terça-feira, 28 de maio de 2013

A dura vida nas clínicas de reabilitação de drogados


A Folha de S. Paulo publicou no último domingo, 26/05/13, uma série de artigos sobre a situação de centros de recuperação de viciados em drogas, com os links indicados nos respectivos títulos, discutindo a chamada "bolsa crack" e o incentivo governamental a instituições religiosas que cuidam dessas comunidades, matérias que merecem ser lidas e divulgadas:


TALITA BEDINELLI 
APU GOMES

São 7h e o som grave de um pequeno sino metálico ecoa na chácara de 30 mil metros quadrados da Conquista, uma comunidade terapêutica para dependentes químicos em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo.

É do instrumento a função de alertar os 48 homens, moradores da chácara, que o momento é de acordar e, em seguida, de arrumar as camas.

A droga mais consumida por essas pessoas é o crack. Muitos deles já foram presos por terem praticado crimes com o objetivo de conseguir dinheiro para o vício.

Eles passam agora por um tratamento de nove meses em uma comunidade terapêutica -espaços com foco na reinserção social e no exercício da espiritualidade. Todos estão lá voluntariamente.

Esse tipo de comunidade tornou-se a "arma" do governo de São Paulo para tentar vencer a luta contra o crack.

Muitas delas serão credenciadas para atender dependentes do programa Recomeço, lançado neste mês. Uma das frentes do projeto é a "bolsa anticrack" que dará R$ 1.350 mensais a essas instituições por paciente atendido.

A reportagem da Folha ficou "internada" entre a noite de quarta (15 de maio) e a tarde de sexta (17) na comunidade evangélica Conquista, com o consentimento da direção.

O objetivo era conhecer os pacientes e o dia a dia do tratamento, marcado pelo badalar do pequeno sino metálico.

O instrumento toca ao menos oito vezes ao dia para alertar o início de cada atividade a ser realizada.

Depois do café da manhã, eles devem: recitar o mantra "só por hoje"; fazer um Inventário Moral Diário, onde falam sobre seus defeitos; almoçar; praticar laborterapia; lanchar e jantar. Duas vezes por dia, recebem medicamentos.

A depender do dia, algumas atividades são substituídas por terapia individual, em grupo e uma reunião onde praticam os "12 passos", princípio do grupo AA (Alcoólicos Anônimos), cujas bases foram adaptados ali em uma bíblia evangélica. Também há reuniões religiosas.

Os horários rígidos têm razão de ser: ensiná-los a viver em um mundo de regras, muitas delas esquecidas durante o consumo da droga. Ali, eles são chamados de "alunos".

O descumprimento das normas pode custar a ligação semanal para a casa ou a visita quinzenal da família.

Muitos, no entanto, não se adaptam ao novo mundo. Dos 48 que estão ali, só 24 devem completar os nove meses do tratamento, estima a direção.

Desses, seis devem voltar a consumir drogas em um prazo de um ano.






Ninguém sabe ao certo quantas comunidades terapêuticas existem no país e qual o tipo de trabalho que cada uma delas executa.

O número mais aproximado vem de um censo do Ministério da Justiça e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em que as próprias entidades se cadastram. Estão listadas 1.830 comunidades- 407 em SP.

Estima-se que a maioria seja mantida por alguma entidade religiosa e tenha a "espiritualização" como foco -em algumas, rezar é o único tratamento oferecido.

Por isso, alguns especialistas colocam em dúvida a eficácia do tratamento. "Não há evidências científicas de que funciona", afirma o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Luís Fernando Tófoli.

Na Conquista, a presença nos encontros espirituais, que ocorrem três vezes na semana, é obrigatória -mesmo que o paciente prefira ficar sentado, sem participar.

Antes de todas as refeições reza-se e, às vezes, há uma "chamada oral" de salmos -o nome de um dos pacientes é chamado e pede-se para que ele recite um.

Também não é permitido tocar músicas "do mundo" (que não sejam religiosas).

A questão gera polêmica entre os especialistas.

Para Elisaldo Carlini, membro do comitê de peritos sobre drogas e álcool da OMS (Organização Mundial da Saúde), ela pode ajudar.

"O grande diferencial das comunidades terapêuticas é, justamente, a ênfase colocada na espiritualidade. O objetivo é que por meio da religião o indivíduo encontre a si próprio e encontre forças para superar o vício."

Para Tófoli, a religião é aceitável quando o tratamento não leva verba pública.

"Quando a gente envolve o dinheiro público no tratamento é complicado ter um modelo onde o indivíduo tem que celebrar rituais".

Ronaldo Laranjeira, coordenador do Programa Recomeço, diz que comunidades que fizerem o convênio com o Estado não poderão obrigar que os internos participem de atividades do tipo.

"Não vamos financiar conversão religiosa", diz. Ele reconhece, entretanto, que a maioria delas estabelece atividades espirituais.

"Elas praticam a reabilitação: parar de usar drogas e restabelecer valores básicos de vida. Por isso elas podem transmitir valores universais de espiritualidade".

Colaborou FERNANDA KALENA





"Já fui internado 28 vezes", conta em tom de voz baixo José Élio de Souza Lima, 49.

Seu Élio, como é chamado pelos outros "alunos", está há um ano na Conquista.

