A CIÊNCIA DA PROCRASTINAÇÃO
Em janeiro, as promessas para 2011 jazem com 2010. O peso não baixa. O cigarro é ainda a chupeta predileta
O ANO começa e os enganos começam também. Quando o relógio marca a virada, o digníssimo leitor vai elaborando, material ou mentalmente, as grandes decisões para 2011. Perder peso. Deixar de fumar. Trabalhar melhor. Amar melhor. Fazer aquela viagem. Se possível, deixar de roer as unhas.
Em finais de janeiro, as promessas para 2011 jazem com 2010. O peso não baixa. Aumenta. Os cigarros continuam a ser a chupeta predileta. O trabalho continua entediante, massacrante. A relação, definitivamente, não dá. A viagem -enfim, será possível viajar numa altura dessas?
O estresse é tal que já não existem unhas para roer; nem sabugo; às vezes, nem dedos.
Sei do que falo. Também eu sou dado ao delírio. Consulto os meus diários passados e constato, sem surpresa, que jamais cumpri uma única promessa das mil que faço anualmente.
Durante anos, como Samuel Pepys (1633-1703), também nos diários, usava um chicote mental de culpa e frustração para fustigar a minha consciência.
Descubro agora, via "The New Yorker", que o meu problema -melhor: o nosso problema, irmão leitor, é um dos grandes desafios filosóficos do tempo moderno.
Chama-se "procrastinação", mas, na verdade, é maleita que já existe desde os gregos.
Nossos antepassados até tinham um termo mais rigoroso para ela: "akrasia". Significa tomar uma decisão que é racionalmente contrária aos nossos interesses. Ou, no caso em apreço, não tomar decisão nenhuma. Adiar. Mascarar. Preguiçar. E desistir.
Segundo James Surowiecki, autor do artigo, o número de pessoas que admite problemas de procrastinação não para de aumentar em todos os estudos feitos sobre a matéria.
Um dos últimos, intitulado "The Thief of Time" (Oxford, 320 págs.) e analisado com detalhe por Surowiecki, dá apenas um exemplo entre mil: 70% dos pacientes com glaucoma arriscam a cegueira porque não usam as suas gotas regularmente. Deixam ficar para amanhã. Ou para depois de amanhã. Ou para depois de depois de amanhã.
Exatamente como nós: perder peso é um objetivo nobre. Para começar amanhã. Ou depois de amanhã. Ou depois de depois de amanhã. E eis que chega 2012.
Como explicar o fenômeno? Mentes pessimistas diriam: porque somos intrinsecamente preguiçosos.
Outras, mais otimistas, dirão que a preguiça nasce da ignorância: se os homens sabem o que é melhor para eles, agirão em conformidade para seu próprio bem.
A tradição intelectual do Ocidente assenta nessa fé: sabedoria é virtude, já dizia Platão.
Infelizmente, a procrastinação arrasa com tais certezas. E, contrariamente ao que imaginam otimistas e pessimistas, é traço humano e bem racional da nossa condição.
Afirma Surowiecki que todos os nossos planos assentam numa falácia simples: a ideia de que somos, como humanos, consistentes ao longo do tempo.
Mas não somos. A nossa consistência é testada, todos os dias, por fatores que não controlamos e que subvertem a beleza imaculada de nossas aspirações. Uma súbita promoção. Um súbito despedimento. Novos amores. Novos desamores. Alegrias imprevistas. Tristezas imprevistas. Como diria o sábio Nelson, a vida como ela é.
E, na vida como ela é, não dependemos apenas de fatores contingentes. Nós próprios estamos perpetuamente divididos entre o curto prazo e o longo prazo, avisa Surowiecki.
Uma batalha espiritual onde o diabrete do imediato vence o anjo mais distante. Repito: perder peso é uma aspiração nobre. Mas só depois de mais uma fatia de doce.
Conta o autor, em pormenor divino, que o escritor Victor Hugo (1802-1885) tinha por hábito escrever despido, pedindo ao criado que escondesse as suas roupas.
Era a única forma de ele ficar sentado à mesa, a trabalhar, sem ceder à tentação da vadiagem pelas ruas de Paris. Como eu o entendo.
Começa 2011. E nós começamos a construir planos para uma vida mais rigorosa, e saudável, e equilibrada.
Não funcionará. A vida não é assim. Nós não somos assim.
E se existe alguma certeza na "ciência da procrastinação" é esta: objetivos vagos e distantes começam a recuar perante necessidades mais imediatas, mais prementes. Mais presentes.
Ou, inversamente, nossos planos devem ser diários; humildes; transitórios; e sempre frágeis.
Rasgo todas as listas que preparei para 2011. Sem sentimento de culpa. O que será, será. Mas uma coisa prometo: amanhã mesmo, começarei a escrever despido.
jpcoutinho@folha.com.br
O ANO começa e os enganos começam também. Quando o relógio marca a virada, o digníssimo leitor vai elaborando, material ou mentalmente, as grandes decisões para 2011. Perder peso. Deixar de fumar. Trabalhar melhor. Amar melhor. Fazer aquela viagem. Se possível, deixar de roer as unhas.
