A ORAÇÃO - PARTE II
(para acessar a PARTE I clique aqui)
Faze isso também quando o diabo te tenta e te retém devido à tua indignidade, quando ele pede que espere até seres mais piedoso e puro. Pois, se não queres começar antes que te tornes digno, jamais vais orar. Portanto, começa imediatamente, embora te sintas indigno. Sê corajoso e salta por cima de tua dignidade e indignidade, mesmo que estejas atolado em pecados. Sim, mesmo que tivesses caído em pecado nessa hora e estivesses vindo diretamente dele, que deverias fazer? Gostarias de ficar sem orar por causa disso até receberes absolvição? De forma alguma! É muito melhor que te ajoelhes enquanto estás no pecado e ores de todo o coração: “Ah, querido Pai, perdoa-me e ajuda-me a sair deste pecado!” Deves fazer isso para que o diabo não te lance mais profundamente no pecado e te retenha eternamente ali. Afinal, espera-se que ores quando estás cercado pela morte e qualquer adversidade; quanto maior tua miséria, tanto mais intensamente deves orar. Que sentido haveria em não começar a orar até sentires a redenção e a ajuda? Assim, o profeta Jonas [2.1-9], como ele próprio confessa, teve de orar e clamar quando se encontrava sob o pesado e insuportável conhecimento de seu pecado e sentia a morte e o inferno, enquanto estava no ventre da baleia. De forma semelhante, Davi orou seus salmos – por exemplo, o 6, o 51 e o 130 – enquanto estava bem consciente de seu pecado e de sua indignidade e apavorado com eles.
De forma semelhante, também deves resistir à terceira tentação, quando o diabo quer que duvides de que tua oração será ouvida e quer que creias estares pressupondo demais ao te jactar, tendo em vista a sublime majestade de Deus, que ele é teu Pai, que és o filho amado dele e que tua oração lhe agrada sinceramente, etc. Então, deves defender-te confiantemente e basear tua oração na Palavra e promessa de Deus, sim, em seu próprio mandamento e ordem, e dizer: “Amado Senhor, sabes que não me apresento diante de ri por iniciativa própria e por presunção minha e que não sou levado a isso por estar convencido de minha dignidade. Pois se seu fosse levar em consideração minha dignidade, eu não ousaria levantar os olhos diante de ti e não saberia como começar a orar. Não, venho a ti em obediência a teu próprio mandamento, a teu sério pedido para que te invoquemos e, também, [em confiança] na promessa que fizeste. Ademais, enviaste teu próprio Filho, que nos ensinou as palavras com que devemos orar. Por isso, eu sei que esta oração te agrada. E por grande que pareça minha presunção em jactar-me como sendo filho de Deus, preciso ser obediente a ti. Tu o queres assim, para que não te chame de mentiroso, acrescentando, com isso, um pecado mais grave a meus outros ao desprezar teu mandamento e descrer de tua promessa”.
Observa que poderias repelir o diabo e todas suas falsas sugestões, baseando tua oração em três elementos: o mandamento de Deus, sua promessa, o modo [de orar] e as palavras que o próprio Cristo nos ensinou. O diabo não pode negar e anular isso. Então, começa a orar com confiança e tem certeza de que tua oração é apropriada e não falha. Podes apostar que, se tentares fazê-lo e começares a orar, sentirás seu poder e seu fruto, gostarás disso, e teu coração se aquecerá e se fortalecerá. Mas isso é o mais difícil e (como se costuma dizer) é a montanha mais alta, antes de passar pela soleira e conseguir dizer as primeiras palavras, “Pai nosso” (com verdadeira seriedade e fé). Por isso, o melhor é convencer-se e dizer: “Afinal, é necessário orar; quanto antes tanto melhor; não importa em que condições eu esteja, preparado ou indigno, aflito, triste ou impaciente, irado, tomado de maus desejos ou carregado de outros pensamentos”.
