O ex-delegado Claudio Guerra tem provocado muita polêmica com suas revelações sobre torturas e execuções sumárias no período da ditadura militar brasileira (1964-1985), das quais ele alega - pelo menos - ter tido conhecimento. Hoje ele é presbítero da Assembléia de Deus Ministério Serra em Vitória (ES), e não "pastor adventista", como escreve Frei Betto no artigo abaixo, publicado na Adital.
Entretanto, esse artigo merece destaque pelas declarações bombásticas de Guerra sobre a suposta incineração de corpos de vítimas da ditadura em uma usina de açúcar do Norte fluminense. Ainda outro dia, falando sobre o novo Código Florestal e a política de quotas raciais, publicamos aqui nossa opinião dizendo que o Brasil ainda é o país dos senhores de engenho, mas nem imaginávamos que essa loucura revelada pelo ex-delegado fosse possível.
Ainda ontem, a presidenta Dilma Roussef instalou a Comissão da Verdade que se encarregará de buscar, tanto quanto possível, extrair do esquecimento as histórias de tantos crimes e corpos desaparecidos durante a ditadura. Uma frase do seu discurso merece ser transcrita:
A palavra verdade, na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra esquecimento. É algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento. É memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu.
Que o Brasil tenha coragem de passar essa história a limpo e - em benefício das novas gerações que não têm nada a ver com esse passado sombrio - siga adiante reconciliado consigo mesmo. Abaixo, o artigo de Frei Betto:
A face nazista da ditadura brasileira
A notícia é estarrecedora: militantes políticos envolvidos no combate à ditadura militar tiveram seus corpos incinerados no forno de uma usina de cana de açúcar em Campos dos Goytacazes, no norte do estado do Rio de Janeiro, entre 1970 e 1980.
O regime militar, que governou o Brasil entre 1964 e 1985, merece, agora, ser comparado ao nazismo.
A revelação é do ex-delegado do DOPS (polícia política) do Espírito Santo, Cláudio Guerra, hoje com 71 anos.
Segundo seu depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, no livro "Memórias de uma guerra suja” (Topbooks), no forno da usina Cambahyba - de propriedade de Heli Ribeiro Gomes, ex-vice-governador do Rio de Janeiro entre 1967 e 1971, já falecido -, foram incinerados Davi Capistrano, o casal Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, João Massena Melo, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão Filho, Eduardo Collier Filho e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira.
Os militantes teriam sido retirados de órgãos de repressão de São Paulo – DEOPS e DOI-CODI – e do centro clandestino de tortura e assassinato conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis.
Cláudio Guerra acrescenta às suas denúncias que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra, um dos mais notórios torturadores de São Paulo, teria participado, em 1981, do atentado no Riocentro, na capital carioca, na véspera do feriado de 1º. de Maio.
Se a bomba levada pelos oficiais do Exército não tivesse estourado no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, ceifando-lhe a vida, centenas de pessoas que assistiam a um show de música popular teriam sido mortas ou feridas.
O objetivo da repressão era culpar os "terroristas” pelo hediondo crime e, assim, justificar a ação perversa da ditadura.
Guerra aponta ainda os agentes que teriam participado, em 1979, da Chacina da Lapa, na capital paulista, quando três dirigentes do PCdoB foram executados. Acrescenta que a "comunidade de informação”, como eram conhecidos os serviços secretos da ditadura, espalhou panfletos da candidatura Lula à Presidência da República no local em que ficou retido o empresário Abílio Diniz, vítima de um sequestro em 1989, em São Paulo, de modo a tentar envolver o PT.
Uma das revelações mais bombásticas de Cláudio Guerra é sobre o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mais impiedoso torturador e assassino da regime militar, morto em 1979 por afogamento. Tido até agora como um acidente, segundo o ex-delegado, teria sido "queima de arquivo”, crime praticado pelo CENIMAR, o serviço secreto da Marinha.
Guerra assume ter assassinado o militante Nestor Veras, em 1975, alegando que apenas deu "o tiro de misericórdia” porque ele havia sido "muito torturado e estava moribundo”.
Das notícias da repressão há sempre que desconfiar. Guerra fala a verdade ou mente? Tudo indica que o ex-delegado, agora travestido de pastor adventista, não se limitou, na prática de crimes, à repressão política. Em 1982, a Justiça o condenou a 42 anos de prisão pela morte de um bicheiro, dos quais cumpriu 10 anos. Em seguida mereceu 18 anos de condenação por assassinar sua mulher, Rosa Maria Cleto, com 19 tiros, e a cunhada, no lixão de Cariacica, em 1980.
Ele alega inocência nos três casos, embora admita que matou o tenente Odilon Carlos de Souza, a quem acusa de ter liquidado sua mulher Rosa.
Espera-se que a presidente Dilma anuncie, o quanto antes, os nomes dos sete integrantes da Comissão da Verdade, que deverá apurar crimes e criminosos da ditadura. E investigar as denúncias do policial capixaba. Infelizmente a comissão ainda não será da Verdade e da Justiça.
O Brasil é o único país da América Latina que se recusa a punir aqueles que cometeram crimes em nome do Estado, entre 1964 e 1985. O pretexto é a esdrúxula Lei da Anistia, consagrada pelo STF, que pretende tornar inimputáveis algozes do regime militar.
Ora, como anistiar quem nunca foi julgado e punido? Nós, as vítimas, sofremos prisões, torturas, exílios, banimentos, assassinatos e desaparecimentos. E os que provocaram tudo isso merecem o prêmio de uma lei injusta e permanecer imunes e impunes como se nada houvessem feito?
O nazismo foi derrotado há quase 70 anos, e ainda hoje novas revelações vêm à tona. Enganam-se os que julgam que a Lei da Anistia, o silêncio das Forças Armadas e a leniência dos três poderes da República haverão de transformar a anistia em amnésia. Como afirmou Walter Benjamin, a memória das vítimas jamais se apaga.