Crônicas de Machado de Assis publicadas na Gazeta de Notícias nos seguintes dias (acesse a fonte clicando em cada data):
1) 5 de outubro de 1885:
Mal adivinham os leitores onde estive sexta-feira. Lá vai; estive na sala da Federação Espírita Brasileira, onde ouvi a conferência que fez o Sr. M. F. Figueira sobre o espiritismo.
Sei que isto, que é uma novidade para os leitores, não o é menos para própria Federação, que me não viu, nem me convidou; mas foi isto mesmo que me converteu à doutrina, foi este caso inesperado de lá entrar, ficar, ouvir e sair, sem que ninguém desse pela coisa.
Confesso a minha verdade. Desde que li em um artigo de um ilustre amigo meu, distinto médico, a lista das pessoas eminentes que na Europa acreditam no espiritismo, comecei a duvidar da minha dúvida. Eu, em geral, creio em tudo aquilo que na Europa é acreditado. Será obcecação, preconceito, mania, mas é assim mesmo, e já agora não mudo, nem que me rachem. Portanto, duvidei, e ainda bem que duvidei de mim.
Estava à porta do espiritismo; a conferência de sexta-feira abriu-me a sala de verdade.
Achava-me em casa, e disse comigo, dentro d’alma, que, se me fosse dado ir em espírito à sala da Federação, assistir à conferência, jurava converter-me à doutrina nova.
De repente, senti uma coisa subir-me pelas pernas acima, enquanto outra coisa descia pela espinha abaixo; dei um estalo e achei-me em espírito, no ar. No chão jazia o meu triste corpo, feito cadáver. Olhei para um espelho, a ver se me via, e não vi nada; estava totalmente espiritual. Corri à janela, saí, atravessei a cidade, por cima das casas, até entrara na sala da Federação.
Lá não vi ninguém, mas é certo que a sala estava cheia de espíritos, repimpados em cadeiras abstratas. O presidente, por meio de uma campainha teórica, chamou a atenção de todos e declarou abertos os trabalhos. O conferente subiu à tribuna, traste puramente racional, levantaram-lhe um copo d’água hipotético, e começou o discurso.
Não ponho aqui o discurso, mas um só argumento. O orador combateu as religiões do passado, que têm de ser substituídas todas pelo espiritismo, e mostrou que as concepções delas não podem mais ser admitidas, por não permiti-lo a instrução do homem; tal é, por exemplo, a existência do diabo. Quando ouvi isto, acreditei deveras. Mandei o diabo ao diabo, e aceitei a doutrina nova, como a última e definitiva.
Depois, para que não dessem por mim (porque desejo uma iniciação em regra), esgueirei-me por uma fechadura, atravessei o espaço e cheguei a casa, onde… Ah! que não sei de nojo como o conte! Juro por Allan-Kardec, que tudo o que vou dizer é verdade pura, e ao mesmo tempo a prova de que as conversações recentes não limpam logo o espírito, de certas ilusões antigas.
Vi o meu corpo sentado e rindo. Parei, recuei, avancei e disse-lhe que era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que saísse e mo restituísse. E vi que a minha cara ria, que as minhas pernas cruzavam-se, ora a esquerda sobre a direita, ora esta sobre aquela, e que as minhas mãos abriam uma caixa de rapé, que os meus dedos tiravam uma pitada, que a inseriam nas minhas ventas. Feitas todas essas coisas, disse a minha voz.
— Já lhe restituo o corpo. Nem entrei nele senão para descansar um bocadinho, coisa rara, agora que ando a sós…
— Mas quem é você?
— Sou o diabo, para o servir.
— Impossível! Você é uma concepção do passado, que o homem…
— Do passado, é certo. Concepção vá ele! Lá porque estão outros no poder, e tiram-me o emprego, que não era de confiança, não é motivo para dizer-me nomes.
