Na verdade confesso que a questão é difícil, e até impossível, se queres estabelecer ao mesmo tempo ambas as coisas, a presciência de Deus e a liberdade do ser humano. Pois o que é mais difícil, e até mais impossível, do que sustentares que as coisas contrárias ou contraditórias não se opõem, ou que um número qualquer seja simultaneamente dez e nove? A dificuldade não está em nossa questão, mas é buscada e introduzida do mesmo modo que se busca e se introduz violentamente a ambiguidade e a obscuridade nas Escrituras. Por esta razão ele refreia os ímpios, os quais se ofendiam com essas palavras claríssimas, porque percebiam que a vontade divina se cumpre estando nós sob a necessidade e percebiam que está irrevogavelmente definido que nada lhes resta de liberdade ou de livre-arbítrio, mas que tudo depende apenas da vontade de Deus. Refreia-os, porém, ordenando-lhes que se calem e reverenciem a majestade do poder e da vontade divina em relação à qual não temos nenhum direito, mas que, em relação a nós, tem direito pleno de fazer o que quiser. E a nós não se faz qualquer injustiça, pois Deus não nos deve nada, nada recebeu de nós e nada prometeu além do que quis e lhe agradou.
Por conseguinte, este é o lugar e o tempo de adorar não aquelas grutas de Corício [grutas que ficam perto de onde estava o oráculo de Delfos], mas a verdadeira majestade em suas temíveis maravilhas e incompreensíveis juízos, e de dizer: “Faça-se tua vontade, assim como no céu também na terra” [Mt 6.10]. Nós, porém, em nenhum lugar somos mais irreverentes e temerários do que quando penetramos e acusamos esses mesmos mistérios e juízos ininvestigáveis; entrementes, contudo, simulamos uma incrível reverência ao escrutarmos as Santas Escrituras que Deus nos ordenou escrutar. Aqui não escrutamos; lá, porém, onde proibiu que escrutássemos, não fazemos nada exceto escrutar com contínua temeridade, para não dizer blasfêmia. Porventura não é um escrutar temerário envidar esforços para que a presciência libérrima de Deus concorde com nossa liberdade, dispostos com isso a derrogar a presciência de Deus se não nos conceder a liberdade ou se impuser a necessidade de dizer com os murmuradores e blasfemadores: De que ele se queixa ainda? Quem resiste à sua vontade? Onde está o Deus clementíssimo por natureza? Onde está o que não quer a morte do pecador? Acaso nos criou para deleitar-se com os tormentos dos seres humanos? Estas perguntas e outras semelhantes serão eternamente uivadas nos infernos e entre os condenados.
Mas a própria razão natural é forçada a confessar que o Deus vivo e verdadeiro precisa ser tal que nos imponha a necessidade por meio de sua liberdade, pois certamente seria um Deus ridículo – ou melhor, um ídolo – aquele que previsse de modo incerto o que há de acontecer ou que fosse enganado pelos eventos, já que até os gentios concederam aos seus deuses um “destino inelutável”. Ele seria igualmente ridículo se não pudesse e não fizesse todas as coisas, ou se algo acontecesse sem ele. Porém, admitidas a presciência e a onipotência, segue-se naturalmente, por meio de uma consequência lógica irresistível, que nós não fomos feitos por nós mesmos, e não vivemos nem fazemos coisa alguma que não [ocorra] através de sua onipotência. Mas já que ele pré-soube anteriormente que haveríamos de ser tais como somos, e agora nos faz, move e governa como tais, eu te pergunto: o que se pode imaginar em nós que seja livre, que seja diferente e que aconteça de modo diferente do que ele pré-soube e agora faz? Por isso, a presciência e a onipotência de Deus opõem-se diametralmente ao nosso livre-arbítrio. Pois ou Deus se enganará em sua presciência e errará também ao agir (o que é impossível), ou nós agiremos e seremos conduzidos segundo a sua presciência e ação. Todavia, não chamo de onipotência de Deus aquela onipotência pela qual ele não faz muitas coisas de que é capaz, mas, sim, aquela [onipotência] ativa, pela qual faz poderosamente tudo em tudo, da maneira como a Escritura o chama onipotente. Digo que esta onipotência e presciência de Deus abolem completamente o dogma do livre-arbítrio. E aqui não se pode pretextar a obscuridade da Escritura ou a dificuldade do assunto. As palavras são claríssimas, conhecidas até por meninos. O assunto é evidente e fácil, examinado até mesmo pelo juízo natural do senso comum, de modo que nada importa, por maior que seja a série de séculos, tempos e pessoas que escrevem ou ensinam de outra maneira.
