sábado, 12 de abril de 2014

Bíblia: a nossa estrada comum


Artigo publicado no IHU:

Bíblia e literatura: o Nazareno beat. 
Artigo de Gianfranco Ravasi


Apesar de toda rejeição ou desmemoriamento, a Bíblia é – nas palavras do título do célebre ensaio de Northrop Frye – "o grande código" da nossa cultura; o Evangelho é a fonte da nossa civilização, como asseverava Kant; e o cristianismo, a "língua materna" da Europa, para usar uma definição bem conhecida de Goethe. 


A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 30-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto. 

Eis o texto.


Nietzsche estava convencido de que Jesus tinha morrido jovem demais: "De fato, ele mesmo teria renegado a própria doutrina se tivesse chegado à minha idade" (em Assim falou Zaratustra). O autor do Anticristo, então, estava persuadido de que o apóstolo Paulo era um deletério "desangelista", isto é, anunciador de uma "má nova", ao contrário dos evangelistas, e propunha no Ecce Homo a substituição de Dionísio no lugar de Cristo sobre os altares da civilização ocidental, elevando assim Atenas e Roma à ribalta, e afundando Jerusalém nos abismos, ao contrário do que sonhava João no Apocalipse. No entanto, o mesmo filósofo foi forçado a reconhecer em Aurora que, para nós, ocidentais, entre a experiência da leitura dos Salmos e a de Píndaro ou de Petrarca, há a mesma diferença existente entre a pátria e a terra estrangeira.

Não há dúvida: apesar de toda rejeição ou desmemoriamento, a Bíblia é – nas palavras do título do célebre ensaio de Northrop Frye – "o grande código" da nossa cultura; o Evangelho é a fonte da nossa civilização, como asseverava Kant; e o cristianismo, a "língua materna" da Europa, para usar uma definição bem conhecida de Goethe.

Eis, então, há muito tempo, a multiplicação de textos que aprofundam a chamada Wirkungsgeschichte, ou seja, a "história dos efeitos" que as Sagradas Escrituras e, mais em geral, o patrimônio cultural cristão induziram no nosso pensar, dizer e agir. O último livro que prossegue – obviamente, por sondagens e por símbolos – nessa busca vê como autora uma teóloga que também é filóloga clássica e anglicista, a alemã Karin Schöpflin, professora em Göttingen.

As suas páginas se entrelaçam ao longo da trama diacrônica da Bíblia, partindo, portanto, do incipit genesíaco, avançando de etapa em etapa através dos livros históricos, sapienciais e proféticos do Antigo Testamento, para chegar aos Evangelhos, à Igreja das origens dominada pela figura de Paulo e à tela grande final pintada pelo Apocalipse joanino.

Em cada uma dessas etapas, a autora demarca o seu discurso sobre dois registros: um é puramente exegético ("biblicamente"), o outro, ao invés, é dedicado à exemplificação da recepção literária das narrativas, dos personagens, dos símbolos, dos temas bíblicos ("literariamente"). Tem-se, assim, a intersecção de dois textos que, por si sós, também poderiam ser usados autonomamente, a fim de obter, no fim, uma introdução à Bíblia, de um lado, e uma vasta antologia literária, de outro.

A multidão de autores envolvidos – respondem ao apelo todos os maiores, de Alighieri a Tolstoi, apenas para evocar os extremos alfabéticos mais significativos – revela uma surpreendente sintonia com as Sagradas Escrituras, às vezes de formas inesperadas, outras vezes de modo provocativo. Assim, por exemplo, pode surpreender que – diante da infindável tradição literária que se agarrou àquela obra-prima que é o livro de Jó, até empurrá-lo ao longo de territórios estranho (pensemos em Resposta a Jó, de Jung) – Schöpflin tenha escolhido, além do drama Jedermann (Cada um) de von Hofmannsthal, a última novela do Decamerão, a de Gualtieri, Marquês de Saluzzo, e da pobre Griselda.

No interminável "paratexto" que flui a partir do "texto" evangélico e do seu protagonista, Jesus Cristo, emerge uma trilogia que vê dois sujeitos imponentes como o Messias, de Klopstock, e a Ressurreição, de Tolstoi, mas surpreendentemente também a "fábula de inverno" Deutschland, de Heine, com um Cristo "fracassado", mas transformador do mundo.

E, se quisermos voltar ao Bere'shit, o "No princípio" do Gênesis, eis que vêm ao nosso encontro necessariamente o Paraíso Perdido, de Milton, mas também o insuspeito Frankenstein, de Shelley (aquele horror, de fato, é sutilmente teológico, por ser prometeico e, portanto, obra de uma decriação antidivina), o menos conhecido Gellert, um poeta do século XVIII, e o "metafísico" do século XVII Marvell com o seu The Garden, centrado na desconcertante interpretação do paraíso como solidão absoluta, rompida pela presença do outro (Eva), verdadeiro pecado original.

Detemo-nos, sem continuar em uma leitura de extraordinária atração e de muitas iridescências. Fazemo-lo para abrir espaço não para uma resenha, mas apenas para uma sinalização de outro livro ainda mais fascinante que engloba, mas também transborda, o gênero agora proposto. Antonio Spadaro é o jesuíta nascido em 1966 que se tornou conhecido em todo o mundo pela entrevista com o Papa Francisco que publicada na Civiltà Cattolica, por ele dirigida.

Na verdade, ele é também um finíssimo intérprete da cultura norte-americana contemporânea e manifesta isso agora descrevendo a sua paisagem literária, porque se trata de uma verdadeira paisagem existencial e espiritual que se cruza com a histórico-geográfica. Esse afresco da América na sua pele e nas suas veias (como diz o título) se transforma em uma cavalgada ao longo de milhares de páginas poéticas e narrativas que são evocadas por Spadaro com a agudeza das suas análises, mas também com a entrada direta das vozes dos protagonistas através do encaixe das citações.

Vai-se do profeta e pioneiro Whitman e da inesquecível Dickinson, da "comédia humana" da antologia de Lee Masters ou ainda do "anel metafísico do mundo selvagem" de London, até a "inteligência lírica" de Ferlinghetti, à "épica das coisas e das imagens" e às suas epifanias de um Williams ou de Bishop. Mas se vai além, até personagens que sempre emocionam como Carver, Sylvia Plath, a O'Connor de Wise Blood e aquele "estranho solitário louco místico católico", como Kerouac se autodefine.

É justamente o retrato desse ícone da beat generation que nos surpreende pela sua insone espiritualidade, confiada a cartas, orações, poesias, invocações dirigidas a Deus, a Jesus, até mesmo a São Paulo: "Deus, devo ver o teu rosto esta manhã, o Teu Rosto através dos vidros empoeirados da janela, entre o vapor e o furor; devo ouvir a tua voz acima do clamor da metrópole...".

E, assim, Na estrada se torna uma peregrinação, e beat é a primeira "batida" evangélica de bem-aventurança: "Uma tarde, eu fui para a igreja da minha infância em Lowell, Massachusetts, e, de repente, com lágrimas nos olhos, quando ouvi o sagrado silêncio da igreja, tive a visão do que eu realmente quis dizer com a palavra Beat, a visão que a palavra Beat significava bem-aventurado...".



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