Em finais de janeiro, as promessas para 2011 jazem com 2010. O peso não baixa. Aumenta. Os cigarros continuam a ser a chupeta predileta. O trabalho continua entediante, massacrante. A relação, definitivamente, não dá. A viagem -enfim, será possível viajar numa altura dessas?
O estresse é tal que já não existem unhas para roer; nem sabugo; às vezes, nem dedos.
Sei do que falo. Também eu sou dado ao delírio. Consulto os meus diários passados e constato, sem surpresa, que jamais cumpri uma única promessa das mil que faço anualmente.
Durante anos, como Samuel Pepys (1633-1703), também nos diários, usava um chicote mental de culpa e frustração para fustigar a minha consciência.
Descubro agora, via "The New Yorker", que o meu problema -melhor: o nosso problema, irmão leitor, é um dos grandes desafios filosóficos do tempo moderno.
Chama-se "procrastinação", mas, na verdade, é maleita que já existe desde os gregos.
Nossos antepassados até tinham um termo mais rigoroso para ela: "akrasia". Significa tomar uma decisão que é racionalmente contrária aos nossos interesses. Ou, no caso em apreço, não tomar decisão nenhuma. Adiar. Mascarar. Preguiçar. E desistir.
Segundo James Surowiecki, autor do artigo, o número de pessoas que admite problemas de procrastinação não para de aumentar em todos os estudos feitos sobre a matéria.
Um dos últimos, intitulado "The Thief of Time" (Oxford, 320 págs.) e analisado com detalhe por Surowiecki, dá apenas um exemplo entre mil: 70% dos pacientes com glaucoma arriscam a cegueira porque não usam as suas gotas regularmente. Deixam ficar para amanhã. Ou para depois de amanhã. Ou para depois de depois de amanhã.
Exatamente como nós: perder peso é um objetivo nobre. Para começar amanhã. Ou depois de amanhã. Ou depois de depois de amanhã. E eis que chega 2012.
Como explicar o fenômeno? Mentes pessimistas diriam: porque somos intrinsecamente preguiçosos.
Outras, mais otimistas, dirão que a preguiça nasce da ignorância: se os homens sabem o que é melhor para eles, agirão em conformidade para seu próprio bem.
A tradição intelectual do Ocidente assenta nessa fé: sabedoria é virtude, já dizia Platão.
Infelizmente, a procrastinação arrasa com tais certezas. E, contrariamente ao que imaginam otimistas e pessimistas, é traço humano e bem racional da nossa condição.
Afirma Surowiecki que todos os nossos planos assentam numa falácia simples: a ideia de que somos, como humanos, consistentes ao longo do tempo.
Mas não somos. A nossa consistência é testada, todos os dias, por fatores que não controlamos e que subvertem a beleza imaculada de nossas aspirações. Uma súbita promoção. Um súbito despedimento. Novos amores. Novos desamores. Alegrias imprevistas. Tristezas imprevistas. Como diria o sábio Nelson, a vida como ela é.
E, na vida como ela é, não dependemos apenas de fatores contingentes. Nós próprios estamos perpetuamente divididos entre o curto prazo e o longo prazo, avisa Surowiecki.
Uma batalha espiritual onde o diabrete do imediato vence o anjo mais distante. Repito: perder peso é uma aspiração nobre. Mas só depois de mais uma fatia de doce.
Conta o autor, em pormenor divino, que o escritor Victor Hugo (1802-1885) tinha por hábito escrever despido, pedindo ao criado que escondesse as suas roupas.
Era a única forma de ele ficar sentado à mesa, a trabalhar, sem ceder à tentação da vadiagem pelas ruas de Paris. Como eu o entendo.
Começa 2011. E nós começamos a construir planos para uma vida mais rigorosa, e saudável, e equilibrada.
Não funcionará. A vida não é assim. Nós não somos assim.
E se existe alguma certeza na "ciência da procrastinação" é esta: objetivos vagos e distantes começam a recuar perante necessidades mais imediatas, mais prementes. Mais presentes.
Ou, inversamente, nossos planos devem ser diários; humildes; transitórios; e sempre frágeis.
Rasgo todas as listas que preparei para 2011. Sem sentimento de culpa. O que será, será. Mas uma coisa prometo: amanhã mesmo, começarei a escrever despido.
jpcoutinho@folha.com.br
Leia também a reflexão "Não procrastine!", por Lloyd John Ogilvie.
Graça&Paz!!
ResponderExcluirGostei imenso este artigo e surge num momento certo, parece que para você este foi o melhor dia para postar tal artigo. Ainda bem que não procrastinou(rsrs).
O artigo termina da melhor maneira possível fazendo jus ao título: "Mas uma coisa prometo: amanhã mesmo, começarei a escrever despido."
Abraços
Obrigado, irmão!
ResponderExcluirFico feliz que tenha te inspirado. Sugiro que você clique na tag "procrastinação" que vai te levar a outro texto do Lloyd John Ogilvie que eu gosto muito também.
Abraço!