quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O antissemitismo de Cruz e Souza


O simbolismo foi o movimento artístico e literário surgido na França no final do século XIX, que tinha como principais características a reação ao realismo, o uso e abuso das metáforas e a musicalidade dos versos.

No Brasil, os seus maiores representantes foram os poetas Cruz e Souza (1861-1898), Augusto dos Anjos (1884-1914) e Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).

É deste último, por exemplo, o belo poema "Ismália":

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

A musicalidade dos versos pode ser facilmente percebida nessa quadra do poema "Violões Que Choram", de Cruz e Souza:

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

De certa forma, naquela confusão de escolas artísticas da virada do século XIX para o XX, o embate e a conjunção entre aspectos do simbolismo, do parnasianismo e do realismo (mescla da qual Augusto dos Anjos seria - talvez - o maior ícone), foram precursores do movimento modernista que impera até hoje.

O poeta e diplomata Felipe Fortuna escreveu um artigo, que foi publicado no jornal Valor Econômico de 04/10/13, em que questiona se o grande poeta Cruz e Souza seria (ou não) antissemita.

Apesar da excelente abordagem do tema, parece que o artigo peca pelo anacronismo, ao julgar não só um poeta do século XIX, como também a obra de São João Crisóstomo (século IV), com os olhos do século XXI.

Outro questionamento pode ser feito, portanto: até que ponto Cruz e Sousa, o negro filho de escravos alforriados, seria antissemita no sentido atual que se dá ao termo?

Talvez a interrogação do título do artigo seja uma concessão do seu autor à dúvida dele próprio sobre a procedência de sua indagação.

Feito este pequeno reparo, que não chega a prejudicar a leitura da tese de Felipe Fortuna sobre o poema "Marche aux Flambeaux" (que pode ser lido na íntegra mais abaixo).

Eis o artigo:




Seria Cruz e Sousa antissemita?

Felipe Fortuna

É conhecida a extraordinária obra poética de Cruz e Sousa (1861-1898), que trouxe uma musicalidade singular e versos surpreendentes, alguns estranhamente repetitivos. Também é conhecida a revolta racial do poeta catarinense, que se expressou de modo dramático na prosa de "Emparedado", "Dor Negra" e "A Nódoa", do livro "Evocações". Muito menos conhecido é o longo poema "Marche aux Flambeaux", o maior exemplo de antissemitismo literário já publicado no Brasil. Deve-se a Andrade Muricy, que organizou, em 1961, a edição da "Obra Completa" de Cruz e Sousa, o aparecimento do poema. Ao longo dos seus 216 versos alexandrinos, desfilam insultos e impropérios que transmitem a extremada violência de uma linguagem de exclusão.

"Marche aux Flambeaux" é um desses raríssimos títulos em língua francesa de que se vale o poeta - já que Cruz e Sousa geralmente mostra preferência pelo latim, de ressonância bíblica e espiritual. O antissemitismo do poema está vinculado à tradição europeia e, mais propriamente, à francesa, seguindo uma voga que culminou com o debate em torno do caso Dreyfus, a partir de 1894, e se irradiou em escritores como Alphonse Daudet. É possível considerar, assim, que o surpreendente antissemitismo de Cruz e Sousa seja bem mais uma imitação literária do que uma convicção; uma absorção dos clichês e da retórica da perseguição, em vez de um programa político e ideológico. Mas uma análise do poema poderá revelar aspectos significativos e paradoxais do poeta que tanto sofreu o preconceito da raça e da origem social.

O ataque de Cruz e Sousa tem início na segunda seção do poema, toda ela dedicada aos "filósofos titãs" que elaboraram uma "Ciência fatal"; filósofos que transformaram tudo "num doloroso caos". O lamento do poeta se converte numa invectiva contra a morte de Deus, que talvez possa ser resumida à pergunta formulada por Jean-Paul Sartre quando estudou a poesia de Mallarmé: "Se o Universo se reduz a uma desordem de átomos, sobre o que fundar a ordem moral?" A análise do filósofo também detecta, entre os poetas simbolistas, o surgimento de um "arianismo simbólico" e uma atitude de recusa em relação ao fim do Ideal. E salienta as condições de extrema pobreza material que caracterizavam a vida desses escritores.

