domingo, 30 de junho de 2013

O que um papa argentino tem a ver com lobisomem?

Este blogueiro brasileiro que vos escreve tem uma certa característica que para muitos é considerada um defeito: ama a Argentina!

Uma das razões para esse sublime amor - que beira a esquizofrenia patriótica - é a capacidade dos hermanos em fazerem a sua realidade superar as mais desvairadas ficções, como na deliciosa crônica abaixo, de Ariel Palacios, para o Estadão:

O papa, o lobisomen e o ex-ditador

Em clima de fantástica lua cheia nesta semana, uma postagem antiga, atualizada para esta ocasião, sobre os lobisomens e o ditador. E um papa.

Tradicionalmente, desde 1907, na Argentina uma mãe que dê à luz a seu sétimo filho homem possui o direito de solicitar ao presidente da República que seja o padrinho da criança. O motivo desse costume foi a superstição de que o sétimo filho masculino – tal como no Brasil – tornaria-se“lobisomem”, isto é, o homem-lobo (“lobizón” na Argentina). Ou, como diziam os gregos, lykánthropos (λυκάνθρωπος).

O costume de pedir o apadrinhamento presidencial começou quando um casal de imigrantes alemães que havia residido na Rússia – Enrique Brost e Apolonia Holmann – teve seu sétimo filho homem, José Brost, na cidade bonaerense de Coronel Pringles. Os Brost pediram ao presidente José Figueroa Alcorta que fosse o padrinho. Eles argumentaram que na Rússia, país onde haviam morado, era tradição o czar apadrinhar a criança para quebrar o “feitiço” do sétimo filho. E, já que estavam na Argentina, pretendiam conseguir essa “garantia” por parte do presidente Figueroa Alcorta. O aristocrático presidente concordou.

Essa tradição, obviamente, acabou na Rússia com a Revolução de 1917, liderada por V.I.Lenin. Mas, sobreviveu na Argentina.

A esperança dos pais de um sétimo filho homem, há mais de 100 anos, era que um apadrinhamento presidencial poderia suavizar os problemas decorrentes da suposta condição“licântropa” da criança e da discriminação social. Ser afilhado do presidente incluía o benefício de bolsas de estudos para toda a vida escolar e uma medalha de ouro. Os anos passaram e a lenda do lobisomem perdeu apelo popular. Mas, o costume do batizado presidencial permaneceu. E, em 1973 foi reforçado ao ser transformado em lei (número 20.843), pelo presidente Juan Domingo Perón, em seu derradeiro governo.

Em 1977, em plena ditadura, Josefa Castillo estava no quinto mês de gravidez quando seu marido, Roberto Castillo – que trabalhava em uma fábrica de frangos, sem militância política alguma – foi sequestrado pelos militares. Desesperada, tentou liberar seu marido.

Sem conseguir, meses depois, quando deu a luz a Gastón, seu sétimo filho homem, recorreu ao apadrinhamento presidencial com a expectativa de que isso salvaria a vida de seu marido. Ela pediu e obteve – com sucesso – que o poderoso ditador argentino, o general Jorge Rafael Videla, fosse o padrinho de seu filho, seguindo a tradição presidencial.

No entanto, apesar do batizado do filho, nada conseguiu sobre seu marido. Os ossos de Roberto – com sinais de ter sofrido torturas extremas – foram descobertos em 2009. Havia sido enterrado pelos militares de forma clandestina como um indigente no município de Avellaneda.

Desde que os restos mortais de seu pai foram encontrados, seu filho Gastón tentou convencer os padres de sua paróquia a remover o general Videla de seu status de padrinho de batizado. No entanto, o jovem não teve sucesso. Um dos clérigos, indicando que remover o padrinho indigesto era mais complicado, propôs que recorresse a apostasia, isto é, que ele abjurasse do cristianismo. Mas, o jovem, muito religioso, negou-se.

Em outubro de 2010 Gastón pediu ao então cardeal Jorge Bergoglio, primaz da Argentina, que o ex-ditador fosse removido de seu status de padrinho, já que o vínculo religioso com Videla “fere, mortifica e infama o ato sagrado do batizado”.

El papa es argentino
O cardeal Bergoglio – que desde março deste ano é o papa Francisco – aceitou o pedido e determinou que o ex-ditador, autor do massacre de milhares de pessoas, não será mais o padrinho de Gastón. O jovem, que é praticante, estava livre para escolher um novo padrinho.

O escrivão do arcebispado de Buenos Aires, César Sturba, explicou que o código de Direito Canônico determina que entre as condições para ser padrinho de batizado está a de “levar uma vida coerente com a fé e com a missão que receberá”. O ex–ditador, acusado de sequestros, torturas e assassinatos, não cumpria os requisitos de “amor cristão”.

Videla, ex-“Senhora da vida e da morte”, morreu de um ataque cardíaco no dia 17 de maio sentado no prosaico vaso sanitário de sua cela no presídio de Marcos Paz, onde cumpria pena de prisão perpétua pelo seqüestro, tortura e assassinato de milhares de civis durante a ditadura militar.

SIMBOLISMO - A medida determinada por Bergoglio possui grande valor simbólico, pois trata-se de uma rejeição da cúpula Igreja Católica a Videla, embora por vias não convencionais.

Durante a ditadura a Igreja esteve intensamente alinhada com os militares. Padres católicos presenciaram torturas realizadas nos centros clandestinos de detenção e pressionaram os prisioneiros a delatar, com o encobrimento da confissão, o nome de militantes políticos que haviam conseguido escapar. Um dos clérigos envolvidos nas ações do regime militar, o capelão Christian Von Wernich, além de presenciar, protagonizou torturas nos centros clandestinos na província de Buenos Aires. Em 2007 Von Wernich foi condenado à prisão perpétua por 34 sequestros, 31 casos de torturas e sete homicídios.

No entanto, o jornalista Horacio Verbitsky, do jornal “Página 12”, acusa Bergoglio de ter colaborado com a ditadura, delatando dois jovens sacerdotes, que foram torturados. Bergoglio nega.

Leonardo Boff
O nobel da paz argentino Adolfo Pérez Esquivel e o brasileiro frei Leonardo Boff, situados mais à esquerda que Verbitsky, defendem o papa, argumentando que não colaborou com o regime militar. Ao contrário, dizem, discretamente salvou pessoas de serem presas pelo regime.

A presidente Cristina Kirchner e seus ministros não fizeram menções sobre os argumentos de Verbitsky (embora o jornalista seja um aliado fiel do governo). Na contra-mão do jornalista, após dias a eleição do novo papa sem saber como posicionar-se perante Francisco, o governo Kirchner passou à estratégia de elogiar o sumo pontífice (e até declarar que Bergoglio é peronista).

MENINAS-LOBA – Embora a lenda do lobisomem não se aplique às filhas, em 2008 a presidente Cristina Kirchner assinou um decreto que determina que o privilégio do apadrinhamento do sétimo filho não se aplicará somente aos homens, mas também às mulheres.

No entanto, diversas parlamentares, entre elas, a deputada Elisa Carrió, da Coalizão Cívica, destacam que a lei, “atualizada” com a inclusão de mulheres (a sétima filha mulher), é anacrônica. “É um privilégio que, longe de ter fundamento em um mérito, nasce da superstição da licantropia”, sustenta.



LinkWithin

Related Posts with Thumbnails