— Mas Allan-Kardec…
Aqui, o diabo sorriu tristemente com a minha boca, levantou-se e foi à mesa, onde estavam as folhas do dia. Tirou uma e mostrou-me o anúncio de um medicamento novo, o rábano iodado, com esta declaração no alto, em letras grandes: “Não mais óleo de fígado de bacalhau”. E leu-me que o rábano curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia curar — pretensão de todo medicamento novo. Talvez quisesse fazer nisto alguma alusão ao espiritismo. O que sei é que, antes de restituir-me o corpo, estendeu-me cordialmente a mão, e despedimo-nos como amigos velhos:
— Adeus, rábano!
— Adeus, fígado!
2) 7 de junho de 1889:
Bons dias!
Não gosto que me chamem profeta de fatos consumados; pelo que, apresso-me em publicar o que vai suceder, enquanto o Conselho de Estado se acha reunido no paço da cidade.
Verdade seja, que o meu mérito é escasso e duvidoso; devo o principal dos prognósticos ao espírito de Nostradamus, enviado pelo meu amigo José Basílio Moreira Lapa, cambista, proprietário, pai de um dos melhores filhos deste mundo, vítima do Monte Pio e de um reumatismo periódico.
Lapa está naquele período do espiritismo em que o homem, já inclinado ao obscuro, dispõe de razão ainda clara e penetrante, e pode entreter conversações com os espíritos. Há, entretanto, uma lacuna nessa primeira fase: é que os espíritos acodem menos prontamente, e a prova é que desejando eu consultar Vasconcelos, Vergueiro ou o Padre Feijó, como pessoas de casa, não foi possível ao meu amigo Lapa fazê-las chegar à fala; só consegui Nostradamus. Não é pouco; há mestres que não o alcançariam nunca.
A segunda fase do espiritismo é muito melhor. Depois de quatro ou cinco anos (prazo da primeira), começa a pura demência. Não é vagarosa nem súbita, um meio-termo, com este característico: o espírita, à medida que a demência vai crescendo, atira-se-lhe mais rápido. O último salto nas trevas dura minuto e meio a dois minutos. Há casos excepcionais de cinco e dez minutos, mas só em climas frios e muito frios, ou então nas estações invernosas. Nos climas quentes e durante o verão, o mais que se terá visto, é cair em três minutos.
Não se entenda, porém, que esta queda é apreciável por qualquer pessoa; só o pode ser por alienistas e de grande observação. Com efeito, para o vulgo não há diferença; desde o princípio da alienação mental (isto é, começado o segundo prazo do espiritismo, que é depois de quatro ou cinco anos, como ficou dito), o espírita está perdido a olhos vistos; os atos e palavras indicam o desequilíbrio mental; não há ilusão a tal respeito. Conversa-se com eles; raros compreendem logo em princípio o sol e a lua; mostram-se todos afetuosos leais e atentos. Mas o transtorno cerebral é claro. Toda a gente vê que fala a doentes.
Entretanto, (mistério dos mistérios!) é justamente assim e principalmente depois do último salto nas trevas, que os espíritos vagabundos ou penantes acodem ao menor aceno, não menos que os de pessoas célebres, batizadas ou não.
Tem-se calculado que, dos espíritos evocados durante um ano, 28 por cento o foram por espíritas ainda meio sãos (primeira fase); 72 por cento pertencem aos mentecaptos. Alguns estatísticos chegam a conceder aos últimos 79 por cento; mas parece excessivo.
Não importa ao nosso caso a porcentagem exata; basta saber que, para a melhor evocação e mais fácil troca de idéias, é preferível o maníaco ao são, e o doido varrido ao maníaco. Nem pareça isto maravilha; maravilha será, mas de legítima estirpe. Montaigne, muito apreciado por um dos nossos primeiros senadores e por este seu criado, dizia com aquela agudeza que Deus lhe deu: C'est un grand ouvrier de miracles que l'esprit humain! Os milagres do espiritismo são tais; a rigor, é o espírito humano que faz o seu ofício.