Isso seja dito à guisa de exortação à oração, para que nos acostumemos a orar com toda diligência e seriedade. Pois, logo após a pregação do Evangelho, em que Deus fala conosco e nos oferece toda sua graça e todos seus bens, a obra maior e mais proeminente que podemos realizar é, por nosso turno, falar com ele através da oração e receber dele [o que ele nos dá]. Assim, temos, verdadeiramente, grande necessidade da oração, pois, afinal, é por meio dela que devemos agir para manter o que temos e defender-nos contra nossos inimigos, o diabo e o mundo. Aqui, devemos procurar e encontrar o que havemos de obter, para que a oração possa ser consolo, força e bem-estar para nós mesmos, assim como nossa defesa contra todos os inimigos e vitória sobre os mesmos.
Agora, voltamos ao texto, em que Cristo nos mostra como nos defender e resistir contra os obstáculos e as tentações com que o diabo e nossa carne tentam separar-nos, à força, da oração. Ele diz: “Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes alguma coisa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome”. Aí, ouves, em primeiro lugar, que Cristo ordena aos discípulos que orem e os censura por não terem pedido coisa alguma até agora. Repetindo e incutindo [esses pensamentos] com muitas palavras, ele mostra que leva a questão a sério e que exige a oração como o verdadeiro culto a Deus e como a obra propriamente dita dos cristãos.
Considera e grava bem esse mandamento, de modo que não penses que orar ou não orar seja algo que fica a teu critério, como se não orar não fosse pecado, sendo suficiente que outros o façam. Não. Deves saber que Deus ordenou seriamente a oração sob pena de se incorrer em seu maior desfavor e punição, exatamente como ordenou que não tenhas outros deuses, que não blasfemes ou uses em vão o seu nome, mas o confesses e o proclames, louves e enalteças. Aquele que transgride este mandamento deve saber que não é cristão e não tem lugar no Reino de Deus. Agora, se crês que Deus tem bons motivos para estar irado com idólatras, blasfemadores e desprezadores da Palavra, com assassinos e ladrões e que ele inflige terríveis punições ao mundo por causa desses pecados, por que, então, não temes também, neste caso, a ira de Deus quando ignoras esse mandamento e segues complacentemente teu caminho, como se não tivesses obrigação de orar?
Em primeiro lugar, portanto, podes usar este texto para refutar e derrotar a tentação do diabo quando ele sugere que não estás preparado ou que não és digno Aqui, não vale pretextar e dizer que não estás pronto para crer, para ouvir a Palavra de Deus, para amar teu próximo, etc., e que, por esse motivo, o mandamento de Deus nada significa. Pois aqui não deves perguntar se és digno ou indigno. Não. Aqui deves obediência a Deus. Eu tampouco sou digno de ser batizado e de ser chamado de cristão; sim, não mereço o pão que como cada dia. Mas eu deveria, por causa disso, negar meu Cristo ou não ser batizado jamais ou deixar de comer e beber? Por isso, dize também aqui: “Mesmo que eu não seja digno ou não esteja preparado para orar, isso deveria me induzir a desobedecer a Deus?” Não. É importante, sobretudo, observar o mandamento de Deus e não tolerar qualquer obstáculo. Deves estar pronto para obedecer a qualquer momento ou hora.
Em segundo lugar, também deves considerar a promessa contida nas palavras de Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes alguma coisa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome”. Toma essas palavras e grava-as em teu coração. Pois aqui se diz que Cristo não só concede a promessa, mas também a fortalece e confirma com um dúplice juramento. Ele afirma muito solenemente: “Tão-somente creiam em mim. Tão certo quanto Deus existe, não lhes mentirei”. Com certeza, aquele que se diz cristão deveria enrubescer um pouco aqui e se envergonhar, caso escute essas palavras e, no entanto, jamais tenha orado de coração. Não é uma vergonha eterna diante de Deus e do mundo que, embora Cristo o jure, tão encarecida e solenemente, não o acreditemos nem sejamos, por fim, levados a orar de coração? Afinal, que vamos dizer no tribunal de Deus e em resposta à nossa própria consciência quando nos perguntarem: “Alguma vez oraste seriamente e com o coração livre de dúvidas ao Pai celeste que seu nome fosse santificado? Não sabes quão seriamente ordenei isso e quão solenemente jurei que tua oração, certamente, será ouvida contanto que ores de coração?” Digo que deveríamos, com razão, ficar vermelhos de vergonha e, realmente, temer o terrível juízo de Deus se damos tão pouca importância ao seu mandamento e à sua encarecida promessa, permitindo que caiam em ouvidos moucos. De nada adiantará desculpar-te e dizer: “Eu não sabia se eu era digno” ou “eu não estava disposto, e não me convinha” ou “eu tinha de cuidar de outros negócios”.