Naturalmente, ofende no mais alto grau aquele senso comum ou razão natural de que Deus, por sua mera vontade, abandone, endureça e condene os seres humanos, como se encontrasse deleite nos pecados e nos tão grandes e eternos tormentos dos míseros, [logo] ele, de quem ser prega que possui tamanha misericórdia e bondade, etc. Ter tal opinião acerca de Deus pareceu iníquo, cruel e intolerável; por isso também se ofenderam tantos e tão grandes homens por tantos séculos. E quem não se ofenderia? Eu mesmo me ofendi mais que uma vez até a profundeza e o abismo do desespero, de sorte que desejei jamais ter sido criado como ser humano antes que soubesse quão salutar aquele desespero seria, e quão próximo da graça. Foi por isso que se suou e trabalhou tanto a fim de escusar a bondade de Deus e acusar a vontade do ser humano; aí foram inventadas as distinções entre vontade ordenada e vontade absoluta de Deus, entre necessidade da consequência e necessidade do consequente, e muitas outras semelhantes. Contudo, com essas coisas nada se obteve exceto lograr os incultos com a inânia [vazio de conteúdo] das palavras e a oposição daquilo que é falsamente chamado de ciência. Entretanto, quer para os incultos quer para os eruditos, permaneceu sempre cravado no fundo do coração – quando porventura se chegava a tratar seriamente do assunto – aquele acúleo [espinho, desgosto] quando percebiam nossa necessidade ao se crer na presciência e na onipotência de Deus.
E a própria razão natural, que se sente chocada por essa necessidade e tanto se esforça por suprimi-la, é forçada a admiti-la, convencida por seu próprio juízo, ainda que não houvesse Escritura alguma. Pois todos os seres humanos encontram este pensamento escrito em seus corações, e o reconhecem e aprovam (mesmo que contra sua vontade) quando ouvem falar dele: primeiro, que Deus é onipotente não só segundo o poder, mas também segundo a ação (como eu já disse); de outra maneira seria um Deus ridículo. Segundo, que ele conhece e tem presciência de todas as coisas, e que não pode errar nem enganar-se. Uma vez admitidos estes dois pontos no coração e no entendimento de todos, são forçados a admitir imediatamente, mediante uma conclusão inevitável, que nós não fomos feitos por nossa vontade, mas por necessidade; e assim, conforme a presciência de Deus e conforme conduz de acordo com [seu] conselho e poder infalível e imutável. Por isso, acha-se simultaneamente escrito nos corações de todos que o livre-arbítrio nada é, ainda que isso seja obscurecido por tantos debates contrários e pela tão grande autoridade de tantos homens que por tantos séculos ensinaram de maneira diferente. O mesmo também ocorre (conforme o testemunho de Paulo) com toda a outra lei em nossos corações: é reconhecida quando tratada de modo correto, e obscurecida quando maltratada por mestres ímpios ou tomada por outras opiniões.
Volto a Paulo. Se ele não explica a questão em Rm 9 e nem define a necessidade a que estamos ligados a partir da presciência e da vontade de Deus, por que lhe seria necessário introduzir a analogia do oleiro, que de um e o mesmo barro faz um vaso para a honra e o outro para a desonra? E não obstante, a obra não diz ao que a faz: por que me fazes assim? Isso porque ele fala sobre os seres humanos, comparando-os ao barro e Deus ao oleiro. A analogia é sem dúvida tímida, e até absurda e aduzida em vão, se ele não compartilha a opinião de que nossa liberdade é nula. E o que é mais: todo o debate de Paulo, com o qual defende a graça, é inútil. Pois toda a epístola tem por alvo mostrar que não somos capazes de nada, nem mesmo quando parecemos obrar bem; é como ela diz, na mesma passagem, a respeito de Israel, que, ao perseguir a justiça, não a alcançou, ao passo que os gentios a alcançaram sem a perseguir. Tratarei disso mais extensamente quando fizer avançar nossas tropas.
