O sarampo, essa velha e infecciosa doença, quem já não teve?
Bem, a geração mais jovem no Brasil nem sabe o que é isso porque foi devidamente vacinada, assim como as crianças de hoje em dia, mas aqueles que, como eu, tinham menos de 10 anos de idade no início dos anos 1970, em sua maioria, tiveram sarampo (tristemente com algumas vítimas fatais) porque a vacinação ainda era incipiente ou inexistente em muitas regiões do país.
Lembro-me, por exemplo, que meu irmão - 3 anos mais velho que eu - esteve à beira da morte quando tinha 10 anos de idade, e jamais me saíram da mente as imagens dele indo e voltando do hospital prostrado na parte traseira do jipe do meu pai, ou do quarto escuro em que ele ficava o dia inteiro convalescendo.
Essas imagens estão indelevelmente gravadas na minha memória, muito provavelmente, porque foi o primeiro contato que eu tive com a possibilidade da morte de uma pessoa tão próxima. Os médicos praticamente o haviam "desenganado" (como se dizia naquela época para os casos terminais), mas Deus foi gracioso e - com o devido louvor à medicina da época - o trouxe de volta à família e à vida.
O sarampo em mim foi, digamos, mais light, e serviu apenas para entrar na minha vasta coleção de doenças contagiosas infantis: caxumba, coqueluche, catapora e rubéola, entre outras. Nada de que me orgulhe, mas sobrevivi, assim como meu irmão, graças ao bom Deus.
Escapamos por pouco da poliomielite, por exemplo, já que um amigo de infância do meu irmão não teve a mesma sorte de resistir ao vírus da paralisia infantil a tempo de ser vacinado já no fim dos anos 1960, e até hoje sofre as sequelas da pólio.
Minha irmã 9 anos mais nova não soube o que é isso, pois teve a felicidade de nascer numa era (1972) em que já era obrigatória e amplamente disponível a vacinação em massa contra os males que acometiam as crianças.
Tomo a liberdade de registrar aqui essas reminiscências de saúde pública da minha infância porque chegam notícias assustadoras dos Estados Unidos e do Canadá, que dão conta do avanço de uma epidemia de sarampo lá pelos lados do primeiro mundo, cuja principal causa é exatamente a falta de vacinação das crianças norteamericanas.
No Brasil, as últimas duas mortes por sarampo aconteceram em 1999, segundo informa o Hospital Albert Einstein. A Folha de S. Paulo registrava em fevereiro de 2014 que há um rebrote da doença no país e só o Estado do Ceará tinha registrado 81 casos até então.
A mesma matéria da Folha informa que o Brasil já havia tentado, em 2010, receber da Organização Pan-Americana de Saúde o certificado de país livre de sarampo, o que foi rejeitado porque a OPAS extinguiu essa classificação e passou a considerar o continente americano como um todo, o que a levará a emitir um certificado geral se e quando o mal for totalmente erradicado do Alaska à Terra do Fogo.
Tudo indica, portanto, que o grande foco de sarampo no continente é a sua porção Norte, onde estão exatamente os dois países mais desenvolvidos, Canadá e Estados Unidos, e é muito provável que o vírus que circula no Brasil tenha sido "importado" de lá pelos turistas que visitam a região.
O fato alarmante é que muitos pais americanos e canadenses vêm se recusando, desde longa data, a vacinar seus filhos contra o sarampo.
Isto tem feito com que um número crescente de médicos dos Estados Unidos também se recuse a tratar crianças que não foram vacinadas, segundo informa o The Daily Beast.
Obviamente, essa recusa médica em cuidar de crianças levanta questões éticas de altíssima prioridade, pois o interesse primordial que está em jogo é o dos pequeninos que não podem emitir a sua própria opinião, seja por incapacidade natural de se entender a questão em tão tenra idade, seja pela ignorância daqueles que deveriam tomar as decisões corretas em nome deles.
Entre as razões variadas que os pais alegam para não vacinar os seus filhos estão questões de preferência por medicina alternativa, o medo de que a vacina contra sarampo e rubéola cause autismo, e também objeções de cunho religioso.
Neste último caso, chama a atenção um pastor de Chilliwack (Colúmbia Britânica, Canadá), Rev. Adriaan Geuze da Congregação Reformada da América do Norte, que prega que a vacinação contra doenças infantis é uma interferência humana no cuidado de Deus para com suas criaturas, segundo informa The Vancouver Sun.
O Rev. Geuze afirma que "nós deixamos nas mãos de Deus. Se é da vontade dEle que nós peguemos uma doença contagiosa, como neste caso do sarampo, há outras maneiras, naturalmente, de se evitar isso. Se ficarmos doentes, Ele também pode nos curar".
Este descaso para com a saúde infantil já causou o registro de 100 crianças infectadas com sarampo em uma escola confessional de Chilliwack, o que alarmou as autoridades sanitárias locais.
Indagado sobre sua influência na recusa da população local em vacinar seus filhos, o Rev. Geuze se justifica dizendo: "Naturalmente, eu expresso abertamente o meu ponto de vista de acordo com a Bíblia, mas não é que eu os forço. É através da consciência deles que eles têm que agir. Eles esperam de mim que eu emita a minha opinião de maneira clara".
Portanto, nuvens negras (e medievais) assombram as terras mais ao Norte do continente americano. Esperamos que as crianças de lá, se e quando infectadas pelo sarampo, tenham a mesma sorte do meu irmão. E que dramas - hoje desnecessários e perfeitamente evitáveis - como o que vivemos não sejam experimentados por milhões de famílias ao redor do mundo.