Eu chegaria a propor, se tivesse autoridade científica, um meio de desenvolver esta planta essencialmente espiritual. Estabeleceria por lei os casamentos espíritas, isto é, em que ambos os cônjuges fossem examinados e reconhecidos como inteiramente entrados na segunda fase. Os filhos desses casais trariam do berço o dom especial, em virtude da transmissão. Quando algum, escapando pela malhas dessa lei natural (todos as têm) chegasse a simples mediocridade, paciência; os restantes, confinando na idiotia e no cretinismo (com perdão de quem me ouve), preparariam as bases de um excelente século futuro.
Venhamos ao nosso Lapa. Evocado Nostradamus, vi claramente o que ele referiu ao evocador. Em primeiro lugar, a maioria do Conselho de Estado é contrária à dissolução da Câmara dos Deputados, que alguns dizem incorretamente (explicou ele) "dissolução das Câmaras". Sairá o gabinete de 10 de março. É convidado o Sr. Correia, depois o Sr. Visconde do Cruzeiro, depois novamente o Sr. Correia, e o Sr. Visconde de Vieira da Silva. Este, apesar de enfermo, tentará organizar um gabinete que concilie as duas partes do Partido Conservador; não o conseguirá; será chamado o Sr. Saraiva, que não aceita; sobe o Sr. Visconde de Ouro Preto e estão os liberais de cima.
Boas noites.
3) 29 de agosto de 1889:
Bons dias!
Hão de fazer-me esta justiça, ainda os meus mais ferrenhos inimigos: é que não sou curandeiro, eu não tenho parente curandeiro, não conheço curandeiro, e nunca vi cara, fotografia ou relíquia, sequer, de curandeiro. Quando adoeço não é de espinhela caída, — coisa que podia aconselhar-me a curandeira; é sempre de moléstias latinas ou gregas. Estou na regra; pago impostos, sou jurado, não me podem argüir a menor quebra de dever público.
Sou obrigado a dizer tudo isso, como uma profissão de fé, porque acabo de ler o relatório médico acerca das drogas achadas em casa do curandeiro Tobias. Saiu hoje; é um bom documento. Falo também porque outras muitas coisas me estimulam a falar, como dizia o curandeiro-mor, Mal das Vinhas, chamado, que já lá está no outro mundo. Falo ainda, porque nunca vi tanto curandeiro apanhado, — o que prova que a indústria é lucrativa.
Pelo relatório se vê que Tobias é um tanto Monsieur Jourdain, que falava em prosa sem o saber; Tobias curava em línguas clássicas. Aplicava, por exemplo, solanum argentum, certa erva, que não vem com outro nome; possuía umas cinqüenta gramas de aristolochia appendiculata, que dava aos clientes; é a raiz de mil-homens. Tinha, porém, umas bugigangas curiosas, esporões de galo, pés de galinha secos, medalhas, pólvora e até um chicote feito de rabo de raia, que eu li rabo de saia, coisa que me espantou, porque estava, estou e morrerei na crença de que rabo de saia é simples metáfora. Vi depois o que era rabo de raia. Chicote para quê?
Tudo isto, e ainda mais, foi apanhado ao Tobias, no que fizeram muito bem, e oxalá se apanhem as bugigangas e drogas aos demais curandeiros, e se punam estes, como manda a lei.
A minha questão é outra, e tem duas faces.
A primeira face é toda de veneração; punamos o curandeiro, mas não esqueçamos que a curandeira foi a célula da medicina. Os primeiros doentes que houve no mundo, ou morreram ou ficaram bons. Interveio depois o curandeiro, com algumas observações rudimentárias, aplicou ervas, que é o que havia à mão, e ajudou a sarar ou a morrer o doente. Daí vieram andando, até que apareceu o médico. Darwin explica por modo análogo a presença do homem na terra. Eu tenho um sobrinho, estudante de medicina, a quem digo sempre que o curandeiro é pai de Hipócrates, e, sendo o meu sobrinho filho de Hipócrates, o curandeiro é avô do meu sobrinho; e descubro agora que vem a ser meu tio, — fato que eu neguei a princípio. Também não borro o que lá está. Vamos à segunda face.
