Síndrome de Apert é uma doença genética que gera deformidades no crânio da criança, e carrega um estigma estético e social difícil de suportar. Entretanto, Gregorio Duvivier conta o que aprendeu com seu irmão de 33 anos de idade, portador da síndrome, em emocionante coluna publicada na Folha de S. Paulo de 17/03/14:
Meu irmão
Meu irmão faz aniversário no dia 19 — depois de amanhã, se você estiver lendo essa coluna no dia em que ela saiu. Cinco anos mais velho que eu, João faz 33 anos. Mas parece que sempre teve 33 anos, desde que nasceu.
Quando era pequeno, João gostava de brincar de trânsito. A brincadeira consistia em colocar os carrinhos enfileirados e fazer bibi e fonfon por horas e horas. Num dia muito animado, eventualmente, ele aparecia com uma ambulância — ió-ió-ió. Depois que ela passava, os carros retomavam suas posições e tudo voltava ao normal. Bibi. Fonfon.
Na ansiedade característica de uma criança de três anos, eu vinha com o carro a mil por hora, tentava uma ultrapassagem perigosa que gerasse uma batida cinematográfica e — Plouft! Cataplouft! E o João, com a calma de sempre, dizia: não agita. E voltava ao trânsito seu de cada dia. Feliz da vida.
João tem uma síndrome raríssima, cujo nome eu aprendi pequenininho, pra explicar pros meus amigos: ele tem síndrome de Apert. A síndrome é barra pesada e gera uma série de complicações que eu não vou enumerar aqui. Basta dizer que volta e meia outras crianças apontavam para ele e diziam coisas terríveis.
Uma vez, numa lanchonete, crianças endiabradas ficaram dando voltas em torno dele e gritando — Monstro! Monstro! Minha mãe pediu pra elas pararem. Nada. Sem saber o que fazer, derramou um copo cheio de Coca-Cola na cabeça delas. Elas saíram correndo. João teve uma crise de riso.
Depois, toda vez que uma criança ameaçava praticar um bullying com o João, minha Coca-Cola... E o João morria de rir.
João, hoje, é uma pessoa feliz. Até hoje adora um trânsito. Passa o dia no ônibus, pra lá e pra cá, muitas vezes sem destino — o destino é a viagem. Conhece todos os trajetos e todos os motoristas. E os motoristas adoram ele, que adora conversar muito mais que o indispensável. E adora a vida.
Uma vez, depois de uma cirurgia cranio-facial em que poderia ter morrido, João tomou um banho, se sentou na cama do hospital e disse para a minha avó: ai, que vida boa.
Viva o João. E viva a minha mãe, que além de jogar Coca-Cola nos problemas da vida, está contando a história do João num livro, que vai sair pela Companhia das Letras.
Hoje, quando o carro — e a vida— não andam e dá vontade de quebrar tudo com um taco de beisebol, lembro do João, no chão de casa: "não agita". O mundo, paradinho, tem a maior graça. Ai, que vida boa.