quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Quando o bispo Sardinha virou flauta


Bom, essa é só uma remotíssima hipótese levantada pelo brilhante artigo abaixo, de Luisa Tombini Wittmann, que mostra como a música foi decisiva na evangelização dos indígenas brasileiros, matéria publicada na Revista de História:

Apelo gospel

Jesuítas usaram a música para propagar o Evangelho e doutrinar índios.

Luisa Tombini Wittmann

No meio da selva tropical, padres de batinas longas e pretas, com a cruz no pescoço, ensinaram índios nus e pintados a rezar o Pai-Nosso. E a música foi uma grande aliada nessa tarefa religiosa: os nativos pediram bis ao ouvir o canto de uma procissão católica, e os próprios jesuítas acabaram tocando música indígena, conforme os relatos dos missionários que desembarcaram no Brasil em 1549. Não seria tarefa simples a aproximação entre pessoas tão diferentes, mas já nos primeiros dias do contato surgiram pistas de como a música poderia ajudar no diálogo entre os jesuítas e os nativos.

Na época em que navios aproximavam culturas que até então não se conheciam, os seguidores de Inácio de Loyola (1491-1556), membros da Companhia de Jesus, ficaram incumbidos de disseminar a palavra de Cristo entre povos tão distintos como índios e indianos. A crise religiosa europeia forçava a monarquia portuguesa a fazer propaganda do catolicismo, que estava abalado pela Reforma Protestante. Na costa do Brasil, a mensagem cristã ecoou por meio da música, o que é intrigante, porque os jesuítas não costumavam cantar e tocar em suas celebrações litúrgicas, seguindo as regras da Companhia de Jesus. Loyola temia que seus discípulos fossem desviados da principal vocação, que era a atividade missionária. Mas os jesuítas em missão percebiam a cada dia que a música, muito estimada pelos índios, poderia ser um elemento facilitador da evangelização, e a incluíram até mesmo nas missas que celebravam. Considerada linguagem universal, essa arte era perfeita para facilitar a comunicação.

Manuel da Nóbrega (1517-1570) acreditava que deveria contar com a presença de um grupo de músicos para garantir o sucesso das expedições de catequização. Dizia-se que os índios permitiriam a entrada de inimigos em suas aldeias, e até poupariam da morte os guerreiros capturados, caso soubessem cantar e tocar. A postura de Nóbrega o motivou a delegar a um músico, Antônio Rodrigues (1516-1568), o importante cargo de primeiro mestre-escola de São Paulo. O cantor e flautista foi também responsável pela nobre tarefa de ensinar os filhos dos índios a ler, a escrever e a cantar nas capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia. Os jesuítas chegaram a solicitar o envio de instrumentos e músicos de Portugal, tamanho era o fascínio que os ameríndios demonstravam pelas canções europeias.

Muitas das narrativas jesuíticas enaltecem a missão ao relatar casos de índios que tocavam e cantavam músicas sacras. Há, porém, indícios de outras manifestações sonoras nas aldeias, inclusive de jesuítas cantando ao modo indígena. Dias após sua chegada, o padre Juan de Azpilcueta Navarro (1521-1557) ensinava o Pai-Nosso conforme os cantos dos índios. Acreditava que, desta forma, além de o aprendizado ser mais rápido, a principal oração do cristianismo cairia no gosto local. Ao visitar aldeias de índios gentios (não cristianizados), os jesuítas costumavam entrar cantando música religiosa europeia, ritual indígena ou novos sons resultantes do contato. Tudo isso prova que a mistura cultural com os índios foi longe, levando inclusive os meninos portugueses a cortar o cabelo igual ao dos curumins.

Padres e meninos órfãos, vindos de Lisboa para auxiliar na catequização das crianças indígenas, participaram de festas gentílicas dançando e tocando ao som do maracá, instrumento sagrado que emitia som similar às cascavéis trazidas pelos europeus para escambo com os nativos. Ambos são uma espécie de chocalho, cujas esferas ocas têm pedrinhas no interior que produzem som por meio da percussão, sendo a cabaça natural do maracá sustentada por um pedaço de pau e decorada com penas, grafismos e às vezes feições humanas. Porém, algo mais uniu cascavéis e maracás: as viagens pelos mares oceânicos. Instrumentos indígenas também fizeram a travessia do Atlântico, levados por índios que deixaram suas aldeias na América para conhecer a Europa. Em Paris e Rouen, espetáculos de índios com seus maracás divertiram a nobreza, o clero e a população francesa em 1550 e 1613, períodos em que estabeleciam projetos comerciais e colonizadores nos atuais estados do Rio de Janeiro e do Maranhão.

Mas a troca musical nas aldeias coloniais não se deu sem percalços. O primeiro bispo do Brasil, Pero Fernandes Sardinha (1496-1556), alertou: viemos para catequizar o gentio, e não o contrário. Manuel da Nóbrega travou com ele uma acirrada batalha de palavras, iniciada em correspondência enviada a Lisboa em 1552 para o padre Simão Rodrigues (1510-1579), um dos fundadores da Companhia. Sardinha viu e ouviu europeus cantando em louvor a Deus, mas ao modo gentílico. Relatou, indignado, que tocavam instrumentos musicais usados pelos índios em rituais antropofágicos. O bispo afirmou que assim os evangelizadores poriam a perder seu árduo trabalho, pois alimentavam nos nativos a ideia de que os costumes indígenas eram verdadeiramente bons.