Aqui tu perguntas: “Como essa promessa pode ser sempre verdadeira se Deus, muitas vezes, não nos concede o que pedimos? Ele não deixou Davi suplicar em vão pela vida de seu filho?”, 2 Rs [2 Sm 12.16-25]. Resposta: eu disse frequentemente como se deve ordenar e dispor a oração. Não devemos estipular para Deus a medida, o termo, a maneira, o lugar ou a pessoa. Não, ele certamente sabe o que nos deve conceder e o que nos é útil. Por isso, Deus mesmo estabeleceu a sequência no Pai nosso e determinou três objetivos que sempre devem ter precedência: a santificação de seu nome, seu Reino e sua vontade. Então vem o pão nosso de cada dia e a libertação da tentação e de todas as dificuldades, etc. A preferência deve ser dada ao nome de Deus e a seu Reino; se isso vem em primeiro lugar, então, certamente, seguir-se-ão os nossos interesses. Por isso, S. João diz, 1 Jo 5[.13]: “E esta é a confiança que temos para com ele, que, se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, ele nos ouve”. E S. Paulo diz, Rm 8[.26s.]: “Não sabemos orar como convém, mas o Espírito intercede por nós de acordo com o que agrada a Deus”.
Agora, certamente é a vontade de Deus, como o afirma em sua Palavra (por exemplo, nos Dez Mandamentos e no Pai nosso), livrar-te de todo mal e não te abandonar nas tentações, dar-te teu pão de cada dia, etc. Caso contrário, ele não teria ordenado que orasses. Por isso, as quatro últimas partes do Pai nosso, que dizem respeito às necessidades temporais de nossa vida, certamente também estão incluídas em sua vontade. Mas os três itens que se referem propriamente a ele têm prioridade. Dessa maneira, tens, aqui, toda a vontade de Deus. Ele, com certeza, não tem, em seu coração, outros pensamentos para contido do que esses que te são mostrados no Pai nosso. E, se orares dessa maneira, pedindo que sua vontade seja feita, tua oração, indubitavelmente, será ouvida. Mas deves orar de tal forma que não quebres ou alteres a sequência de Deus ou que ignores as questões mais importantes.
Portanto, se perceberes que tua petição não é ouvida e nem atendida, isso, com certeza, deve-se ao fato de que tu, como diz S. Paulo, não sabes o que estás pedindo e não sabes orar como convém. Ele afirma que esse conhecimento é sublime demais para nós. Não podemos descobrir, nem determinar o que serve para a santificação de seu nome, para a promoção de seu Reino e para a realização de sua vontade. Tampouco sabemos como ele te deve conceder o pão de cada dia e satisfazer as tuas outras necessidades, livrar-te do pecado e da tentação, salvar-te das dificuldades. Com certeza, está escrito o que devemos pedir e como devemos fazê-lo, mas não temos condições de especificar ou indicar o tempo, a pessoa, a maneira e a medida com que ele deve concedê-lo. Por isso, se tu mesmo ou outros estiverem em dificuldades e em perigo, deves orar por libertação e ajuda, mas deves fazê-lo como o Pai nosso te ensina, de modo que sirva para a santificação de seu nome e para a realização de sua vontade. Caso contrário, Deus deveria agir da forma como sabe e considera melhor. Esta é a maneira correta de orar: “Amado Pai, dá-nos o pão nosso de cada dia, tempo bom e saúde; guarda-nos de peste, guerra e carestia, etc. Mas, se queres colocar-me à prova por um tempo e não conceder logo [o que peço], seja feita a tua vontade. SE for o tempo e a hora, livra-me do mal; caso contrário, dá-me força e paciência”.
