quinta-feira, 6 de junho de 2013

Aqueles calvinistas beberrões do Recife

Artigo publicado na Revista de História:

Bebem, sim, e vão conquistando

Na tomada de Pernambuco, holandeses se embriagaram o quanto puderam, para espanto e reprovação dos luso-brasileiros

João Azevedo Fernandes

O Recife dos holandeses era “um burgo de beberrões. Pessoas da melhor posição social eram encontradas bêbadas pelas ruas. Os próprios observadores holandeses da época se espantavam do contraste entre sua gente e a luso-brasileira”, como relatou o escritor Gilberto Freyre. E essa característica própria dos invasores poderia ser vista desde o início da conquista de Pernambuco.

Ao subirem as íngremes ladeiras da vila de Olinda, os soldados da poderosa Companhia das Índias Ocidentais (Westindische Compagnie, ou WIC) estavam bem cansados. Além da longa travessia do oceano, eles haviam marchado mais de seis quilômetros pela praia, sob um sol escaldante e travando combates com uma resistência que se esvaía conforme se aproximavam da orgulhosa capital de Pernambuco.

Apesar das dificuldades, o ataque foi um total sucesso. Os poucos portugueses e habitantes da terra que não haviam fugido foram dominados, e às 4 horas da tarde de 16 de fevereiro de 1630, a bandeira holandesa estava erguida na parte mais alta da vila. Imediatamente, os soldados livraram-se da disciplina militar e trataram de saquear o que pudessem. As igrejas foram despojadas de suas riquezas e as casas dos grandes senhores olindenses invadidas. Dos vários produtos encontrados nas casas e armazéns, um em especial agradou em cheio ao gosto dos recém-chegados: o vinho, disponível em grande quantidade.

Durante três dias, soldados e oficiais se embriagaram à farta, afogando as agruras da viagem e dos combates. Protestantes em sua maioria, usavam os cálices sagrados como copos e os panos das igrejas como “capas” — com as quais imitavam e zombavam de portugueses e espanhóis, caindo de bêbados pelas ruas, dando rebates falsos de ataque, “como brutos irracionais”, no dizer de um relato da época. Posteriormente, tanto holandeses quanto portugueses afirmaram que, se os alcoolizados invasores tivessem sofrido um contra-ataque, acabariam expulsos da vila por sua absoluta falta de condições para reagir.

O que aconteceu naqueles dias não foi um fato isolado. Durante todo o período holandês no Brasil (1630-1654), os luso-brasileiros e os invasores travaram uma verdadeira batalha de culturas, para além das ações militares. O estranhamento entre conquistadores e conquistados começava pela religião e estendia-se para a própria definição do viver em sociedade, refletida nas práticas cotidianas — que incluíam os costumes etílicos dos holandeses, totalmente inusitados para os homens da terra.

Essa distância entre as práticas etílicas tinha origens milenares, separando duas áreas culturais desde os tempos de gregos e romanos. De um lado, os povos mediterrâneos, bebedores de vinho, que associavam a bebida aos alimentos e tendiam a valorizar a temperança e a moderação no beber. De outro lado, os povos do norte da Europa, herdeiros das culturas célticas e germânicas, bebedores de cerveja, que valorizavam a embriaguez como um ato nobre e próprio dos grandes heróis, como Beowulf, e deuses, como Thor e Odin. Não é por acaso que esses povos foram os primeiros a popularizar o uso de novas bebidas destiladas, como o conhaque e o gim, a partir de fins da Idade Média.

Os holandeses eram vistos como grandes concorrentes ao título de maiores bebedores da Europa. William Temple, embaixador inglês em Haia na segunda metade do século XVII, dizia que a bebida era indispensável àquele povo, para que o espírito pudesse ser despertado sob um “clima tão pesado”, e que as condições climáticas impediam que os efeitos da bebida fossem mais “calamitosos”. Para Temple, não existia holandês que não houvesse se embebedado pelo menos uma vez na vida, pois sua existência austera só conhecia uma alegria e um luxo: o álcool.

O ato de se reunir em banquetes, onde se bebia muito e bem, era parte integrante da identidade holandesa, construída em sua luta de independência: a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648) contra os espanhóis, inimigos mortais do calvinismo e do modo de vida dos holandeses. Pintores como Jan Steen e Pieter de Hooch exibiam ricos mercadores e gente do povo divertindo-se em suntuosas salas de jantar e tabernas, misturando homens e mulheres que bebiam e se embriagavam. As bebedeiras eram tão típicas do “ser holandês” que o hábito comum de “animar” (com álcool) os soldados antes dos combates era chamado de dutch courage, “coragem holandesa”.

Ao conquistarem Pernambuco, a região açucareira mais rica do mundo, os holandeses trouxeram seu modo de vida para o Recife, urbanizado pelo conde Maurício de Nassau (1604-1679). Por mais que os naturais da terra devotassem simpatia a esse notável estadista, eles jamais deixaram de considerar os conquistadores como um povo herege, sem rei, governado por comerciantes sovinas, que dava excessiva liberdade às mulheres e que, para completar, se entregava de forma entusiasmada e descontrolada à bebida.

