A GUERRA
É verdade tudo aquilo que se escreve e diz acerca do grande mal que a guerra representa. Dever-se-ia considerar também, entretanto, quanto maior é aquele mal que é impedido com guerras. Claro, se as pessoas fossem retas e de bom grado mantivessem a paz, a guerra seria a maior calamidade sobre a terra. Que achas, entretanto, do fato de o mundo ser ruim, de as pessoas não quererem manter a paz, não quererem deixar de pilhar, roubar, matar, violar mulheres e crianças, tirar os bens e a honra? É esta discórdia geral do mundo inteiro, pela qual não restaria nenhum ser humano, que precisa ser evitada por intermédio da discórdia menor chamada de guerra ou de espada. É por isso que Deus também á à espada esta honra elevada de denomina-la de sua ordem própria, e não quer que se diga ou pense que foram seres humanos que a inventaram ou instituíram. Pois a mão que conduz esta espada e mata também não é mais mão humana, mas a mão de Deus, e não é a pessoa humana, mas Deus que está enforcando, rodando, decapitando, estrangulando e guerreando. Tudo isso é obra sua e juízo seu.
Em suma: o que se deve olhar no ofício militar não é o fato de matar, incendiar, ferir, conquistar, etc. Pois quem faz isto é o estreito olhar de criança ingênua que não enxerga outra coisa senão que o médico está cortando fora a mão ou serrando a perna; enxerga, mas não se dá conta de que a finalidade é salvar o corpo inteiro. Da mesma forma se deve olhar o ofício militar ou da espada com olhos de homem, enxergando a razão por que ele mata e age de forma tão cruel. Assim ficará provado por si mesmo que se trata de ofício em si divino e tão necessário e útil para o mundo como o comer e o beber, mais do que outra obra. O fato, entretanto, de alguns abusarem desse ofício, matando e ferindo sem necessidade, somente para satisfazer seus caprichos, é culpa não do ofício, mas da pessoa. Pois onde está o ofício, a obra ou qualquer coisa que seja, tão boa que não seja que gente descarada e malvada não abusassem deles? São como médicos loucos que quisessem decepar uma mão sadia de uma pessoa, sem necessidade, por puro capricho, sim, fazem parte da discórdia geral, a qual precisa ser combatida com guerra justa e espada, obrigando-a [a tornar-se] paz. Assim também sucede e sempre sucedeu que são derrotados aqueles que entram em guerra sem necessidade. Pois em última análise não conseguem resistir ao juízo de Deus, isto é, à sua espada. Ele os encontra e atinge por fim, como agora também sucedeu na rebelião dos camponeses.
(Lutero, Martinho. Guerra dos Camponeses. Acerca da Questão, Se Também Militares Ocupam uma Função Bem-Aventurada. 1526. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. 1996. vol. 6. págs. 366-367)