Hannah Arendt, a filósofa alemã de origem judaica que viveu em plena era nazista, da qual - felizmente - teve tempo de fugir, é uma personagem que já tivemos oportunidade de abordar com mais riqueza de detalhes na resenha que fizemos do seu livro "Eichmann em Jerusalém".
Chega agora a ótima notícia de que a sua riquíssima e controvertida vida foi transposta para as telonas, conforme você pode conferir pelo artigo do IHU e pelo vídeo que segue logo abaixo.
De brinde para os admiradores da brilhante "filósofa" (epíteto que ela não gostava) vai ainda a entrevista completa de Hannah Arendt ao programa da TV alemã "Zur Person" em 1964, com legendas em inglês:
O pensamento de Hannah Arendt em um filme fascinante
A diretora Margarethe von Trotta, cujo numinoso filme de 2009 Visão contou a história da vida de Santa Hildegarda de Bingen, se debruçou sobre a história de outra mulher influente, a filósofa e teórica política Hannah Arendt (1906-1975).
A análise é da irmã paulina norte-americana Rose Pacatte, diretora do Pauline Center for Media Studies de Los Angeles. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 25-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hannah Arendt começa em Nova York, em 1960, onde Arendt (Barbara Sukowa), uma imigrante alemã e judia secular, escreve e ensina em uma universidade. Quando o Mossad, a agência de inteligência israelense, captura o oficial nazista Adolf Eichmann e o leva clandestinamente a Jerusalém para ser julgado, Arendt, que tem um grande interesse filosófico no totalitarismo, discute com seu marido, Heinrich (Axel Milberg), sobre o fato de pedir que William Shawn (Nicholas Woodeson), o editor da revista The New Yorker, a envie para cobrir o julgamento iminente para a revista. Shawn hesita, porque, como observa o seu assistente, "os filósofos não obedecem prazos". Mas ele concorda, e Arendt parte para Israel em 1961.
O filme gira em torno da cobertura de Arendt do julgamento para a revista e das suas aulas que abordam as controvérsias que os artigos despertam em seu retorno.
Arendt fica atordoada quando fica sabendo que o réu será mantido em uma "jaula" de vidro durante o julgamento (para protegê-lo) e questiona a legitimidade da jurisdição de Israel para interrogar um homem por crimes não cometidos lá, cometidos, de fato, mesmo antes que Israel fosse um país. Ela pensava que o único interesse do tribunal era aderir às exigências da justiça para os assassinatos cometidos por Eichmann, mas o julgamento era mais complicado do que isso por causa do seu papel como um burocrata que, ao compartimentalizar a sua consciência, facilitou a "Solução Final" e as mortes de milhões de pessoas.
Assim, o tribunal foi confrontado com um crime que ele não conseguiria encontrar em um livro de direito e com os gostos de um criminoso que ele nunca tinha visto antes. O primeiro-ministro David Ben-Gurion estava determinado a realizar um julgamento de fachada, e testemunhas após testemunhas contaram as atrocidades nazistas cometidas contra elas e suas famílias, enquanto Eichmann afirmava, e nunca vacilava, que ele nunca tinha matado ninguém.
Mesmo assim, segundo Arendt, o tribunal "tinha que definir um homem em julgamento por seus atos", porque não era possível interrogar um sistema ou uma ideologia.
As reportagens de Arendt na New Yorker distinguiam entre o mal radical de uma ideologia e o mal banal de um burocrata que seguia a lei. Os leitores de Arendt não conseguiam compreender as complexidades que ela estava tentando enfatizar e acusaram-na de tomar o lado de Eichmann. As polêmicas aumentaram quando o julgamento levantou a questão dos líderes judeus que haviam trabalhado com a Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial e que talvez haviam facilitado as mortes dos judeus. Arendt informou o fato, mas seus leitores interpretaram isso no sentido de que ela culpava o povo judeu pelas suas próprias mortes.