A segunda é que o espiritismo não é menos curanderia que a outra, e é mais grave, porque se o curandeiro deixa os seus clientes estropiados e dispépticos, o espírita deixa-os simplesmente doidos. O espiritismo é uma fábrica de idiotas e alienados, que não pode subsistir. Não há muitos dias deram notícia as nossas folhas de um brasileiro que, fora daqui, em Lisboa, foi recolhido em Rilhafoles, levado pela mão do espiritismo.
Mas não é preciso que dêem entrada solene nos hospícios. O simples fato de engolir aqueles rabos de raia, pés de galinha, raiz de mil-homens e outras drogas vira o juízo, embora a pessoa continue a andar na rua, a cumprimentar os conhecidos, a pagar as contas, e até a não pagá-las, que é meio de parecer ajuizado. Substancialmente é homem perdido. Quando eles me vêm contar uns ditos de Samuel e de Jesus Cristo, sublinhados de filosofia de armarinho, para dar na perfeição sucessiva das almas, segundo estas mesmas relatam a quem as quer ouvir, palavra que me dá vontade de chamar a polícia e um carro.
Os espíritas que me lerem hão de rir-se de mim, porque é balda certa de todo maníaco lastimar a ignorância dos outros. Eu, legislador, mandava fechar todas as igrejas dessa religião, pegava dos religionários e fazia-os purgar espiritualmente de todas as suas doutrinas; depois, dava-lhes uma aposentadoria razoável.
Boas noites!
1) 5 de outubro de 1885:
Mal adivinham os leitores onde estive sexta-feira. Lá vai; estive na sala da Federação Espírita Brasileira, onde ouvi a conferência que fez o Sr. M. F. Figueira sobre o espiritismo.
Sei que isto, que é uma novidade para os leitores, não o é menos para própria Federação, que me não viu, nem me convidou; mas foi isto mesmo que me converteu à doutrina, foi este caso inesperado de lá entrar, ficar, ouvir e sair, sem que ninguém desse pela coisa.
Confesso a minha verdade. Desde que li em um artigo de um ilustre amigo meu, distinto médico, a lista das pessoas eminentes que na Europa acreditam no espiritismo, comecei a duvidar da minha dúvida. Eu, em geral, creio em tudo aquilo que na Europa é acreditado. Será obcecação, preconceito, mania, mas é assim mesmo, e já agora não mudo, nem que me rachem. Portanto, duvidei, e ainda bem que duvidei de mim.
Estava à porta do espiritismo; a conferência de sexta-feira abriu-me a sala de verdade.
Achava-me em casa, e disse comigo, dentro d’alma, que, se me fosse dado ir em espírito à sala da Federação, assistir à conferência, jurava converter-me à doutrina nova.
De repente, senti uma coisa subir-me pelas pernas acima, enquanto outra coisa descia pela espinha abaixo; dei um estalo e achei-me em espírito, no ar. No chão jazia o meu triste corpo, feito cadáver. Olhei para um espelho, a ver se me via, e não vi nada; estava totalmente espiritual. Corri à janela, saí, atravessei a cidade, por cima das casas, até entrara na sala da Federação.
Lá não vi ninguém, mas é certo que a sala estava cheia de espíritos, repimpados em cadeiras abstratas. O presidente, por meio de uma campainha teórica, chamou a atenção de todos e declarou abertos os trabalhos. O conferente subiu à tribuna, traste puramente racional, levantaram-lhe um copo d’água hipotético, e começou o discurso.