A resposta de Nóbrega não tardou: ele se justificou em carta ao mesmo destinatário. Escreveu que, ao cantar na língua, no tom e com os instrumentos musicais locais, atraía o coração dos índios. Certa vez, Nóbrega afirmou que seria por meio da música que se conquistariam todos os índios da América. Mas Sardinha discordava. Para ele, as atitudes dos jesuítas e as manifestações indígenas que compartilhavam eram inadmissíveis e inaudíveis. O destino interrompeu a contenda poucos anos depois, quando o navio que levava o bispo à metrópole naufragou na costa do atual estado de Alagoas e os tripulantes foram devorados pela população indígena local. Sabe-se que os ossos de alguns inimigos mortos pelos índios se transformaram em utensílios domésticos, ou até mesmo em instrumentos musicais. Podemos cogitar, e não seria de todo fantasia, que os ossos do grande opositor da música nas aldeias tenham virado, por ironia do destino, flauta indígena.

A experiência cotidiana nas aldeias exigia que os jesuítas adaptassem regras, fizessem concessões e até mesmo expressassem costumes dos índios, pelo menos aqueles que não eram vistos como ritos idólatras ou ofensivos à religião católica. Ao contrário da poligamia e da antropofagia, a música indígena foi até incentivada. Dos males, o menor, pensavam os religiosos. Um século após o contato entre os primeiros jesuítas com os tupis, Antônio Vieira (1608-1697) seguia na Amazônia os caminhos de Manuel da Nóbrega. O ilustre jesuíta foi um defensor da música nas atividades missionárias, e em seus escritos descreveu festas que conjugavam costumes nativos e europeus, inclusive musicais. Em carta de 1654, declarou com uma clareza impressionante que não se deve proibir os índios de cantar e se alegrar. Afinal, não seria perspicaz aborrecer aqueles que se pretende conquistar.

Os índios tinham uma capacidade única de abertura para o outro, e uma necessidade de absorvê-lo de maneira antropofágica, literal e metaforicamente. O contato com o diferente os transformava, sem que isso implicasse uma recusa de si mesmos. Para eles, aprender música católica não significava um desprezo pela sua musicalidade ou sua cultura. O desejo de expressá-la e aprendê-la fez com que os missionários a utilizassem com o propósito de se aproximar cada vez mais daqueles que queriam catequizar. E isso foi feito via sonoridades europeias e indígenas, gerando mesclas musicais.Para entender esta história, deve-se perceber a catequese como consequência do contato, e não como um projeto prévio, imutável e bem-sucedido. A música nas missões revela muito mais do que um estratagema jesuítico, pois se trata de uma história de relações entre diferentes universos, em que todos foram protagonistas. As estratégias de evangelização não foram totalmente elaboradas na Europa, mas também moldadas no cotidiano compartilhado das aldeias.

Nos primeiros anos da presença dos jesuítas em terras indígenas, Nóbrega anunciou que buscaria todos os meios para atrair os índios. Não há dúvida de que a música logo se revelou uma via indispensável no diálogo entre culturas. E ecoou por séculos pelas aldeias do Novo Mundo. Para além do célebre verso modernista de Mário de Andrade, “sou um tupi tangendo um alaúde!”, temos também aqui uma imagem inversa, mas nem por isso oposta: o jesuíta que toca o maracá. Instrumentos passam de mão em mão, trocados e tocados no encontro entre sujeitos tão distintos como um guerreiro tupi e um evangelizador jesuíta.

Luisa Tombini Wittmann é historiadora e autora do livro O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926) (Letras Contemporâneas, 2007).

Saiba Mais - Bibliografia

CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954.

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2003.

Saiba Mais - Internet

“Os índios na história do Brasil”, de John Monteiro.


Na gravura aquarelada de Keller Leuzinger, de meados do século XIX, o interior de uma igreja no atual Amazonas. Os jesuítas perceberam a importância da música no processo de integração cultural.(Fundação Biblioteca Nacional)




Ao ler o artigo acima, é inevitável relembrar o espetacular filme "A Missão" ("The Mission", 1986), dirigido por Roland Joffé, com o elenco estelar que incluía Robert de Niro, Jeremy Irons, Liam Neeson e Aidan Quinn numa das maiores obras-primas que o cinema já produziu e que reproduziu os conflitos que os jesuítas tiveram no Brasil não só com os índios, mas principalmente com a Coroa portuguesa.

Primeiro, a cena em que o padre Gabriel (interpretado por Jeremy Irons) toca oboé para fazer contato pacífico com os aborígenes:


Segundo, o trailer do filme com legendas em português:


Terceiro, a cena que precede a destruição da missão pelos portugueses, com o coral dos guaranis cantando "Ave Maria" em latim:


Se você ainda não teve oportunidade de ver esse filme, não faz ideia do privilegio que está perdendo.




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