A esta pergunta pra lá de complicada se propõe a responder o documentário "Le Dernier des Injustes" (O Último dos Injustos), conforme a resenha abaixo, do crítico de cinema Amir Labaki, publicada no jornal Valor Econômico no dia 31/05/13:
O Shoah, o rabino e o cineasta
A pré-estreia mundial fora de competição de "Le Dernier des Injustes" (O Último dos Injustos), o sexto filme do documentarista francês Claude Lanzmann, foi o grande evento cinematográfico do Festival de Cannes 2013, encerrado no domingo com a Palma de Ouro para "La Vie d'Adèle" (A Vida de Adèle), de Abdellatif Kechiche. Não poderia haver conclusão mais poderosa para a saga fílmica sobre o Holocausto - iniciada em 1985 com o monumental "Shoah".
Em cerca de nove horas, "Shoah" desmonta a macabra indústria da morte colocada em prática para executar a "solução final" ("endlösung") nazista. Foi para aquele filme que Lanzmann entrevistou, em 1975, em Roma, Benjamim Murmelstein, mas o depoimento ficou de fora. "O tom era outro", disse o cineasta.
Murmelstein foi o terceiro e último presidente, de fins de 1944 até a liberação em meados de 1945, do conselho judaico de Theresienstadt, o gueto "modelo" na então Tchecoslováquia, a cerca de uma hora de Praga. Antes disso, a partir de 1938, o rabino conviveu intensamente em Viena com Adolf Eichmann (1906 - 1962). Segundo Lanzmann, graças a Murmelstein, mais de 120 mil judeus austríacos conseguiram escapar.
Nem por isso a História foi compreensiva para com os "anciões" ("judenälteste") que, por determinação nazista, lideraram os conselhos judeus. Murmelstein foi o único que sobreviveu à Segunda Guerra. Podendo buscar exílio após a liberação do gueto, entregou-se à prisão da qual saiu, inocentado, após um ano e meio.
O estigma de colaboracionista acompanhou-o até a morte, em 1989. Na historiografia tradicional do Holocausto, a começar do clássico de Raul Hilberg ("A Destruição dos Judeus Europeus"), os dignatários judeus dos guetos foram sempre tratados como traidores. Tudo muda agora a partir de "O Último dos Injustos".
"Eu quis mostrar que os ditos colaboradores judeus não foram colaboradores", disse Lanzmann em entrevista ao diário parisiense "Liberátion". "Eles nunca quiseram matar judeus, não partilhavam a ideologia nazista, eram infelizes sem poder. Nós reconhecemos facilmente quem eram os assassinos."
Mas o depoimento de Murmelstein vai muito além de esclarecer seu papel em Theresienstadt e, por extensão, o de seus homólogos em guetos como os de Cracóvia e Varsóvia (Polônia) e Vilnius (Lituânia). Estimulado pela interlocução cúmplice e informada de Lanzmann, seu testemunho detalha e corrige episódios centrais da perseguição nazista aos judeus.
Suas correções mais marcantes dizem respeito a Eichmann e à "noite do cristais". A imagem do burocrata frio e distante, mero gerente das operações logísticas postas em prática para concretizar o Holocausto, rui definitivamente com as revelações de quem com ele conviveu por mais de sete anos, como Murmelstein.
Agressivo, corrupto e violento, Eichmann nada tinha da "banalidade do mal" a ele imputada por Hannah Arendt ao cobrir para a "The New Yorker" seu célebre julgamento em Jerusalém, em 1961, depois de sua captura por um comando israelense na Argentina. O próprio processo é também duramente criticado por Murmelstein, que o considera conduzido por uma acusação mal preparada. Ainda assim, Eichmann foi condenado à morte e executado por enforcamento em maio de 1962.
Murmelstein depõe como testemunha ocular da (por muito tempo negada) participação pessoal de Eichmann na "noite dos cristais" ("kristallnacht"), o ataque nazi a casas, lojas e escolas judaicas na Alemanha e na Áustria anexada entre 9 e 10 de novembro de 1938. Ele ainda lança luz sobre a data do ataque, lembrando ter sido marcado para o exato 20ºaniversário do estabelecimento da República de Weimar, a "República Judaica", classificada como uma traição por Hitler. "A 'noite dos cristais' é a punição dos judeus pela República de Weimar", afirma Murmelstein.
"O que ele conta é uma magistral lição de história", diz Lanzmann. Mas é ele que a instiga e a formata. Lanzmann é tão protagonista de "O Último dos Injustos" quanto seu entrevistado. E o é duplamente.
Um duplo Lanzmann ocupa a tela: o entrevistador de Murmelstein, na Roma de 1975, aparentando menos que seus então 50 anos, e o cineasta de hoje, que aos 87 anos nos guia por vários dos endereços essenciais da narrativa do ex-ancião, a começar, já na primeira cena, da estação de trem de Bohusovice, na qual desembarcavam os judeus destinados ao confinamento em Theresienstadt.
Uma sequência memorável frisa a um só tempo essa passagem do tempo e a desumanidade nazista, quando um ofegante Lanzmann esforça-se para subir as longas escadarias que, em 1940, conduziam os veteranos judeus a suas novas instalações no gueto. Nessa hora, Lanzmann é diretor e intérprete, presente e passado, sobrevivente e vítima - História plena.