A matéria foi publicada na Folha de S. Paulo em 14/10/15:
Travestis combatem 'Jair Malafaia' e 'Eduardo Feliciano' em filme
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
E se o Brasil vivesse sob uma ditadura religiosa comandada pelo chanceler Eduardo Feliciano e pelo general Jair Malafaia?
"Não precisei me esforçar muito para criar essa história", diz Ivan Ribeiro, 35. Para o diretor baiano, não há meras coincidências com a vida real no enredo de "Bodas do Diabo", curtametragem que estreia nesta terçafeira (20), no Cine Olido, no centro de São Paulo.
Apesar de não dar nome aos bois, os alvos do cineasta são claros: os deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Marco Feliciano (PSC-SP) e Jair Bolsonaro (PP-RJ), mais o pastor carioca Silas Malafaia.
Todos são evangélicos e simpáticos a projetos como o Estatuto da Família – aprovado em setembro numa comissão da Câmara, o texto institui a entidade familiar como a união entre homem e mulher.
"Basta imaginar o futuro desejado pela direita conservadora evangélica e também católica. O Brasil que esse povo quer é totalmente distópico. Um país que não tenha gay mesmo", afirma Ribeiro.
Passado: em 1962, a revista "Fatos e Fotos" noticiou o casamento encenado entre uma transformista e um amante, numa boate de Copacabana, com esta chamada: "As bodas do diabo".
Presente: a definição virou título do quinto curta de Ribeiro.
Em 2014, seu projeto anterior venceu o Show do Gongo –aquela sessão clássica apresentada por Marisa Orth no festival Mix Brasil, na qual a plateia pode gongar filmes ruins e salvar os bons.
No vídeo gráfico "Shoshanna", uma transexual simula assassinar Cunha, Feliciano, Malafaia e Bolsonaro ao som de "People Are Strange" (The Doors).
A certa altura, entram "flashes" do clipe "Deus nos Amou", da pastora Ana Paula Valadão, vocalista do grupo Diante do Trono. "Quem pecar vai pagar / Quem pecar vai morrer", ela canta rodeada de crianças.
"Shoshanna" caiu nas graças do público e levou o troféu Coelho de Prata. A personagem reaparece no novo curta de Ribeiro e traz "amigas travestis que estão bem com o foda-se para tudo isso", diz o diretor.
Futuro: "Bodas do Diabo" se passa em 2020. "O medo que vivemos em 2015 concretizou-se: foi instalada uma ditadura religiosa no Brasil", conta a
sinopse.
Travestis se unem para combater o regime e libertar seu povo. Bill Santos, candidato a deputado federal pelo PSOL-SP nas últimas eleições, interpreta Veronika Stronger.
"É uma homenagem a Verônica Bolina, travesti que foi torturada pela Polícia Civil de São Paulo", diz Santos.
Refere-se à travesti que ficou desfigurada após apanhar na cadeia, em abril. Na ocasião, Verônica ratificou a versão policial do caso: "Possuída pelo demônio", teria recebido uma surra de outros presos e arrancado a dentadas a orelha de um carcereiro.
Valder Bastos, que encarna a drag queen Tchacka nas noites paulistanas, também está na equipe.
Em "Bodas do Diabo", Ivan Ribeiro funde cenas filmadas em protestos contra a presidente Dilma Rousseff, em março, a gravações do elenco na rua
Augusta, na Vila Mariana e no Pacaembu.
Seu gênero, diz, é o "gayexplotation", que une a temática LGBT ao "exploitation", um tipo de cinema apelativo, violento e de baixo orçamento – Quentin Tarantino reverenciou esse filão em obras como "Pulp Fiction" e "Kill Bill". "Testosterona", o curta de estreia, é um bom exemplo: um rapaz arranca
os testículos do namorado após ser traído.
Para Ribeiro, "é triste que não seja natural" a inclusão maciça de filmes gays em grandes festivais de cinema –a circulação acaba restrita a mostras como o Mix Brasil. É de se pensar, ele afirma, numa cota para o segmento em eventos que recebam dinheiro público.
OUTRO LADO
Os deputados Bolsonaro e Feliciano criticaram o curtametragem que os "homenageou".
"Não tenho tempo de assistir a este tipo de lixo", afirma Bolsonaro. "Ele [Ivan Ribeiro] não devia combater a ditadura, afinal de contas, gosta de ditadura", completa o parlamentar, que vê no "ativismo gay" uma vocação para oprimir.
Já Feliciano, que também é pastor evangélico, diz que estuda tomar medidas legais contra o filme, caso se enquadre no artigo 208 do Código Penal Brasileiro, que fala sobre "escarnecer de alguém [...] por motivo de crença".
"Sou cinéfilo, mas um filme deste tipo coloca a religião como algo ruim. O diretor está nos atacando frontalmente, é uma obra preconceituosa", diz.
O deputado Eduardo Cunha e o pastor Silas Malafaia não foram encontrados pela Folha para comentar "Bodas do Diabo".
BODAS DO DIABO
Direção Ivan Ribeiro
Elenco Silvero Pereira, Bill Santos, Miguel Vicentim, Fabinho Vieira e Valder Bastos
Produção Brasil, 2015
Quando Terçafeira (20), às 19h
Onde Cine Olido, av. São João, 473, São Paulo