Agora, considerando que está além e fora de nossa laçada saber quando ou como Deus nos deve ajudar e atender nosso pedido, é necessário deixar isso com ele e, no entanto, orar. Não deveríamos deixar de orar por causa disso ou duvidar de que somos ouvidos, pois, afinal, tudo acontece para o nosso benefício. Mesmo que Deus o adie ou não nos dê exatamente aquilo que mencionamos a ele, nossa oração, [mesmo assim], lhe agrada; em lugar daquilo que pedimos ele quer dar algo muito melhor do que somos capazes de entender. Ele faz isso para que aprendamos a conhecer sua vontade e lhe sejamos obedientes, cresçamos na fé, sejamos fortalecidos e vitoriosos na paciência. A atitude de Deus para conosco é como a de um pai correto para com seu filho. É possível que ele não dê à criança tudo que ela lhe pedir, mas faz tudo para o melhor dela, para que ela aprenda a conhecer o coração e a vontade do pai e lhe seja obediente. Dessa maneira, Deus nos pune com sua vara irada (mesmo que isso nos faça gritar e suplicar, ele não para imediatamente). Isso serve para que nos tornemos mais decentes; depois disso, Deus nos mostra tanto mais misericórdia e nos concede tanto mais favores. Ele gosta de ouvir esses gritos e soluços como sinal de crianças corretas que se emendam e não fogem dele, mas querem continuar sendo bons filhos.
Isso se disse a respeito de ocasiões em que nossas preces não são atendidas ou, pelo menos, não são atendidas imediatamente. Mas, também há ocasiões em que Deus não demora a ouvir e ajudar, ocasiões em que a necessidade é tão grande e intensa que não admite protelação, conforme Sl 9[.10] que chama Deus de Adiutor in oportunitatibus [“o que ajuda nas necessidades”], etc. Portanto, é muito importante que oremos e o invoquemos com disposição e firme confiança, que deixemos que ele decida em sua sabedoria divina quando, como, onde e mediante quem deve ajudar, e que não duvidemos disso, embora não entendamos como podemos ser ajudados.
A terceira parte deste texto são as palavras “em meu nome”. Elas são o principal fundamento sobre o qual a oração se deve basear e se estabelecer. Elas lhe dão a boa qualidade e a dignidade que a tornam aceitável perante Deus e lhe conferem o poder que faz com que tenha de ser ouvida. Elas também nos libertam de todas as grandes tentações e preocupações inúteis que impedem nossa oração e nos assustam mais do que qualquer outra coisa. Dessas palavras depreendemos que não devemos perguntar pela nossa dignidade ou nos preocupar com ela, mas que devemos esquecer tanto a dignidade ou nos preocupar com ela, mas que devemos esquecer tanto a dignidade quanto a indignidade e fundamentar nossa oração em Cristo e orar em seu nome.
Por que te martirizas longamente com teus próprios pensamentos e te pões a debater com o diabo ou por que procuras desculpas e tens medo de orar por te sentires frio e despreparado? Com certeza, estás ouvindo que não deves orar confiando em ti mesmo ou em teu próprio nome ou, talvez, no nome de outra pessoa (não importa quão santa, digna e espiritual ela seja), mas ele quer que se ore em seu nome. Ele quer exortar-te e atrair-te (através do mandamento e da promessa) a que ores, como se quisesse dizer: “Meu caro, não importa em que condições te encontres. Se não podes orar por ti mesmo e em teu nome (o que, de fato, não deves), então ora em meu nome. Se não és suficientemente digno e santo, deixa que eu o seja. Vem a mim e dize em meu nome: “Amado Senhor, devo e vou orar motivado pelo teu mandamento e tua promessa. Se não consigo orar bem, e minha oração não ajuda ou não tem validade quando dita em meu nome, então permite que ela tenha validade e seja boa quando feita em nome de meu Senhor Cristo’”. Só não duvides que tal oração agrade a Deus e que seja ouvida tão certamente quanto o nome de Cristo, seu amado Filho unigênito, agrada a Deus, e que Deus, com absoluta certeza, dirá sim e amém a tudo que Cristo lhe pede.
