criado um ritual algum tempo depois, que foi muito explorado pelos protestantes a partir do século XVI, que seria o da verificação da masculinidade do papa.

Consta que o recém-eleito papa deveria, antes de mais nada, sentar-se sem roupas íntimas numa “poltrona” que se parecia com o atual assento de um vaso sanitário (que só foi inventado em 1775), e alguém colocava a mão por baixo da cadeira para apalpar o pênis e os testículos do pontífice, a fim de se certificar de que ele não era mulher nem eunuco.

Viu como os atletas que se queixam dos excessivos controles dos exames antidoping de hoje em dia não têm do que reclamar?

Sugerimos, portanto, que você reveja o seu conceito do que significava "encher o saco" naquela época...

Um momento constrangedor dos antigos papas.
Repare que tem alguns prelados assobiando
ali do lado esquerdo do recém-eleito papa.

Este “trono” especial tinha um nome em latim, sedia stercoraria, e - por incrível que pareça – ele existe até hoje e está preservado no Museu do Vaticano (foto abaixo), sem – obviamente – qualquer referência ao seu suposto uso impudico em tempos medievais.


Cá entre nós, quanta confusão causou o nome João no Vaticano ao longo da história...

Bem, pelo menos de uma coisa podemos ter certeza: se o novo papa for brasileiro, ele nunca que vai querer ser chamado de João XXIV. Piada pronta tem limite, né não?



LinkWithin

Related Posts with Thumbnails