SOBRE OS PREGADORES ITINERANTES E CLANDESTINOS - PARTE 4
(este texto é continuação do anterior, que pode ser lido clicando aqui)
Resumindo: São Paulo não tolera a petulância e insolência de alguém intrometer-se em algum ministério alheio; cada qual observe a ordem e o ofício recebido e se dedique a ele, deixando intacto e em paz o ofício do outro. No mais, pode instruir-se, ensinar, cantar, ler, explicar a não querer mais, desde que tenha o direito e autorização para isso. Se Deus quiser fazer algo especial, fora e acima dessa ordem dos ministérios e da vocação, e suscitar alguém que esteja acima dos profetas, ele o demonstrará com sinais e feitos, como falou através da jumenta e repreendeu os profetas de Baal, seu senhor. Quando não fizer isso, queremos ater-nos aos ministérios e mandatos instituídos. Se [seus titulares] não ensinarem corretamente, que tens tu a ver com isso? Tu não precisas prestar contas disso.
Por essa razão, São Paulo usa mais vezes o termo “comunidade” neste capítulo, fazendo certa distinção entre os profetas e o povo. Os profetas falam, a comunidade ouve. Pois diz: “Quem profetiza edifica a comunidade” [1 Co 14.4], e mais abaixo: “Procurai edificar a comunidade, para que tenhais plena suficiência” [v. 12]. Quem são esses que devem edificar a comunidade? Acaso não são os profetas e (na expressão dele) os que falam em línguas, isto é, os que leem e cantam o texto, enquanto a comunidade ouve? São os profetas que devem explicar o texto para a edificação a comunidade? Ora, está suficientemente claro que aqui ele ordena à comunidade que ouça e se edifique, e não à doutrina nem ao ministério da pregação. E faz mais outra distinção clara, chamando a comunidade de “leigos”, dizendo: “Se bendisseres no espírito, como poderá aquele que ocupa o lugar do leigo dizer “amém”, visto que não entende o que dizes? Com efeito, dás graças de maneira maravilhosa, mas o outro não é edificado” [1 Co 14.16s]. Aí se estabelece uma vez mais uma diferença entre pregador e leigo. Mas que necessidade temos de muitas palavras? O teto está aí e, também, a razão ensina que não se deve interferir em um ministério alheio.
Pois São Paulo diz: “Que falem dois ou três profetas e os outros julguem”, etc. [1 Co 14.29]. Aqui não se fala de outra coisa senão dos profetas, dos quais um ou dois devem falar, enquanto os outros julgam. Quem são esses “outros”? O povo? De forma alguma! Trata-se dos outros profetas que devem auxiliar na pregação na Igreja e edificar a comunidade. Esses devem julgar e ajudar a cuidar, para que se pregue corretamente. E se um dos profetas ou pregadores conseguir expressar-se com acerto, o primeiro deve consentir e dizer: É verdade, tens razão: eu não havia entendido corretamente o assunto – como acontece em torno de uma mesa ou em outro assunto qualquer, onde um dá razão ao outro (também em questões seculares). Da mesma forma, um deve ceder tanto mais ao outro no presente caso.
Aí se vê de que modo maravilhoso e diligente os intrusos leram as palavras de São Paulo, das quais deduzem para si o direito de se manifestarem em todas as igrejas, ou seja, de agredir a todos os pregadores da cristandade inteira, julgar e ofendê-los, arvorando-se eles mesmos em pessoas ordenadas e juízes de púlpitos alheios. São verdadeiros assaltantes e assassinos os que interferem criminosa e violentamente no ministério alheio. Contra isso, São Pedro ensina em 1 Pe 4[.15]: “Nenhum de vós sofra como malfeitor ou como quem se intromete em negócio alheio”.
Embora haja caído no esquecimento o costume de os profetas ou pregadores estarem sentados na igreja e falarem alternadamente (como São Paulo diz aqui), ainda restou um pequeno indício e vestígio disso no canto alternado do coro e das leituras alternadas, cantando-se depois uma antífona, um hino ou responsório em conjunto; ou quando um pregador interpreta a leitura do outro e um terceiro, a explica ou prega sobre ela. Portanto, a maneira correta de se ensinar na Igreja seria essa referida por São Paulo. Aí um cantaria ou leria em línguas, outro profetizaria ou interpretaria, o terceiro o explicaria, mais outro, por sua vez, o confirmaria ou explicitaria melhor com citações e exemplos, como o fez São Tiago em Atos 15[.13ss], e São Paulo em Atos 13[.14s.]. Isso seria melhor que a mera leitura da perícope [passagem bíblica para pregação], ou do que cantá-la em latim, numa língua desconhecida, como as freiras rezam o Saltério. Embora São Paulo não condenasse a glossolalia para si mesmo, não a recomenda nem ordena na igreja sem interpretação.
Não quero, porém, aconselhar a reintrodução desse procedimento e a eliminação do púlpito; antes quero defendê-lo, pois hoje as pessoas são demasiadamente intempestivas e intrometidas, e poderia insinuar-se um diabo entre pastor, pregador e capelão, de modo que um quisesse estar acima do outro, passando eles a brigar e ofender-se diante do povo, querendo cada qual ser o melhor. Por isso é melhor conservar o púlpito, pois aí as coisas acontecem, como ensina São Paulo, de modo decente. Basta que numa paróquia os pregadores preguem um depois do outro e, se quiserem, alternadamente nos diferentes lugares, que um deles explica à tarde ou pela manhã o que o outro recitou ou leu na matutina ou na missa, como se faz, de vez em quando, com o Evangelho e a Epístola. Pois São Paulo não insiste tanto em que se devesse adotar a mesma prática, mas em que tudo seja feito em ordem e decência, dando um exemplo. Visto que nossa prática de pregação é mais ordeira entre nosso povo louco do que aquela, queremos mantê-la.
Nos tempos dos apóstolos foi fácil manter a prática de os profetas estarem sentados [no meio do povo], pois era um antigo costume de prática diária entre o disciplinado povo do sacerdócio levítico, observado desde Moisés. Mas não seria aconselhável reintroduzi-la hoje entre este povo rude, indisciplinado e insolente.
Isso a respeito do dito de São Paulo. Resumindo: os intrusos e pregadores clandestinos são apóstolos do diabo, dos quais São Paulo sempre se queixa [cfe. Tt 1.10], que entram nas casas e as perturbam, ensinando sempre sem saberem o que estão dizendo ou afirmando. Por isso advirto e admoesto o poder espiritual, advirto e admoesto o poder secular, advirto a todos os cristãos e a todos os súditos: acautelai-vos deles e não lhes deis ouvidos. Quem os tolera e lhes dá ouvidos, saiba que está ouvindo o maldito diabo em pessoa, do mesmo modo como fala através de uma pessoa possessa. Fiz minha parte e também falei sobre esse assunto na explicação do Salmo 82. Estou desculpado. O sangue de cada um que não aceita um conselho bom e sincero recaia sobre sua cabeça. Com isso encomendo, caro senhor e amigo, a vós e os seus à graça e misericórdia de Deus. A ele glória e gratidão, honra e louvor em eternidade, em Jesus Cristo, nosso amado Senhor e Salvador. AMÉM.
(LUTERO, Martinho. Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos. 1532. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2009, vol. 7, págs. 122-124)