Para o poeta, filósofos e cientistas devem pagar pelo erro monumental de abalar a fé dos seres humanos e de fazê-los "rudes, egoístas, maus". São eles os principais personagens do desfile, durante o qual serão expostos à denúncia e à execração. E o poeta Cruz e Sousa, presente à multidão dos que verão passar os condenados intelectuais, aparece, pela primeira vez, em tudo consciente da sua função crítica: "Com toda intrepidez hercúlea de acrobata/ vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata,/ a sátira que tem esporas de galhardo/ cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo".

Ainda assim, a segunda seção do poema é apenas uma preparação para a erupção do ódio. Obviamente, o antissemitismo não foi exclusividade dos simbolistas, que aproximaram a morte de Deus e o liberalismo social ao estereótipo do "povo deicida": sua origem se encontra em textos teológicos e em sermões acusatórios que criaram uma imagem grotesca do judeu, associada não apenas à blasfêmia e ao antiespiritualismo, mas também à glutonaria e ao canibalismo... Já no século IV, a retórica de São João Crisóstomo (347-407), em suas furiosas homilias, atribuía aos judeus inumeráveis defeitos e vícios e os expunha a uma vingança sem possibilidade de defesa.

Quando Cruz e Sousa designa os seus filósofos como "apóstolos sombrios" que "lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!", está de fato introduzindo, com a possível sutileza, o tema do materialismo ateu. Na análise rigorosa que fez sobre o antissemitismo na poesia de T.S. Eliot, o crítico Anthony Julius faz referência à imagem dos judeus livres-pensadores, que são descritos, de modo genérico, como intelectualmente subversivos, anárquicos e céticos. O estereótipo do filósofo que nega a divindade, identificado à exaustão com o judeu, alcança dimensões monstruosas até então desconhecidas em sua poesia.

Já na terceira seção de "Marche aux Flambeaux", Cruz e Sousa lança seu bestiário: "Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes,/ hipopótamos, ursos e rinocerontes,/ leopardos e leões, panteras acirrantes,/ hienas do furor, membrudos mastodontes,/ tredas feras do mal, soturnos dromedários,/ serpentes colossais que rastejais na treva,/ monstros, monstros cruéis, medonhos, sanguinários,/ cuja pata esmagante a presa aos antros leva".

A desfiguração do judeu pelo grotesco anatômico é um topos comum à literatura antissemita. O poeta catarinense apenas a amplia pela animalização, seguindo outra tendência não menos comum. Não é difícil encontrar, na poesia e na prosa de Cruz e Sousa, o gosto pela violenta caricatura verbal, marcado pela comparação agressiva e depreciativa da figura humana com algum animal. Em geral, os exemplos existentes estão vinculados a um estado de excitação e de indignação moral.

Aplicada ao judeu, a animalização ganha o aspecto de monstruoso estigma: trata-se de comunicar, com eloquência, a desumanidade do personagem. Ele se torna suspeito e imediatamente subtraído da sociedade em que vive: ostentando a indefinida fronteira entre o humano e o animal, ele se torna vítima, já não importa se social, étnica ou religiosa. O judeu, violentamente associado a quadrúpedes e a bichos rastejantes, passa a encarnar as piores qualidades e os aspectos arquetípicos que caracterizam, como no trecho de "Marche aux Flambeaux", os animais em estado selvagem. Discretamente, também se insinua no poema de Cruz e Sousa um tema igualmente caro à literatura da sua época, o do judeu como símbolo do feio.

No entanto, para além da discussão estética, o que parece sobressair, no poema, é a gratuidade do discurso da perseguição: os judeus são insultados porque se encontram no fim de um processo que poderia ser descrito, redutoramente, como o de reação a um questionamento da natureza e da fé. Na caracterização do estereótipo, é importante notar que o judeu habita as cidades industriais, onde exerce atividades financeiras e comerciais, apesar de descrito como um deslocado. É o que escreve Cruz e Sousa: "Gafentos histriões, ridículos da moda,/ que fingis entender Berlim, Londres, Paris,/ mas nos altos salões, por entre a fina roda,/ meteis sordidamente o dedo no nariz".

Anthony Julius tem razão ao afirmar que o antissemitismo encontrou, no momento simbolista, um período oportuno para a transmissão dos principais estereótipos e das imagens de perseguição: escritores declaradamente antissemitas, como J.K. Huysmans, fizeram largo uso da prosa visionária, na qual combinaram a emoção extremada ao uso vertiginoso da metáfora - tudo redundando numa combinação da fantasia e da revelação. Também é preciso considerar um aspecto essencial do simbolismo, que consiste na dificuldade de definir os limites entre o mundo real e o imaginário, para o qual ainda concorre o uso intensivo da sinestesias. O grande poeta, no simbolismo, é aquele que atinge uma visão delirante e personalíssima do assunto que está tratando.

