"Mein Kampf" ("Minha Luta" em alemão) é o livro maldito escrito por Adolf Hitler entre 1924 e 1925, em que ele delineia os princípios básicos do nazismo, alguns anos antes de chegar ao poder (em janeiro de 1933) e levar o mundo a outra guerra generalizada que ceifou cerca de 50 milhões de vidas entre 1939 e 1945.
O livro continua proibido na Alemanha, mas só até 1915, quando passa a ser de domínio público, o que provoca desde já reações dentro do país para que a obra de Hitler siga proibida por lá.
AS matérias abaixo foram publicadas no Estadão de 30/03/14, nos links indicados:
MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO
A recente notícia de que Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler, poderá ser reeditada em uma versão comentada pelo Instituto de História Contemporânea de Munique (Alemanha) tem gerado polêmica nos meios midiáticos. Ao mesmo tempo, tem criado apreensão entre aqueles que defendem a liberdade de expressão e lutam contra a proliferação do racismo no mundo contemporâneo. É natural e compreensível que tal anúncio repercuta negativamente nas comunidades judaicas, que durante o Holocausto foram as principais vítimas do programa de extermínio nazista e, ainda hoje, são foco da intolerância em vários países da Europa e Américas.
O fato de os direitos autorais de Mein Kampf - publicado em 18 de julho de 1925 - expirarem em 2015 não quer dizer que as ideias racistas ali editadas tenham seu tempo de validade vencido. O vírus da intolerância, endossado por Hitler e colaboradores enquanto programa genocida de Estado, não encontrou ainda - apesar de todas as resoluções e comissões de direitos humanos criadas pós-Auschwitz - um antídoto capaz de extirpar o veneno do antissemitismo, que continua vivo na epiderme da sociedade globalizada. Ainda que os direitos autorais dessa "bíblia nazista" estejam protegidos pelo Ministério das Finanças da Baviera desde 1948, a internet não encontrou barreiras legais para multiplicar e vender (a preço de doação) a obra.
Assim, cai por terra a justificativa do Instituto de História Contemporânea de Munique de que uma nova edição comentada, conforme propõe, "evitaria a publicação de outras edições financiadas pela extrema direita". Pura ingenuidade. Na minha opinião, obras como Mein Kampf e a obra apócrifa Os Protocolos dos Sábios de Sião continuam a incitar ao ódio aos judeus, além de pregar a intolerância sem limites. Sobrevivem de forma camuflada, servindo para alimentar mitos políticos, sendo inseridas na categoria "propaganda e psicologia política", conforme a Amazon.com, ou como obras de "ajuda mútua", vendidas em sebos e tiendas de feiras de antiguidades e livros usados. Argumentar que a proibição da reedição de Mein Kampf infringe os direitos de liberdade de expressão ou que atenta contra a liberdade científica não tem sustentação, pois antes de mais nada devemos nos prevenir contra a reedição do ódio e a incitação às práticas genocidas. Para esses casos, excepcionalmente, a palavra "liberdade" impõe limites, pois abre oportunidades para o renascimento da "besta nazista". Alguma razão maior deve existir para que a reprodução e venda de Mein Kampf estivessem proibidas na Alemanha, que ainda hoje tenta lidar com a própria história e o número de 6 milhões de judeus exterminados durante o Holocausto.
O livro Mein Kampf , escrito em dois volumes entre 1924-1925, é certamente uma obra fundamental para compreendermos o processo de construção dos ideais do nacional-socialismo. No entanto, ainda que contextualizado cientificamente, reeditará a visão da pureza racial ariana e o ódio aos judeus que têm suas raízes nas pseudoteorias do século 19. Mein Kampf é um documento histórico e, como tal, deve estar preservado nas sessões de obras raras dos arquivos e bibliotecas de qualquer país consciente do recrudescimento do antissemitismo no mundo atual. Não deve ser leiloado como "peça de antiquário" nem vendido como "exemplar raro" pelos sebos que, a cada dia, conquistam clientes racistas camuflados de colecionadores favorecidos pelo anonimato do mundo digital.