Mas a Diatribe [“Diatribe sobre o livre arbítrio”, de Erasmo de Roterdã] finge não ver todo o corpo do debate paulino e a direção para a qual Paulo tende, consolando-se entrementes com palavras tiradas [do contexto] e distorcidas. Tampouco em nada auxilia a Diatribe o fato de que posteriormente, em Rm 11.20, Paulo de novo exorte dizendo: “Estás de pé pela fé, vê que não te ensoberbeças”; e, semelhantemente: “Também aqueles, se tiverem crido, serão enxertados” [11.23], etc. Pois ali ele nada diz acerca das forças dos seres humanos, e, sim, pronuncia palavras imperativas e subjuntivas; e o que é feito por estas foi suficientemente dito acima. E o próprio Paulo se adianta, nesta mesma passagem, aos que gabam o livre-arbítrio: não diz que aqueles podem crer, mas diz que Deus é poderoso para enxertá-los. Resumindo: ao tratar estas passagens de Paulo, a Diatribe procede de forma tão tímida e hesitante que em sua consciência parece divergir de suas próprias palavras. Pois quando ela deveria ter prosseguido acima de tudo e aduzido provas, quase sempre interrompe o discurso dizendo: “Aqueles diriam assim”. E diz muitas outras coisas similares, deixando a questão em dúvida, de modo que não sabes se ela quis dar a impressão de falar em favor do livre-arbítrio ou apenas de eludir Paulo com palavras inanes, seguindo nisso sua lei e costume pelo fato de que para ela inexiste um problema sério neste pleito. A nós, porém, não nos convém ser frios desta maneira, andar sobre ovos ou ser agitados pelos ventos como uma cana, mas, sim, fazer asserções com certeza, constância e ardor, e então demonstrar de maneira sólida, destra e copiosa aquilo que ensinamos.
Mas quão belamente ela conserva agora a liberdade ao mesmo tempo que a necessidade quando diz: “Nem toda necessidade exclui a vontade livre, assim como Deus Pai gera o Filho necessariamente e, não obstante, o gera porque quer e livremente, pois não foi coagido”. Peço-te: porventura debatemos agora acerca da coação e da força? Acaso não testemunhamos em tantos livros que estamos a falar sobre a necessidade da imutabilidade? Sabemos que o Pai gera o Filho porque quer, que Judas entregou a Cristo porque quis; mas dizemos que, se Deus teve presciência, este querer teve de existir no próprio Judas de maneira certa e infalível. Ou, se ainda não se compreende o que digo, queremos referir uma necessidade obrigatória à obra e uma outra necessidade infalível ao tempo. Que aquele que nos ouve compreenda que estamos falando acerca da última, e não da primeira; ou seja: não debatemos se Judas tornou-se traidor contra a própria vontade ou por querer, mas se, após Deus ter predefinido o tempo, foi necessário acontecer infalivelmente que Judas entregasse a Cristo por querer. Vê, porém, o que a Diatribe diz a respeito: “se olhas para a presciência infalível de Deus, Judas havia necessariamente de ser traidor; e, não obstante, Judas podia ter mudado sua vontade”. Compreendes também o que falas, cara Diatribe? Deixando de lado o fato de que a vontade não pode senão querer o mal, como se provou acima: como pôde Judas mudar sua vontade ficando de pé a infalível presciência de Deus? Acaso pôde mudar a presciência de Deus e torná-la falível? Aqui a Diatribe sucumbe; e, depois de ter abandonado os estandartes e deposto as armas, retira-se do campo de batalha remetendo o debate para as sutilezas escolásticas concernentes à necessidade da consequência e do consequente, como quem não quer seguir essas argúcias até o fim. Certamente ages com prudência quando, após teres levado a causa para um debate tumultuado e no momento em que mais é necessário um debatedor, volta as costas e deixas a outros a tarefa de responder e definir.