É o que acontece com Cruz e Sousa em "Marche aux Flambeaux": dá-se uma explicação do mundo que é, a rigor, uma reação violenta ao mundo. No poema se encontram, irmanados de maneira sórdida, não apenas os "tábidos judeus", mas também outros grupos que vêm reunir-se e desfilar: "burgueses que já são bem bons comendadores/ e marqueses de truz, com ares de mistério" e "velhacos de batina".

Ao fim do poema se descobre que o poeta tem consciência de que sua parada não poderia mesmo ser noturna, já que sua intenção é revelar à luz solar os vícios e as caricaturas humanas que governam o mundo. Atento para o uso que deve fazer da "marche aux flambeaux", essa importação chegada da Europa, o poeta escreve como se estivesse anunciando uma correção: "Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim,/ em marcha tropical, à crua e ardente luz/ que vos seja uma febre indômita, sem fim,/ um cautério de pus a vos queimar o pus/ venéreo da Moral".

Lamentavelmente, a marcha que transcorre ao sol não contém nenhuma outra novidade em relação a um possível modelo europeu: nela está presente uma crítica à nobreza, mas não, por exemplo, aos escravocratas. A opção pelo período diurno parece representar, assim, apenas um capricho do poeta, que por motivos possivelmente estéticos tomou a decisão de apresentar a sua sátira à cáustica luz dos trópicos. De todas as importações presentes no poema, a mais deplorável é certamente a do antissemitismo, não apenas por sua irracionalidade e despropósito, mas também pela inevitável consequência que a divulgação dos estereótipos de perseguição poderia provocar na consciência de um poeta que se defrontou com a questão racial no Brasil.

Praticante de diversos recursos verbais, Cruz e Sousa demonstra ser, em sua obra de poeta e de prosador, um dos escritores de maior inconsistência ideológica. Em geral, os seus versos mais engajados se misturam a devaneios e a referências necessariamente vagas, num complexo de hesitações e de ambiguidades que é capaz de deixar perplexo o seu leitor. "Marche aux Flambeaux" representa, em si mesmo, um exemplo modelar da aparente falta de consciência para um problema de discriminação. O que não resolve as contradições do poeta, mas torna o seu sofrimento mais sublime.

Felipe Fortuna é poeta, ensaísta e diplomata. Recentemente, publicou o livro de poemas "A Mesma Coisa" (Topbooks)




MARCHE AUX FLAMBEAUX

I

Rompe na aurora o sol que a terra esbofeteia
Com látegos de chama, iriando o pó e a areia,
Iriando os vegetais de ricas pedrarias,
Dos rubis e cristais das ourivesarias;
Aurora acesa em cor de púrpura de cravos v Opulentos, febris, ensanguinados, bravos;
De ritmos leves de harpa e frêmitos e beijos v Que são da natureza os trêmulos arpejos;

Aurora que sorri, que traz pomposamente
Todo o raro esplendor da luz resplandecente,
Das paisagens loucas no fúlgido matiz
O aroma a derramar da meiga flor de liz.

Na alegria dos tons os pássaros cantando
Vão as asas abrindo, entre os clarões ruflando, v Asas emocionais, que assim dentre clarões
Palpitam num fervor de alados corações.

E no luxo oriental de etéreo Grão-Mogol
Como um Baco feliz rubro flameja o sol.

II

Filósofos titãs, filósofos insanos
Que destes turbilhões, que destes oceanos
De lutas e paixões, de sonho e pensamentos
Espalhásteis no mundo aos clamorosos ventos v A Ciência fatal, talvez como um veneno,
Que os tempos abalou no caminhar sereno;
Filósofos titãs, que os séculos austeros
No flanco da Matéria abris, graves, severos,
Sobre o escombro da fé, da crença e da esperança,
Da civilização o trilho que hoje alcança
No seu aço viril as regiões supremas,
Traçado em novas leis, doutrinas e problemas;
Vós que sois no Saber os monges da existência
E só acreditais na força da Ciência,
Que da morte sabeis os filtros invisíveis,
Narcóticos, sutis, incógnitos, terríveis,
Não sabeis, entretanto, apóstolos sombrios,
Como a luz da Ciência os homens estão frios,
Como o tudo ficou num doloroso caos
E os seres que eram bons, rudes, egoístas, maus.

