Artigo interessante de César Felício, correspondente do jornal Valor Econômico em Buenos Aires, Argentina, na edição de ontem, 17/05/12:
Tão longe de Deus, tão perto dos EUA
Por César Felício
Político que usou a internet como nenhum outro em sua eleição, o presidente dos Estados Unidos Barack Obama calculou o passo quando se tornou o primeiro governante americano a ser rotulado de "gay" e retratado com um arco-íris na cabeça pela revista "Newsweek" na semana passada. A falta de opções a oferecer na área econômica impulsiona Obama a investir em outros temas para pautar a campanha eleitoral e a defesa do casamento de pessoas do mesmo sexo é uma alternativa interessante por motivos que não se circunscrevem a um país ou à atual conjuntura.
"Obama faz uma aposta na polarização da sociedade colocando ênfase em questões de crenças e valores individuais. Para ter o voto conservador, George W. Bush fez o mesmo em sua primeira eleição, na direção oposta a do democrata. Ele tenta se consolidar no eleitorado mais aberto à tolerância, uma vez que não tem como crescer no outro público", opinou o cientista político Germán Lodola, da Universidade Torcuato di Tella, de Buenos Aires, que publicou este mês o artigo "Support for Same Sex Marriage in Latin America", pela Universidade de Vanderbilt.
Lodola é um dos acadêmicos integrado na pesquisa "Americas Barometer", que a cada dois anos realiza sondagens de opinião pública em 26 países, financiada pela agência do governo americano USAID. No universo pesquisado ocorre o fenômeno já analisado de crise da democracia representativa, em que bandeiras de interesse social, como o das reformas de interesse econômico geral, perdem espaço no debate público para temas que dizem respeito a valores e crenças individuais, como o do casamento homossexual, o aborto, a permissão da eutanásia ou orto-eutanásia e outros. Um processo alimentado por um enfraquecimento institucional que entra nas casas em que Deus, pátria e família são conceitos sob erosão. É uma constatação presente em estudos e pronunciamentos da própria cúpula da Igreja Católica e de outros e quase parte do senso comum.
Ao se debruçar sobre o resultado das pesquisas feitas em 2010, Lodola se deparou com um conjunto consistente: o apoio ao casamento entre homossexuais cresce em relação a duas variáveis básicas: a influência da Igreja Católica e o nível de bem estar social das populações. Quanto menor a influência católica ou maiores os índices de urbanização, renda e de educação da população, maior a tolerância a este tipo de união.
A maior aceitação ao casamento homossexual ocorreu no Canadá, com 63% de aceitação, país em que a modalidade é legalizada desde 2005. O segundo maior índice é o da Argentina, com 57% de adesão à tese. A Argentina acabou de se tornar o primeiro país latino-americano a não apenas legalizar o casamento homossexual como a estender a esta minoria todos os direitos civis, inclusive o de mudança de sexo em documentos públicos e os e adoção de crianças. Em se tratando de um país abençoado pela Virgem de Luján, com alto índice de população nominalmente católica, o caso argentino é aparentemente paradoxal.
"Na Argentina a Igreja Católica é uma instituição poderosa, mas que perdeu audiência política com o kirchnerismo", diz Lodola. A ofensiva de Nestor Kirchner em buscar o apoio de vítimas do regime militar expôs os vínculos da hierarquia católica com a última ditadura e desgastou a instituição. A presidente Cristina Kirchner tem sido hábil nos últimos anos em propor no Congresso temas que quebram as linhas partidárias. Faz com que o oficialismo vote unido em torno de temas como esse e divide as forças oposicionistas.
A terceira maior adesão é a do Uruguai, que autorizou uniões civis em 2008. A quarta, com 47,4% de apoio à tese, é a dos Estados Unidos. E a quinta, com 39,8% de endosso popular, é a do Brasil. Na outra ponta, a de rejeição ao casamento homossexual, estão Nicarágua e Trinidad e Tobago, com 15% de apoio; El Salvador, com 10,3%, Guiana, com 7,2% e Jamaica, país em que a homossexualidade masculina é tipificada como crime, com 3,5%. A média das três américas é de 26%.
Para Lodola, o passo da Argentina demorará a ser seguido pelo Brasil, se é que o será um dia, ainda que o tema ganhe mais adesão popular. "O PT tentou fazer o mesmo que Cristina aqui e impor uma agenda de direitos que vá além do tema social. Mas o modelo legislativo que existe no Brasil bloqueia este tipo de pauta", diz o argentino. A eleição de deputados em lista aberta proporcional, como existe no Brasil, faz com que os próprios partidos, em sua maioria, busquem um perfil heterogêneo para suas bancadas.
"Ainda que pesquisadores brasileiros como Fernando Limongi e outros tenham identificado linhas claras de comportamento partidário coerente no Congresso, isto não retira a força de grupos transversais na Câmara dos Deputados, como a bancada evangélica e a dos ruralistas, que não raramente atuam em parceria. Isto torna muito difícil pensar na aprovação de temas como esse. Não haveria impulso partidário suficiente", disse. Tem sido no Judiciário brasileiro, e não no Legislativo, que a pauta de direitos individuais se impõe, da decisão sobre o aborto de fetos anencefálicos à própria validação da união civil homossexual, que data de 2004.
Enfraquecida em seu poder de influência em relação a este tema específica, a Igreja Católica está longe de ser uma instituição irrelevante em qualquer país de formação ibérica no continente, como as defensoras do aborto na Argentina podem atestar. Recentemente, a Suprema Corte do país autorizou a realização de abortos em vítimas de estupro sem necessidade de ordem judicial. O governador de Salta, no extremo oeste argentino, anunciou que a ordem não seria cumprida em sua província. A rebeldia durou apenas três dias, mas serviu para o governante creditar pontos junto ao clero local. No Congresso do país, o tema saiu de pauta sem ser votado, na legislatura passada.