A reedição comentada de Mein Kampf, por mais bem-intencionada que seja, sempre abrirá espaço para interpretações dúbias por parte daqueles que não estão interessados em diferenciar uma obra comentada do conteúdo racista da obra original. Ela abre uma fratura que favorece atos racistas da extrema direita e servirá de munição para os neonazistas, que, assim como seus antecessores nazistas, pouco se importam com esclarecimentos científicos. Uma nova edição de Mein Kampf não vai minimizar o antissemitismo latente, cada vez mais, no mundo globalizado de hoje.
Impossível concordar com a reedição de Mein Kampf, que, do ponto de vista da legislação brasileira, será interpretado como uma publicação que incita ao ódio aos judeus, sendo passível de penalização como "crime de racismo, inafiançável e imprescritível". Foi com base na Lei 7.716, de 25 de janeiro de 1989, que Siegfried Ellwanger Castan, proprietário da Editora Revisão e autor de várias obras que negavam o Holocausto, foi condenado pelo STF em 2003, um marco histórico na jurisprudência brasileira. A condenação veio apos várias denúncias encaminhadas, desde 1986, à Coordenadoria das Promotorias Criminais e ao Ministério Público. Manifestaram-se na ocasião o grupo Movimento Popular Anti-Racismo, formado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, pelo Movimento Negro Brasileiro e pela comunidade judaica de Porto Alegre. Em 1991, a Justiça ordenou a busca e apreensão dos exemplares dos livros publicados pela Editora Revisão, entre os quais: Holocausto Judeu ou Alemão? Nos Bastidores da Mentira do Século, do próprio Castan, Hitler Culpado ou Inocente?, de Sérgio Oliveira, e Os Protocolos dos Sábios de Sião, prefaciado por Gustavo Barroso, sendo essa uma "edição comemorativa" em homenagem ao principal teórico antissemita no Brasil dos anos 1930 e 40. Em São Paulo, as denúncias contra obras racistas podem ser encaminhadas à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), órgão público criado para o combate aos crimes de racismo e homofobia, preconceito e intolerância, sobretudo religiosa.
Em síntese: Mein Kampf não é uma publicação liberada no Brasil, ainda que com o selo do conceituado Instituto de História Contemporânea de Munique. Não vejo aqui conflito entre liberdade de expressão e a dignidade humana, ambos direitos constitucionalmente protegidos pela legislação brasileira. É, antes de mais nada, um direito humano universal de preservação da vida.
Dois exemplares autografados de Mein Kampf, de Adolf Hitler, foram leiloados por US$ 64 mil no dia 28 de fevereiro, em Los Angeles. Na quinta-feira, o alemão Kim Dotcom (fundador do MegaUpload) disse que adquiriu uma cópia assinada do livro como 'investimento'.
Mein Kampf (Minha Luta), escrito por Adolf Hitler, é um livro maldito. Trata-se, provavelmente, da obra mais execrada da historiografia do século 20, um dos principais símbolos do regime mais odiado desse período, senão de toda a história. Por essa razão, sua reedição, na Alemanha, estava até recentemente cercada de interdições. Temia-se, não sem razão, que a liberação de um livro tão identificado com o pensamento hitleriano pudesse disseminar ainda mais essa ideologia hedionda, alimentando o antissemitismo feroz que dele transborda. No entanto, a obra passará ao domínio público em 2015. Nessa ocasião, o respeitadíssimo Instituto de História Contemporânea de Munique, comissionado pelo governo da Baviera, pretende lançar uma edição comentada de Mein Kampf - e nem todo o provável cuidado que o instituto terá ao lidar com o texto de Hitler é suficiente para afastar o receio de que, uma vez em circulação sem nenhum tipo de censura, o livro se torne imediatamente difusor das ideias nazistas. Em razão disso, muitos defendem que Mein Kampf permaneça proibido. Trata-se de um equívoco.