Em vão! em vão! em vão! os vossos largos crânios
Lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!
Tudo está corrompido e até mais imperfeito...
Não há um lírio são a florescer num peito,
De piedade, de amor e de misericórdia...
Se brota uma virtude o ascoso vício morde-a,
Envilece, corrompe e abate essa virtude
Com o cinismo revel dum epigrama rude...
E até muita alma vil, feroz, patibular,
Impunemente sobe ao mais sagrado altar.

Por isso vão passar perante a turbamulta
Como abrupta avalanche, enorme catapulta,
Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios
Que cavaram no globo horrendos precipícios,
Os vícios imortais, que infestam tribos, greis,
Povos e gerações, seitas, templos e reis
E que são como a lava obscura da cratera
Que subterraneamente em tudo se invetera.

Com toda intrepidez hercúlea de acrobata
Vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata,
A sátira que tem esporas de galhardo
Cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo.
Vou com esse altanado e muscular esforço
De quem galga triunfal o soberano dorso,
A crista vigorosa, altiva, sobranceira,
Da mais agigantada e vasta cordilheira.

III

Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes,
Hipopótamos, ursos e rinocerontes,
Leopardos e leões, panteras acirrantes,
Hienas do furor, membrudos mastodontes
Tredas feras do mal, soturnos dromedários,
Serpentes colossais que rastejais na treva,
Monstros, monstros cruéis, medonhos, sangüinários,
Cuja pata esmagante a presa aos antros leva;
Ó ventrudos judeus, opíparos, obesos,
De consciência obtusa, ignóbil e caolha
Que no mundo passais grotescamente tesos
Com honras de entremez e grandezas de rolha.
Gafentos histriões, ridículos da moda,
Que fingis entender Berlim, Londres, Paris,
Mas nos altos salões, por entre a fina roda,
Meteis sordidamente o dedo no nariz;
Brasonados truões, inúteis como eunuco,
Que as pompas ostentais de aurífero nababo
Mas apenas valeis como um limão sem suco,
Tendes rabo no corpo e dentro d′alma rabo;
Nobres de papelão, milionários vândalos
De ventre confortado e rosto rubicundo,
Que no torvo cancã no cancã dos escândalos
Sois o horrendo espantalho, a ignominia do mundo;
Ó deuses do milhão, ó deuses da barriga,
Que sentindo a aguilhada intensa da luxúria
Buscais a mais em flor e linda rapariga
Para então vos fartar na luxuriante fúria;
Gamenhos de toilette e convicções de lama
Onde tudo afinal se atola e se chafurda,
Que do clube e do esporte sintetizais a fama
Mas tendes para o Bem a fibra sempre surda;
Palhaços, clowns senis, hediondos borrachos
Que aos trambolhões urrais afora no universo,
Desdenhando de tudo e até rindo dos fachos,
Do clarão do saber em toda a parte imerso;
Almas negras, servis, d’ergastulos caóticos,
Gerado no paul das lúgubres voragens,
Do crime nos bulcões, nos vícios mais despóticos
Aos quais tanto rendeis eternas homenagens,
Manequins, charlatães, devassos do bom-tom,
Que viveis nas Babéis das grandes capitais
Apodrecendo sempre infamemente com
O cancro do dinheiro as forcas virginais;
Mascarados tafuis de gordos ventres de ouro,
Ó bonzos do deboche e cínicos esgares,
Que sois o único sol esterlinado e louro
Das parvas multidões, das multidões alvares;
Fidalgos de barril, sicofantas, malandros
Do templo e do bordel, da crápula de harém
Que ao puro mar do Ideal, com torpes escafandros,
Arrancais, p′ra vender, a pérola do Bem;
Ó trânsfugas, ladrões que difamais a terra,
Que tudo poluís, do próprio lodo a flor,
A serena humildade, - intrepidez da guerra.
Aos beijos maternais, ao nupcial amor;
Espíritos de treva, espíritos de barro
Que enegreceis de horror o sangue das papoulas
E das ostentacões vos aclamais no carro,
Cobertos de cetins, arminho e lantejoulas;
Que se vem de repente o Nada sepulcral
Nunca deixais, sequer, no tétrico leilão,
No leilão da memória, estranho, universal,
Nem um som a vibrar do estéril coração!
Dentre feras brutais de ríspidos penhascos
E a torrente caudal de rijos versos francos
E a zombaria e o riso e as sátiras e os chascos,
Nesta marche aux flambeaux ides passar, aos trancos
Do mundo os naturais, zoológicos museus
Despejem pare fora as pavorosas massas,
Para virem reunir-se aos tábidos judeus
Irromper e seguir e desfilar nas praças.
Que a cada mate, a entranha, o seio virgem se abra
Jorrando tigres, leões, panteras do seu centro
E na dança infernal, estrupida, macabra,
Siga a marche aux flambeaux pelo universo a dentro.