Os holandeses, por sua vez, afirmavam que, na raiz desta apartação cultural, estava a moderação e mesmo a abstinência de muitos luso-brasileiros. Relatórios holandeses observavam que “a bebida dos portugueses é principalmente água da fonte, que é muito boa e agradável”, ressaltando especialmente a abstinência feminina: “poucas são as que bebem vinho, e há muitas que em sua vida nunca provaram dele”.

Alguns funcionários da Companhia procuraram apresentar os costumes portugueses como um ideal a ser seguido por aqueles que desejassem prosperar no Brasil. Enquanto os luso-brasileiros viviam “de água, farinha, um pouco de bacalhau ou qualquer comida vulgar, de modo que em alguns engenhos não há vinho por muito tempo”, os neerlandeses não se contentavam “com tomar à mesa um trago de cerveja ou de vinho”, mas também se reuniam com os amigos, fazendo muitas despesas.

Entre os holandeses que tentavam coibir os costumes etílicos estavam os pregadores calvinistas. Dedicados à missão catequizadora, eles lamentavam o pendor dos índios para a embriaguez: quando bebiam, dizia um pregador, “passavam os dias e as noites pulando e cantarolando”, vício do qual nasciam “brigas e outros maus costumes”. Os religiosos chegaram a pedir para o Conselho dos XIX — responsável pela WIC em Amsterdã — que enviasse ao Brasil apenas “pessoas honradas para servir de mestres-escolas, não sendo pessoas inclinadas a bebidas já que os índios são muito chegados a este vício”. Mas essa preocupação estava longe de ser majoritária: o próprio Supremo Conselho do Recife costumava enviar “presentes de aguardente” aos índios. Em 1644, os holandeses desistiram oficialmente de seu ensaio de catequização.

Recepções, banquetes e jogos etílicos permaneceram no cotidiano dos conquistadores, tal como faziam na Holanda. O frade português Manuel Calado (1584-1654) — formalmente prisioneiro, mas íntimo de Nassau a ponto de frequentar sua casa e seus banquetes — dizia que a bebedeira era o “ordinário costume” dos holandeses. O que mais lhe chocava era a facilidade com que os homens, e ainda mais as mulheres, esvaziavam garrafas e copos.

O papel das mulheres nos “beberetes” era um dos principais motivos da repulsa luso-brasileira àqueles estranhos costumes, o que revela uma diferença marcante no papel social exercido por elas nas duas sociedades. Enquanto que nos Países Baixos as mulheres tinham ativa presença no mundo extra-doméstico, participando de festas de rua, indo às tavernas e recebendo convidados em casa, as portuguesas eram bastante segregadas e colocadas à parte dos assuntos públicos.

Quando o conde Maurício de Nassau convidou algumas mulheres luso-brasileiras para banquetear com ele, recebeu, segundo o frade Calado, a pronta resposta de que “não era uso, nem costume entre os portugueses comerem as mulheres, senão com seus maridos, e ainda com estes era quando não havia hóspedes em casa (...) porque nestes casos não se vinham assentar à mesa”. Essa postura era totalmente contrária à das estrangeiras do Recife. Nos banquetes que o conde ofereceu em homenagem à aclamação de D. João IV, em 1640, “as mais lindas damas que em Pernambuco havia”, holandesas, inglesas e francesas, bebiam alegremente, tanto ou mais do que os homens, dizendo que esse era “o costume de suas terras”.

Outra cerimônia presenciada pelo frade português, que também revela o abismo cultural entre conquistadores e conquistados, foi o funeral do irmão de Maurício de Nassau, conde João Ernesto, que morreu no mar e foi enterrado no Recife. Calado ficou impressionado com a gravidade da “diabólica cerimônia”, na qual “não havia música, nem preces, nem lágrimas”, mas o que o estarreceu de fato foi a enorme quantidade de alimentos e bebidas disponíveis aos convidados, algo típico nos funerais holandeses na Europa. Entre inúmeros brindes e discursos, foram esvaziados muitos frascos de vinho espanhol e francês, cerveja e aguardente, com as consequências previsíveis — “e estes eram os Pater Noster [Pai Nosso], e responsos, que rezavam pelo defunto”.

“Era o costume de suas terras”. Essas palavras, repetidas muitas vezes por Manuel Calado, eram um verdadeiro emblema da segregação auto-imposta pelos luso-brasileiros com relação aos invasores. Vivia-se uma luta entre dois mundos irremediavelmente separados, pela religião certamente, mas também pelas diferenças sobre o que fazer ao redor de uma mesa. E sobre o que fazer com uma garrafa.

João Azevedo Fernandesé professor da Universidade Federal da Paraíba e autor de “A contenção e o excesso: Bebida, embriaguez e identidades étnicas no Brasil Holandês (1630-1654)”, em Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades (Lisboa, 2005, disponível em bit.ly/QFtL2M).

Saiba mais - Bibliografia

CALADO, Frei Manoel. O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade. Recife: CEPE, 2004.
MELLO, Evaldo Cabral de (org.). O Brasil Holandês.São Paulo: Penguin Classics, 2010.
SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: a cultura holandesa na Época de Ouro, uma interpretação. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.



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