O texto de Hitler é daqueles casos em que o livro é muito mais comentado do que lido. Enfadonha, mal escrita e pretensiosa, a obra chegou a ser distribuída pelo regime nazista a todo casal recém-casado na Alemanha, como um presente do Führer. No entanto, havia gente dentro do próprio regime que não havia lido o livro - Reinhard Heydrich, o executor da Solução Final, nunca ouvira falar de Mein Kampf até pelo menos 1930, quando conheceu sua futura mulher, que, nazista convicta, lhe apresentou a obra.
Tudo o que Hitler tinha a dizer, muitas vezes sem nenhum constrangimento ou desejo de esconder suas verdadeiras intenções, ele o fazia em seus discursos - e não se tem conhecimento de que esses pronunciamentos, carregados de ódio, estejam proibidos. Muito ao contrário: eles constam de qualquer dos livros mais respeitados da historiografia sobre o nazismo e integram antologias documentais, como a clássica obra de Max Domarus The Essential Hitler, que reúne todos os discursos do ditador.
Ademais, há livros e textos muito mais virulentos que Mein Kampf e que não são objeto de censura. Um bom exemplo é o diário de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler. Nele, por exemplo, encontram-se, sem subterfúgios, descrições dos judeus como se fossem animais. A propósito dos judeus que ele viu no gueto de Lódz, na Polônia, Goebbels fala da necessidade urgente de exterminá-los (vernichtet): "É indescritível. Eles não são mais seres humanos. São animais. Assim, não se trata de uma tarefa humanitária, mas cirúrgica. Do contrário, a Europa perecerá graças à peste judaica".
Textos como esse circulam livremente e estão nas melhores livrarias do mundo. Mesmo que não estivessem, mesmo que, por hipótese, todas as diatribes pronunciadas ou escritas por nazistas e seus simpatizantes fossem proibidas de uma hora para outra, o acesso a essas obras estaria garantido: basta ter um computador ligado à internet e entrar nos sites de livrarias virtuais, como iTunes e Amazon, ou em diversos sites neonazistas, inclusive com tradução para o português. Na loja do iTunes, por exemplo, duas versões do Mein Kampf apareciam em 12º e 15º lugar entre os e-books de "política e atualidades" mais vendidos em janeiro.
Por essa razão, até mesmo a Liga Antidifamação (ADL, em sua sigla em inglês), principal entidade judaica dedicada a combater o antissemitismo no mundo e que por décadas defendeu a censura ao Mein Kampf, rendeu-se às evidências de que proibir a circulação, neste caso, é simplesmente inútil. No mês passado, a ADL decidiu publicar um prefácio ao Mein Kampf para ser anexado pelos editores do livro na forma de e-book, de modo a alertar os leitores sobre a natureza do texto e seu papel na disseminação do ódio aos judeus. "Acreditamos que a única forma construtiva de publicar o livro seja com uma introdução que explique seu contexto histórico e o impacto do pensamento por trás das palavras de Hitler", diz o texto da ADL. A edição que o Instituto de História Contemporânea de Munique pretende lançar tem o mesmo objetivo.
A precaução é obviamente necessária. Mein Kampf não é um livro qualquer. É o "livro sagrado" do nazismo, como salientou Victor Klemperer, o linguista judeu que permaneceu na Alemanha durante o nazismo e descreveu em seus diários a destruição da civilização naquele país. A obra de Hitler guarda esse simbolismo e deve, portanto, ser cercada de cuidados especiais. Mas proibi-la seria privar os historiadores e outros interessados na Alemanha nazista de um texto fundamental. Trata-se de um documento de rara importância, pois lá estão delineados os projetos de extermínio dos judeus, na luta racial de vida ou morte que Hitler vislumbrou quase uma década antes de chegar ao poder.
Ademais, manter a obra indefinidamente sob censura é inútil principalmente porque os antissemitas não precisam de Mein Kampf para nutrir seu ódio aos judeus. Não é um livro que guarda o espírito do Mal.