Matéria publicada no Estadão de 31/08/14:
Ateus dos EUA se organizam para influenciar política
CLÁUDIA TREVISAN
Em contraposição à crescente direita religiosa, céticos tentam promover candidaturas com uma visão de Estado mais secular
Com o avanço da direita religiosa nos EUA, os descrentes decidiram sair do armário e se organizar para influenciar políticas públicas, principalmente nas áreas de educação, saúde e mudanças climáticas. Depois de estabelecer um grupo de lobby em Washington, os céticos de todo o gênero criaram um comitê para financiar candidatos às eleições legislativas de novembro comprometidos com uma visão secular de governo.
Nenhum integrante do Congresso americano é abertamente ateu, em um reflexo do rechaço a essa opção em um país no qual referências religiosas frequentam as manifestações políticas. O presidente dos EUA termina seus discursos solenes com "Deus salve a América" e todas as sessões do Senado e da Câmara são abertas por capelães oficiais, que juntos ganham salários anuais de US$ 345 mil, pagos com dinheiro público.
Na última década e meia, a influência dos conservadores religiosos ultrapassou os rituais e passou a afetar uma série de aspectos da vida pública americana. Em muitas escolas, a Teoria da Evolução começou a ser ofuscada pelo ensino do criacionismo, que apresenta a visão bíblica da origem do mundo.
As restrições ao aborto aumentaram e o rechaço ao custeio de certos métodos anticoncepcionais por motivos religiosas foi chancelado pela Suprema Corte, que também considerou constitucional a realização de orações em encontros da comunidade para discutir políticas públicas.
Sair do armário não é só uma figura de linguagem. Os militantes da não religião seguem os passos dos gays e dos ativistas que defendem direitos civis para ampliar a visibilidade. "Ao não sermos notados, ajudamos a criar uma atmosfera na qual todo o mundo nos EUA parece ser cristão. Os secularistas devem ser visíveis e participar do debate público, para que os deputados e senadores tenham de considerar o que seus eleitores ateus e agnósticos pensam, o que reduz o poder da direita religiosa", disse o advogado David Niose, diretor da American Humanist Association (AHA), uma das principais entidades seculares dos EUA.
Criada em 1941, a organização ganhou visibilidade na última década, em parte como resposta ao crescimento do fundamentalismo cristão. O número de associados que contribuem financeiramente para a entidade se multiplicou por seis, para 29 mil. Outros 300 mil são seguidoras da AHA no Facebook.
"Um dos nossos objetivos é nos livrar do estereótipo negativo e criar uma atmosfera na qual as pessoas podem ser abertas em relação a suas crenças e saber que terão apoio de organizações como a nossa", observou Bishop McNeill, coordenador do Freethought Equality Fund, um comitê que arrecadou US$ 25 mil em doações individuais de aproximadamente 500 pessoas. O grupo declarou apoio a 15 candidatos, nem todos ateus. Entre eles, há religiosos que professam uma agenda secular, na qual está a separação entre Estado e Igreja.
Apesar de minoritários, os secularistas são a fatia demográfica que cresce mais rapidamente nos EUA. Sua participação subiu de 15,3% da população, em 2007, para 19,6%, em 2012. A maior parte desse contingente diz não ter nenhuma convicção particular e não se identifica com os rótulos de "ateu" ou "agnóstico".
O que os une é a não filiação a uma religião, o que levou o Pew Research Center a batizá-los de "nenhuns". Entre os jovens de 18 a 29 anos, o porcentual de "nenhuns" é de 32%, mais que o dobro dos 15% registrados entre pessoas de 50 a 64 anos. Na faixa de 30 a 49 anos, o índice é de 21%. "A maioria das pessoas da próxima geração não terá filiação religiosa", aposta Don Wharton, ativista ateu de Washington. Segundo ele, o rótulo "humanista secular" tende a encontrar menos resistência que "ateu". "Os ateus ainda são demonizados e vítimas de intolerância. Temos de mostrar que temos tantas preocupações éticas quanto os humanistas."
Tribunal derrubou lei contra ateísmo na Carolina do Sul
Originário de família judaica contestou norma que proibia ateus de ocuparem cargos públicos no Estado
Criado numa família judaica ortodoxa da Filadélfia, Herb Silverman tornou-se descrente na adolescência e foi um não religioso "apático" até o fim dos anos 80, quando se mudou para a Carolina do Sul e descobriu que a Constituição estadual proibia ateus de ocuparem cargos públicos.
"Achei que isso era demais." Silverman consultou advogados da União Americana pelas Liberdades Civis (UCLA, na sigla em inglês) e concluiu que o único caminho para derrubar a restrição era disputar o governo estadual como candidato abertamente ateu e levar o caso ao Judiciário. Na eleição de 1990, ele registrou seu nome e deu início a uma batalha judicial que só terminou em 1997, quando a Suprema Corte da Carolina do Sul decidiu que o veto aos ateus era inconstitucional. O Estado fica no "Cinturão da Bíblia" dos EUA, a região do sudeste do país fortemente influenciada pelo protestantismo evangélico.
Depois da vitória na Suprema Corte estadual, ele manteve seu ativismo ateu e, em 2002, participou da criação da Secular Coalition for America, grupo que defende interesses de não religiosos em âmbito nacional e em Washington. "Com a nossa cultura se tornando cada vez mais teocrática, pensei que era importante criar uma rede de organizações para sermos mais influentes", afirmou.
Formada originalmente por 3 entidades, a coalizão reúne hoje 17 instituições, é registrada como grupo de lobby em Washington e realiza uma convenção nacional todos os anos.
A chegada de George W. Bush à presidência, em 2001, é apontada pelos secularistas como o momento que marcou o fortalecimento do fundamentalismo cristão e da influência da religião sobre políticas públicas. Segundo Silverman, esse movimento se refletiu em referências cada vez mais frequentes a Deus em discursos políticos e no respeito crescente a posições religiosas no espaço público. "Isso fez com que os ateus se sentissem cidadãos de segunda categoria, com a percepção de que para ser patriota você precisa ser religioso."
Silverman presidiu a Secular Coalition for America por dez anos, até 2012, quando passou a ser seu presidente emérito. Naquele ano, ele lançou o livro no qual narra sua trajetória: Candidate Without a Pray - An Autobiography of a Jewish Atheist in the Bible Belt (Candidato Sem Uma Oração - Autobiografia de um Judeu Ateu no Cinturão da Bíblia).