Gargalhadas abri a rubra flor sangrenta
Da humanidade vã na amargurada boca
Vai agora passar a marcha truculenta
Sob o espingardear duma ironia louca.
E desfila e desfila em becos e vielas
E torna a desfilar por vielas e por becos
às risadas da turba, estultas e amarelas
Que tem o áspero som de gonzos perros, secos...
E desfila e desfila, estrídula e execranda,
Das praças na amplidão, rugindo em mar desfila,
Enquanto além dardeja, heróica e formidanda,
A metralha do sol que rútilo fuzila...
E mastodontes vão de braço dado a sérios
Burgueses que já são bem bons comendadores
E marqueses de truz, com ares de mistérios
De lunetas gentis e aspectos sonhadores
Dão o braco fidalgo e airoso das nobrezas
Aos ursos boreais, enquanto os conselheiros
Os condes, os barões, os duques e as altezas
Lá vão de braço dado aos lobos carniceiros.
E nessa singular, atroz promiscuidade,
Animais e truões de catadura suína
Gordalhudos heróis da infâmia e da maldade,
Vendidos da honradez, velhacos de batina
Bobos, cães, imbecis, humanos crocodilos
E déspotas, jograis, todos os miseráveis
De todas as feições e todos os estilos,
Uns aos outros lá vão jungidos, formidáveis!...
Mas a marche aux flambeaux derrama um pesadelo,
A agonia dum tigre, em sonhos, sobre um ventre,
Agonia mortal que envolve tudo em gelo...
E desfila e desfila entre sarcasmos e entre
As sátiras-fuzis, relampejando açoite,
Por essa imensa aurora, estranhamente imensa
Por um sol que angustia e que não tem da noite
Para a Miséria a sombra atenuante e densa.

Os vícios, as paixões, os crimes, ódios e erros,
Na marcha, de roldão, caminham fraternais
Com bandidos, vilões, burgueses rombos, perros
E focas e mastins, macacos e chacais.
Aos sobressaltos vão como visões, fantasmas
Bichos de toda a casta, anões de chapéu alto,
Deixando em convulsão todas as almas pasmas
E o globo num tremendo e fundo sobressalto.
E nas praças, ao sol, confundem-se os bramidos,
Os uivos com a expressão humana misturados,
Através do sussurro e bruscos alaridos
Das chacotas bestiais, dos risos trovejados.
E segue e segue e segue, afora, légua a légua
Essa marche aux flambeaux, ciclópica, estupenda
Caminha atravessando um longo sol sem trégua,
Um dia secular, um dia de legenda;
Caminha atravessando um sol de foco aberto,
Por um dia fatal, interminável, mudo,
O dia do remorso, aterrador, incerto
Que em todo o coração crava um punhal agudo.
Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim,
Em marcha tropical, à crua e ardente luz
Que vos seja uma febre indômita, sem fim,
Um cautério de fogo a vos queimar o pus
Venéreo da Moral, carbonizando-o até
Para que nunca mais se sinta dele a origem
Nem volte, como sempre, então, a ser o que é,
Deixando-vos no mundo inteiramente virgem;
Eu quero-vos assim, de fachos apagados,
Apagados, ao alto, os joviais flambeaux,
Que os tereis de acender nos campos ignorados
Que de sóis de Vingança a Eternidade arou.

E depois de vagar às sátiras de todos,
Na evidência da luz, numa perpetua aurora;
De caminhar ao sol, por tremedais, por lodos,
No tédio do sarcasmo, o tédio que a devora,
Essa Marcha afinal penetrará aos urros,
Titânica, sinistra e bêbada, irrisória,
Num caos de pontapés, coices, vaias e murros,
Na eterna bacanal ridícula da História.



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