sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Carolina Maria de Jesus, 100 anos depois


Em continuação ao Dia da Consciência Negra, comemorado ontem, São Paulo terá a oportunidade de conferir, a partir de amanhã, 22/11/14, o festival de literatura negra conhecido como Flink Sampa, a ser realizado no Memorial da América Latina.

A grande homenageada do evento é Carolina Maria de Jesus, mulher negra, pobre, semianalfabeta e favelada que escreveu "Quarto de Despejo", um clássico anti-racismo da literatura brasileira, que teve repercussão mundial na década de 1960  e - para vergonha de todos nós - ainda é muito atual, pois pouco ou nada mudou no que diz respeito ao trato de uma certa elite com a maioria afrodescendente do país.

Nascida no dia 14 de março de 1914, mesma data em que nasceu outro grande expoente da luta contra o racismo no Brasil, Abdias do Nascimento, nenhum dos dois pode ser esquecido, pois não se renderam ao discurso do "fiquem aí quietinhos no seu barraco e se conformem com as migalhas que caem da nossa mesa restrita", que é o que muita gente (negra, inclusive) advoga até hoje.

O artigo abaixo, de Karla Monteiro, publicado na Folha de S. Paulo de 20/11/14, continua revelador:

Escritora Carolina Maria de Jesus viveu do caos ao caos

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento, interior de Minas, numa família de negros analfabetos. Chegou a ser presa, acusada de roubar 100 mil-réis de um padre. No raiar de 1947, aportou na Estação da Luz, em São Paulo, onde iniciaria uma caminhada de percalços até se tornar escritora best-seller.

Logo que se instalou na capital paulista conseguiu emprego na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini, precursor da cirurgia do coração no Brasil, que a deixava usufruir de sua biblioteca nos dias de folga. Com apenas dois anos de estudo, adorava ler.

Metida e indisciplinada, como a definem os que conviveram com ela, pulou de emprego em emprego até engravidar de João José, em 1948. Teria mais dois filhos: em 1949, nasceu José Carlos, e, em 1953, Vera Eunice.

Grávida e sem trabalho, foi viver na nascente favela do Canindé, nos arredores do recém-construído estádio da Portuguesa. Levantou um barraco de um cômodo e sobrevivia catando e vendendo papel.

Em 1958, o destino lhe sorriu, com todos os dentes. Apareceu na favela o jornalista Audálio Dantas, da extinta "Folha da Noite". Estava ali para escrever uma reportagem.

"Olhava uns marmanjos brincando no playground quando apareceu uma mulher esculachando, dizendo que se eles não caíssem fora, ia botá-los no livro", lembra Dantas. "Fui perguntar qual livro. Como era esperta, logo viu uma oportunidade."

Carolina de Jesus arrastou o repórter para o seu barraco, onde lhe mostrou uma pilha de cadernos. Entre eles, um diário no qual anotava acontecimentos do dia a dia na favela, iniciado em 15/7/1955.

"Me chamou a atenção. O texto tinha uma forma de narrar próxima da poesia", conta Dantas. "Voltei para a redação e publicamos trechos."

A edição da "Folha da Noite" de 9 de maio de 1958 repercutiu em vários outros jornais e revistas do país. Dois anos depois, a editora Francisco Alves publicou o diário no livro "Quarto de Despejo".

A primeira edição saiu com 30 mil exemplares. Segundo a pesquisadora Raffaella Fernandez, da Unicamp, a obra foi reimpressa sete vezes em 1960. No total, vendeu 80 mil exemplares. "Quarto de Despejo" foi traduzido para 14 línguas em 20 países. "No lançamento em São Paulo, até o Pelé foi", conta Dantas.

Carolina de Jesus virou celebridade e se mudou para um sobrado de três andares no bairro de Santana. Lançou mais três livros: "Casa de Alvenaria", "Pedaços de Fome" e "Provérbios". Postumamente, em 1982, foi lançado na França, "Diário de Bitita", que chegou ao Brasil pela Nova Fronteira, em 1986.

BRIGAS

"Carolina não conseguiu viver em Santana. Brigou com todos os vizinhos, que a receberam mal", lembra Dantas. "Não era uma pessoa comum. Nunca teve alma de pobre favelada, queria brilhar."

De Santana, a escritora migrou para um sítio em Parelheiros, onde começou a definhar no mundo literário até sumir.

"Passada a novidade, Carolina foi rejeitada por todos. Pela direita, por expor a miséria. Pela esquerda, porque não queria saber de luta social", diz Joel Rufino, autor de "Carolina de Jesus - Uma Escritora Improvável" (Garamond).

Desse tempo, a filha Vera Eunice de Jesus Lima guarda as piores memórias: "Passamos outro tipo de fome, pois conhecemos a fartura. Tinha 13 anos quando minha mãe voltou a catar lixo".

Nunca parou de escrever, até a morte, em 1977, em decorrência de crise de asma.

"Quando conseguia dinheiro, ela voltava para casa feliz, com o pão, e escrevia noite adentro. Dizia que a noite lhe trazia as ideias", diz a filha.

CONFIRA DESTAQUES DA FLINK SAMPA

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Sábado (22)

14h - Mesa Carolina Maria de Jesus, com Audálio Dantas, Vera Eunice e Elzira Perpétua

16h - Conversa com as misses negras Deise Nunes, Yitayish Ayenew (Israel) e Leila Lopes (Angola) e Paulo Borges

Domingo (23)

14h - Lançamento do livro "O Leito do Silêncio", da escritora angolana Isabel Ferreira

16h - Palestra com a ativista Graça Machel, viúva de Nelson Mandela, em defesa das mulheres e crianças

FLINKSAMPA

QUANDO sab. (22) e dom. (23), das 9h às 19h
ONDE Memorial da América Latina, av. Auro Soares de Moura Andrade, 664, Barra Funda, tel. (11) 3823-4600
QUANTO grátis
CLASSIFICAÇÃO livre



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