Não ponho aqui o discurso, mas um só argumento. O orador combateu as religiões do passado, que têm de ser substituídas todas pelo espiritismo, e mostrou que as concepções delas não podem mais ser admitidas, por não permiti-lo a instrução do homem; tal é, por exemplo, a existência do diabo. Quando ouvi isto, acreditei deveras. Mandei o diabo ao diabo, e aceitei a doutrina nova, como a última e definitiva.
Depois, para que não dessem por mim (porque desejo uma iniciação em regra), esgueirei-me por uma fechadura, atravessei o espaço e cheguei a casa, onde… Ah! que não sei de nojo como o conte! Juro por Allan-Kardec, que tudo o que vou dizer é verdade pura, e ao mesmo tempo a prova de que as conversações recentes não limpam logo o espírito, de certas ilusões antigas.
Vi o meu corpo sentado e rindo. Parei, recuei, avancei e disse-lhe que era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que saísse e mo restituísse. E vi que a minha cara ria, que as minhas pernas cruzavam-se, ora a esquerda sobre a direita, ora esta sobre aquela, e que as minhas mãos abriam uma caixa de rapé, que os meus dedos tiravam uma pitada, que a inseriam nas minhas ventas. Feitas todas essas coisas, disse a minha voz.
— Já lhe restituo o corpo. Nem entrei nele senão para descansar um bocadinho, coisa rara, agora que ando a sós…
— Mas quem é você?
— Sou o diabo, para o servir.
— Impossível! Você é uma concepção do passado, que o homem…
— Do passado, é certo. Concepção vá ele! Lá porque estão outros no poder, e tiram-me o emprego, que não era de confiança, não é motivo para dizer-me nomes.
— Mas Allan-Kardec…
Aqui, o diabo sorriu tristemente com a minha boca, levantou-se e foi à mesa, onde estavam as folhas do dia. Tirou uma e mostrou-me o anúncio de um medicamento novo, o rábano iodado, com esta declaração no alto, em letras grandes: “Não mais óleo de fígado de bacalhau”. E leu-me que o rábano curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia curar — pretensão de todo medicamento novo. Talvez quisesse fazer nisto alguma alusão ao espiritismo. O que sei é que, antes de restituir-me o corpo, estendeu-me cordialmente a mão, e despedimo-nos como amigos velhos:
— Adeus, rábano!
— Adeus, fígado!
2) 7 de junho de 1889:
Bons dias!
Não gosto que me chamem profeta de fatos consumados; pelo que, apresso-me em publicar o que vai suceder, enquanto o Conselho de Estado se acha reunido no paço da cidade.
Verdade seja, que o meu mérito é escasso e duvidoso; devo o principal dos prognósticos ao espírito de Nostradamus, enviado pelo meu amigo José Basílio Moreira Lapa, cambista, proprietário, pai de um dos melhores filhos deste mundo, vítima do Monte Pio e de um reumatismo periódico.
Lapa está naquele período do espiritismo em que o homem, já inclinado ao obscuro, dispõe de razão ainda clara e penetrante, e pode entreter conversações com os espíritos. Há, entretanto, uma lacuna nessa primeira fase: é que os espíritos acodem menos prontamente, e a prova é que desejando eu consultar Vasconcelos, Vergueiro ou o Padre Feijó, como pessoas de casa, não foi possível ao meu amigo Lapa fazê-las chegar à fala; só consegui Nostradamus. Não é pouco; há mestres que não o alcançariam nunca.
A segunda fase do espiritismo é muito melhor. Depois de quatro ou cinco anos (prazo da primeira), começa a pura demência. Não é vagarosa nem súbita, um meio-termo, com este característico: o espírita, à medida que a demência vai crescendo, atira-se-lhe mais rápido. O último salto nas trevas dura minuto e meio a dois minutos. Há casos excepcionais de cinco e dez minutos, mas só em climas frios e muito frios, ou então nas estações invernosas. Nos climas quentes e durante o verão, o mais que se terá visto, é cair em três minutos.