Eichmann, o organizador das deportações judaicas e dos campos de extermínio, logo havia defendido em sua defesa que ele só tinha "obedecido ordens". Como Arendt explica para os seus alunos em Nova York depois do julgamento, "ele insistia em renunciar a sua culpa pessoal. Ele não tinha feito nada por iniciativa própria". Em suma, Eichmann preferiu não pensar. Ele foi junto com a multidão.
Como uma filósofa que estudara com Martin Heidegger (1889-1976), com quem ela teve um intenso caso de amor, os escritos de Arendt se focavam em como a capacidade de uma pessoa de pensar é o que faz dela humana e um membro da sociedade. Os seus pontos de vista sobre abrir mão das habilidades de pensamento crítico aos outros é central para as conclusões que ela tirou do julgamento, ao qual ela via como "a totalidade do colapso moral que os nazistas causaram na respeitável sociedade europeia".
Poucas pessoas, mesmo na academia, entenderam a sua resoluta abordagem de filósofa ao relatar e avaliar as complexidades que ela via em torno do julgamento de Eichmann. Arendt ataca os seus críticos, muitos dos quais eram amigos íntimos, dizendo que os assassinatos de caráter não são argumentos, que "entender é a responsabilidade de qualquer pessoa que tenta colocar a ponta da caneta no papel sobre esse assunto", porque "tentar entender não é o mesmo que perdoar".
Na cena final do filme, Arendt responde à insistência de Eichmann de que ele estava apenas fazendo o seu trabalho e que, pessoalmente, não matara ninguém. "O maior mal do mundo é o mal cometido por ninguém", diz ela. "O mal cometido pelos homens sem motivo ou convicção, sem um coração perverso ou palavras demoníacas é o que eu chamo de 'banalidade do mal'".
Hannah Arendt, coescrito por Von Trotta e Pam Katz, não é um filme biográfico em larga escala, embora haja flashbacks à vida de Arendt quando estudante. O diálogo preenche os detalhes da sua breve internação em um campo de prisioneiros francês. O filme flui facilmente do inglês para o alemão, embora demore um pouco para se acostumar com o inglês com sotaque alemão de Sukowa. O seu desempenho é simplesmente justo. Von Trotta e Sukowa, que também interpretou Hildegard, fazem uma equipe formidável nessas histórias sobre mulheres fortes e influentes.
O roteiro parece em grande parte baseado no livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, que inclui, com algumas edições de Arendt, os artigos publicados na New Yorker. Publicado pela primeira vez em 1963 nos Estados Unidos, o livro não foi publicado em Israel até o ano 2000. Eu descobri que a edição de 2006 do livro, com uma introdução de Amos Elon, faz uma excelente companhia para o preenchimento das questões que o filme de Von Trotta levanta.
Outra importante intelectual norte-americana da época, Mary McCarthy (Janet McTeer), é uma grande amiga de Arendt. Elas compartilham conversas sobre amor e relacionamentos. McTeer parece estranha, mas se encaixa na minha imagem dela como romancista e crítica. Embora Arendt perca seus amigos e colegas homens nas polêmicas após a série da New Yorker, seu marido fica ao lado dela. O filme termina como começa: com Arendt fumando um cigarro, pensando.
Eu achei o filme fascinante, embora o seu estilo expositivo possa não agradar a alguns. A inclusão de imagens de arquivo do julgamento de Eichmann é arrepiante, enquanto ele professa a inocência pelas mortes de 6 milhões de pessoas. Mas se você for como eu e se lembrar da captura e do julgamento de Eichmann na televisão (eu era muito jovem para apreciar a revista New Yorker), esse filme e as profundas questões que ele evoca sobre o mal e a responsabilidade humana, a legitimidade da tortura e a jurisdição nessa era de guerra como vida normal, assim como os terríveis episódios de genocídio no fim do século XX e início do século XXI, com as pessoas fazendo pouco ou nada para detê-los, valerão muito o seu tempo.