Esse conselho deveria ter sido seguido desde o início, abstendo-se totalmente de escrever, conforme o dito: “Quem não sabe lutar, abstenha-se dos jogos marciais”. Pois não se esperava que Erasmo fosse provocar essa dificuldade relativa ao modo com que Deus poderia ter presciência com certeza, e, não obstante, nossas ações poderiam produzir-se de maneira contingente. Esta dificuldade estava no mundo muito antes da Diatribe. Contudo, esperava-se que a respondesse e definisse. Mas ele, tendo usado uma transição retórica, arrasta consigo a nós que somos ignorantes na retórica como se aqui não estivesse em jogo coisa alguma sobre a questão, e como se meramente houvesse certas argúcias; retira-se corajosamente do meio do tumulto da luta, coroado de hera e louro.
Assim não dá, irmão! Nenhuma retórica basta para enganar uma consciência verdadeira; o acúleo da consciência é mais forte que todas as forças e figuras da eloquência. Não toleraremos aqui que o retórico passe de largo [por essa questão] e dissimule; neste momento não há lugar para tal atitude. Aqui se ataca o ponto principal dos assuntos e o essencial da questão. E aqui ou se extingue o livre-arbítrio ou ele triunfará de todo. Tu, porém, percebendo o perigo e até a vitória certa contra o livre-arbítrio, simulas não perceber nada exceto argúcias. Acaso isso significa agir como teólogo confiável? A questão não te afeta seriamente? A ti, que desta maneira deixas os ouvintes em suspenso e o debate confuso e inflamado, querendo, entretanto, causar a impressão de que deste satisfação honestamente e levaste a palma? Em questões profanas, esta manha e astúcia pode ser tolerada; em um assunto teológico, porém, onde se busca a simples e aberta verdade em favor da salvação das almas, ela é extremamente odiosa e intolerável.
Também os sofistas perceberam a força invencível e irresistível deste argumento; por isso inventaram a necessidade da consequência e do consequente. Contudo, ensinamos acima como esta invenção nada efetua. Pois tampouco eles observam o que dizem e o quanto admitem contra si próprios. Pois se admitires a necessidade da consequência, está vencido e prostrado o livre-arbítrio, e de nada ajuda a necessidade nem a contingência do consequente. Que me importa se o livre-arbítrio não é coagido, mas faz o que faz de acordo com a vontade? Para mim é suficiente que admitas isto: há de acontecer necessariamente que ele faça o que faz de acordo com a vontade, e não pode ser diferente se Deus teve presciência disso. Se Deus tem presciência de que Judas cometerá traição ou que mudará sua vontade de trair, acontecerá necessariamente aquilo de que ele teve presciência; ou Deus se enganará em sua presciência e predizer, o que é impossível. Pois é isso que realiza a necessidade da consequência; arbítrio nada é. Esta necessidade da consequência não é obscura nem ambígua, de modo que, ainda que os doutores de todos os séculos sejam cegos, são todavia forçados a admiti-la, pois ela é de tal modo evidente e certa que se pode apalpá-la. Mas a necessidade do consequente, com a qual se consolam, é um mero fantasma, e opõe-se diametralmente à necessidade da consequência. Haverá por exemplo uma necessidade da consequência se eu tiver dito: Deus teve presciência de que Judas cometeria traição, portanto acontecerá segura e infalivelmente que Judas será traidor. Diante desta necessidade e consequência, tu te consolas assim: visto que Judas pode mudar sua vontade de trair, não há necessidade do consequente. Como, eu te pergunto, se coadunam essas duas afirmações: Judas pode não querer trair e: é necessário que Judas queira trair? Dizes que ele não será coagido a trair contra sua vontade. Que tem a ver isso com o problema? Tu falaste acerca da necessidade do consequente, a saber, que aquela não é introduzida pela necessidade da consequência; não disseste nada sobre a coação do consequente. A resposta relacionava-se com a necessidade do consequente e tu apresentas um exemplo sobre a coação do consequente. Pergunto uma coisa e tu respondes outra. O motivo disso é aquela oscilação por causa da qual deixa-se de observar como essa ficção da necessidade do consequente nada efetua.
(LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525. Tradução de Luís Marcos Sander, Luís Henrique Dreher e Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 1993. Vol. 4, págs. 136-142)