Não se entenda, porém, que esta queda é apreciável por qualquer pessoa; só o pode ser por alienistas e de grande observação. Com efeito, para o vulgo não há diferença; desde o princípio da alienação mental (isto é, começado o segundo prazo do espiritismo, que é depois de quatro ou cinco anos, como ficou dito), o espírita está perdido a olhos vistos; os atos e palavras indicam o desequilíbrio mental; não há ilusão a tal respeito. Conversa-se com eles; raros compreendem logo em princípio o sol e a lua; mostram-se todos afetuosos leais e atentos. Mas o transtorno cerebral é claro. Toda a gente vê que fala a doentes.
Entretanto, (mistério dos mistérios!) é justamente assim e principalmente depois do último salto nas trevas, que os espíritos vagabundos ou penantes acodem ao menor aceno, não menos que os de pessoas célebres, batizadas ou não.
Tem-se calculado que, dos espíritos evocados durante um ano, 28 por cento o foram por espíritas ainda meio sãos (primeira fase); 72 por cento pertencem aos mentecaptos. Alguns estatísticos chegam a conceder aos últimos 79 por cento; mas parece excessivo.
Não importa ao nosso caso a porcentagem exata; basta saber que, para a melhor evocação e mais fácil troca de idéias, é preferível o maníaco ao são, e o doido varrido ao maníaco. Nem pareça isto maravilha; maravilha será, mas de legítima estirpe. Montaigne, muito apreciado por um dos nossos primeiros senadores e por este seu criado, dizia com aquela agudeza que Deus lhe deu: C'est un grand ouvrier de miracles que l'esprit humain! Os milagres do espiritismo são tais; a rigor, é o espírito humano que faz o seu ofício.
Eu chegaria a propor, se tivesse autoridade científica, um meio de desenvolver esta planta essencialmente espiritual. Estabeleceria por lei os casamentos espíritas, isto é, em que ambos os cônjuges fossem examinados e reconhecidos como inteiramente entrados na segunda fase. Os filhos desses casais trariam do berço o dom especial, em virtude da transmissão. Quando algum, escapando pela malhas dessa lei natural (todos as têm) chegasse a simples mediocridade, paciência; os restantes, confinando na idiotia e no cretinismo (com perdão de quem me ouve), preparariam as bases de um excelente século futuro.
Venhamos ao nosso Lapa. Evocado Nostradamus, vi claramente o que ele referiu ao evocador. Em primeiro lugar, a maioria do Conselho de Estado é contrária à dissolução da Câmara dos Deputados, que alguns dizem incorretamente (explicou ele) "dissolução das Câmaras". Sairá o gabinete de 10 de março. É convidado o Sr. Correia, depois o Sr. Visconde do Cruzeiro, depois novamente o Sr. Correia, e o Sr. Visconde de Vieira da Silva. Este, apesar de enfermo, tentará organizar um gabinete que concilie as duas partes do Partido Conservador; não o conseguirá; será chamado o Sr. Saraiva, que não aceita; sobe o Sr. Visconde de Ouro Preto e estão os liberais de cima.
Boas noites.
3) 29 de agosto de 1889:
Bons dias!
Hão de fazer-me esta justiça, ainda os meus mais ferrenhos inimigos: é que não sou curandeiro, eu não tenho parente curandeiro, não conheço curandeiro, e nunca vi cara, fotografia ou relíquia, sequer, de curandeiro. Quando adoeço não é de espinhela caída, — coisa que podia aconselhar-me a curandeira; é sempre de moléstias latinas ou gregas. Estou na regra; pago impostos, sou jurado, não me podem argüir a menor quebra de dever público.
