quarta-feira, 31 de março de 2010

Não mate! Faça xixi no poste!

Há certos momentos do jornalismo nacional que a gente fica na dúvida se são cômicos ou trágicos. 

Um deles aconteceu hoje num artigo do jornal O Estado de S. Paulo, em que o repórter Bruno Paes Manso faz uma análise definitiva (pelo menos na visão dele) do problema do racismo e da criminalidade no Brasil. 

A gente até entenderia se o articulista se apresentasse como pesquisador numa determinada área e emitisse a sua opinião.

 Afinal, só pra citar dois, o Estadão tem Denis Rosenfeld e Demetrio Magnoli, que se valem de sua formação como filósofo e sociólogo, respectivamente, para dar uma aura de respeitabilidade às suas colunas. 

Até aí, não tem problema nenhum, pois vivemos num país democrático em que a liberdade de expressão deve (ou deveria) valer pra todos. 

Liberdade de imprensa também, mas aí já é outra história, pois meia dúzia de grupos familiares controlam e exercem o direito de imprensa no país e publicam quem eles quiserem.

Pois bem, Bruno Paes Manso, no artigo em questão, se apresenta como repórter, de quem esperaríamos uma análise se não isenta ou imparcial, pelo menos procurasse ver outros ângulos, ainda que emitindo sua opinião pessoal. 

O título da matéria de Manso, entretanto, se assemelha a um decreto papal ex officio: "Homicídio é um crime territorial e não está vinculado a raças". Pronto! Nem precisa mais ler, não é verdade? 

O leitor acabou de ser comunicado do dogma de que a criminalidade, quem diria, não tem ligação alguma com o racismo. 

Podemos dormir com a consciência tranquila, mas aqueles que quiserem ler um pouco mais, além de perder o sono, verão que as pessoas matam e morrem "por viverem em locais com grande quantidade de armas, marcados pela desordem. 

São territórios com frágil presença policial, vulneráveis à ação daqueles que estão dispostos a tentar exercer o domínio pela violência". 

Acabamos de descobrir que o problema da criminalidade no Brasil é, na verdade, geográfico. 

Dada a ênfase na territorialidade, poderíamos pensar que se tratasse de um problema canino, mas como o "repórter" já deixou claro que "não está vinculado a raças", podemos deixar o xixi no poste pra depois e acomodarmo-nos à nossa insignificância crítica.

Mais adiante, luz das luzes, o "repórter" Manso nos esclarece que "em primeiro lugar, portanto, é importante compreender que a elevada concentração de negros e pardos entre as vítimas de homicídio deve-se ao fato de ser alta a concentração dessa população nos territórios violentos", ou seja, na brilhante visão do Manso, se você é pardo ou negro, azar o seu por ter escolhido morar na favela. 

Não tem nada a ver o fato de você não ter tido oportunidade na vida exatamente porque você ou seus pais, irmãos, parentes, etc., foram discriminados pela cor da sua pele. 

Se você mora num morro carioca, conforme-se com o destino, já que é mera coincidência o fato do prefeito Pereira Passos ter acabado com os cortiços do centro do Rio no começo dos anos 1900 para construir avenidas e "europeizar" (eufemismo para "embranquecer") a cidade, largando seus avós ao "Deus dará". 

Esqueça qualquer política de ação afirmativa, redistribuição de renda, inclusão social, porque o magnânimo "repórter" declara em sua bula papal que, "para reduzir as taxas [criminais], não é preciso, antes, distribuir a renda ou acabar com a miséria", mais ou menos na linha dos republicanos americanos que ainda outro dia lutavam contra a proposta de Obama quanto à universalização da saúde pública nos EUA na base do "se você não pode pagar um plano de saúde, morra!". 

Parem as rotativas pois hoje, 31 de março de 2010 (eita dia bom pra coisas más acontecerem no Brasil), um "repórter" do Estadão descobriu a América, ainda que para negar o que ela tem de pior.

É claro que o problema da criminalidade não se resume a (e transcende) questões como racismo e má distribuição de renda, mas é assustador que o jornalismo no Brasil tenha chegado a um nível tão baixo como esta nota ridícula (por autocensura de palavra mais adequada) do Estadão. 

Eu gosto muito do jornal, mesmo não concordando em geral com a linha que eles seguem. O que me agrada no Estadão, além do fato de ser - gramaticalmente - muito bem escrito, é que a gente sempre sabe o que eles pensam, pois não escondem nem sobem no muro como faz a Folha de S. Paulo. 

Entretanto, algum revisor falhou na edição de hoje. Deveriam ter deixado esta opinião pseudodogmática a um dos pitbulls (sem racismo, please) dos artigos opinativos assinados da pág. 2. Eles mordem com mais classe.

E quanto a nós, humanos, vamos todos, brancos, vermelhos, amarelos, pardos e negros, fazer xixi no poste pra deixar bem claro quem manda nesta bagaça!

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