Quando estava perto de completar os nove meses de tratamento, saiu para visitar a família e recaiu. Teve que recomeçar na clínica do zero.

"Passei a usar drogas com 13 anos. Maconha, cogumelo, dois tipos de LSD, comprimidos e bebida. Depois veio a cocaína, o speed, a heroína e o crack. Há três anos, conheci a cocaína peruana", relata.

Por causa do vício, quase tudo o que tinha ele já "fumou" -a expressão é usada pelos viciados para falar dos pertences que venderam para poder comprar as drogas.

"Perdi uma loja de agasalhos infantis, um salão de cabeleireiro, uma oficina que meu pai me deu", diz.

Na casa que mantém em Barueri (Grande SP) sobrou apenas uma rede para dormir. Todo o resto ele vendeu.

A história é comum.

O projetista G.H, 30, loiro, olhos azuis e pinta de surfista/skatista, nunca vendeu nada de dentro do apartamento de classe média dos pais, na zona leste de São Paulo.

Mas por causa do vício em mesclado (mistura de maconha com crack), já entregou o próprio carro a traficantes, em troca de dois pinos de droga.

Pediu para que os homens sumissem com o veículo e, no dia seguinte, procurou uma delegacia para fazer um boletim de ocorrência por furto. "Fumou" todo o dinheiro recebido pelo seguro do carro.

Há ainda os que fizeram dívidas altas no banco para poder manter o vício. O funcionário público Lucas Nunes, 33, pela segunda vez na Conquista, desta vez há quatro meses, descobriu há pouco tempo que os empréstimos que fez somam R$ 40 mil.

"Tinha decaído demais, estava morando em um hotel na rua Amaral Gurgel [região central de São Paulo], R$ 30 a diária. Parei de ir ao trabalho, só ia pra pedir empréstimo no banco. Agora 'tô pagando.'"

O dinheiro todo serviu para comprar crack, a droga que era consumida pela maioria.

MACONHA

A exceção é W.J, 16, skate nos pés e boné do time de basquete americano Lakers na cabeça. Ele foi internado há dois meses na Conquista porque foi flagrado por um tio fumando maconha.

"Fumava uns cinco, seis baseados por dia", conta.

Casos como o dele não costumam ser aceitos na comunidade terapêutica.

Mas os psicólogos da Conquista decidiram acolhê-lo para tratar os problemas que o garoto tem com o padrasto -o menino diz que, após discutir e de ter sido agredido, tentou matá-lo. "Eu era muito revoltado", diz ele, que deve ficar mais quatro meses ali.

RECOMEÇO

O programa Recomeço, do governo de SP, vai financiar 3.000 vagas em instituições como comunidades terapêuticas e moradias assistidas a partir de agosto. Onze municípios do interior serão atendidos.

Nessas instituições, o tratamento custa menos do que em clínicas, pois não há serviço médico permanente. Por isso, só há internações voluntárias de pessoas sem patologias psiquiátricas, além do vício.





Vai no sentido correto o programa do governo do Estado de São Paulo que prevê remunerar instituições privadas especializadas no tratamento de dependentes de crack. São muitos os desafios para a correta implantação dessa iniciativa, contudo.

O Cartão Recomeço foi apresentado no início do mês pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que deve implementá-lo em julho.

Rapidamente o cartão ganhou a injusta pecha de "bolsa crack", por destinar auxílio de R$ 1.350 mensais a cada usuário da droga para garantir-lhe acompanhamento após superada a fase aguda da dependência.

O dinheiro, na realidade, será diretamente transferido às chamadas comunidades terapêuticas - centros particulares ou ONGs que acolhem dependentes químicos.

É salutar que o governo procure alternativas para evitar a recaída no uso do crack, droga que induz alto índice de reincidência. A primeira questão a ser enfrentada, porém, é a da capacidade técnica dessas comunidades terapêuticas.

O governo informa que credenciará 300 instituições para prestar os serviços de auxílio aos usuários, mas hoje é incapaz de dizer quantas entidades competentes existem no Estado. A qualidade dessas instituições, ademais, permanece desconhecida. É de estranhar que um credenciamento rigoroso não tenha precedido o anúncio da medida.

O recebimento das verbas deveria ficar condicionado a uma constante avaliação, com critérios objetivos e controle externo da evolução dos pacientes durante o prazo de tratamento, limitado pelo governo a seis meses. Instituições que descumprissem tais regras deveriam ser excluídas do programa.

Além disso, o Estado precisa garantir a laicidade do tratamento conferido aos dependentes, posto que grande número das comunidades terapêuticas hoje existentes tem caráter religioso. Outras primam pelo isolamento dos usuários, não por sua reinserção social --objetivo maior do programa.

Outra deficiência da proposta é não contemplar menores de 18 anos. Estudo da Universidade Federal de São Paulo mostra que, no Estado, 38% dos usuários de cocaína e seus derivados --crack, merla e óxi-- são adolescentes.

O governo alega que a exclusão se deve à falta de entidades especializadas em dependentes químicos nessa faixa de idade. Ora, a iniciativa privada é apenas supletiva, neste caso; cabe ao poder público a responsabilidade de prestar o atendimento adequado a essa população.



LinkWithin

Related Posts with Thumbnails