Sou obrigado a dizer tudo isso, como uma profissão de fé, porque acabo de ler o relatório médico acerca das drogas achadas em casa do curandeiro Tobias. Saiu hoje; é um bom documento. Falo também porque outras muitas coisas me estimulam a falar, como dizia o curandeiro-mor, Mal das Vinhas, chamado, que já lá está no outro mundo. Falo ainda, porque nunca vi tanto curandeiro apanhado, — o que prova que a indústria é lucrativa.
Pelo relatório se vê que Tobias é um tanto Monsieur Jourdain, que falava em prosa sem o saber; Tobias curava em línguas clássicas. Aplicava, por exemplo, solanum argentum, certa erva, que não vem com outro nome; possuía umas cinqüenta gramas de aristolochia appendiculata, que dava aos clientes; é a raiz de mil-homens. Tinha, porém, umas bugigangas curiosas, esporões de galo, pés de galinha secos, medalhas, pólvora e até um chicote feito de rabo de raia, que eu li rabo de saia, coisa que me espantou, porque estava, estou e morrerei na crença de que rabo de saia é simples metáfora. Vi depois o que era rabo de raia. Chicote para quê?
Tudo isto, e ainda mais, foi apanhado ao Tobias, no que fizeram muito bem, e oxalá se apanhem as bugigangas e drogas aos demais curandeiros, e se punam estes, como manda a lei.
A minha questão é outra, e tem duas faces.
A primeira face é toda de veneração; punamos o curandeiro, mas não esqueçamos que a curandeira foi a célula da medicina. Os primeiros doentes que houve no mundo, ou morreram ou ficaram bons. Interveio depois o curandeiro, com algumas observações rudimentárias, aplicou ervas, que é o que havia à mão, e ajudou a sarar ou a morrer o doente. Daí vieram andando, até que apareceu o médico. Darwin explica por modo análogo a presença do homem na terra. Eu tenho um sobrinho, estudante de medicina, a quem digo sempre que o curandeiro é pai de Hipócrates, e, sendo o meu sobrinho filho de Hipócrates, o curandeiro é avô do meu sobrinho; e descubro agora que vem a ser meu tio, — fato que eu neguei a princípio. Também não borro o que lá está. Vamos à segunda face.
A segunda é que o espiritismo não é menos curanderia que a outra, e é mais grave, porque se o curandeiro deixa os seus clientes estropiados e dispépticos, o espírita deixa-os simplesmente doidos. O espiritismo é uma fábrica de idiotas e alienados, que não pode subsistir. Não há muitos dias deram notícia as nossas folhas de um brasileiro que, fora daqui, em Lisboa, foi recolhido em Rilhafoles, levado pela mão do espiritismo.
Mas não é preciso que dêem entrada solene nos hospícios. O simples fato de engolir aqueles rabos de raia, pés de galinha, raiz de mil-homens e outras drogas vira o juízo, embora a pessoa continue a andar na rua, a cumprimentar os conhecidos, a pagar as contas, e até a não pagá-las, que é meio de parecer ajuizado. Substancialmente é homem perdido. Quando eles me vêm contar uns ditos de Samuel e de Jesus Cristo, sublinhados de filosofia de armarinho, para dar na perfeição sucessiva das almas, segundo estas mesmas relatam a quem as quer ouvir, palavra que me dá vontade de chamar a polícia e um carro.
Os espíritas que me lerem hão de rir-se de mim, porque é balda certa de todo maníaco lastimar a ignorância dos outros. Eu, legislador, mandava fechar todas as igrejas dessa religião, pegava dos religionários e fazia-os purgar espiritualmente de todas as suas doutrinas; depois, dava-lhes uma aposentadoria razoável.
Boas noites!
Boa noite
ResponderExcluirbabaca
ResponderExcluirEstá claro que Machado, com toda sua elegância e verve, nada entendeu do que é espiritismo.
ResponderExcluircabe aqui o "velho deitado": quem desdenha quer comprar - dercio.conceicao@uol.com.br
ResponderExcluirO espiritosmo é uma coencia e nao uma religiao por isso esse desentendimento
ResponderExcluir