Portanto, estas palavras “em meu nome” requerem fé quando se ora e indicam que nossa própria dignidade não deveria exigir que oremos ou que nossa oração seja ouvida, e que nossa indignidade não deveria impedir que oremos. Elas mostram que, com certeza, somos ouvidos tão-somente por causa de Cristo, nosso único mediador e sumo sacerdote perante Deus. Portanto, nossa oração deve basear-se completamente nele. Assim ora toda a cristandade; ela conclui e sela todas as suas orações e invocações com as palavras “por Jesus Cristo, nosso Senhor”. Dessa maneira, ela traz suas ofertas a Deus em fé. Por conseguinte, procede do mesmo modo para defender-te contra os abomináveis pensamentos que te assustam e te impedem de orar. Não permitas que o diabo te iluda, quando sugere que não és digno; exatamente por esse motivo, ajoelha-te, quando sentes que não és digno e tampouco podes tornar-te digno. Apega-te a Cristo, faze com que tua oração dependa dele e leva-a a Deus, pedindo-lhe que a aceite e a ouça por causa de Cristo. De forma alguma duvides ou estejas incerto quando oras. Crê, confiantemente, que tua oração chegou a Deus, alcançou seu objetivo e já foi ouvida. Pois ela foi oferecida em nome de Cristo e foi concluída com o “amém” com que o próprio Cristo confirma, aqui, sua Palavra.
Pois seria uma das maiores blasfêmias (que chama Deus de mentiroso), se orasses por causa do mandamento e da promessa de Deus e, além disso, em nome de Cristo, vacilando, no entanto, ao dizer: “Quem sabe se estou orando adequadamente, quem sabe se minha oração é ouvida?” Nenhum cristão, em nenhum momento, deve admitir tais dúvidas em seu coração. “Se queres servir a Deus ou orar” (diz Jesus Siraque, 17[.23]), toma cuidado para que não tentes a Deus”. Deves orar de tal modo que estejas certo de que Deus ouve; caso contrário, não se pode chama-lo de oração, mas de escárnio de Deus e blasfêmia, como têm feito e continuam fazendo até agora toda a corja do papa, sacerdotes e monges. Tagarelam, cantam e berram incessantemente, dia e noite. Dizem que tudo isso é oração, mas nenhum deles tem qualquer pensamento de fé. ‘Eu orei” (dizem eles), “mas, se Deus quer me ouvir ou não, isso eu entrego em suas mãos”. Com isso, eles próprios confessam que não creem em coisa alguma, e sua oração não é ouvida. Sim, isso nada mais é do que pecado e blasfêmia (conforme Sl 108[sc. 109.7]). Por que Deus se interessaria por uma oração que tu mesmo ofereces com dúvida e descrença, afirmando, assim, com tuas próprias palavras, que tanto tu quanto Deus são mentirosos?
Um cristão deve estar tão certo de que sua oração será ouvida quanto ele está certo da veracidade de Deus e da fé. Pois, mesmo sendo indigno, ele não orou em seu próprio nome, tampouco quer ser ouvido por causa de si mesmo, mas orou em nome de Cristo e espera ser ouvido por causa da dignidade deste. Ele deve duvidar disso tão pouco quanto ele duvida da Palavra de Deus, que ele prega ou ouve, ou do Batismo, do Sacramento e da absolvição, dos Dez Mandamentos ou de sua própria vocação. Se fosse julgar baseado em sua própria indignidade, ele teria de duvidar, em última análise, de que é criatura de Deus. Essa dúvida seria uma negação do próprio Deus, e seria melhor para ele se não soubesse coisa alguma a respeito disso.
Assim como ele deve manter sua fé e não duvidar de que tenha sido batizado, e de que tenha ouvido ou recebido o Evangelho e deva continuar recebendo o Sacramento, muito menos ele deve duvidar de que precisa observar o mandamento de Deus e que sua obediência em sua vocação é apropriada segundo os Dez Mandamentos. Ele deve crer e dizer: “Sei que tenho a Palavra de Deus e vivo em uma vocação em que devo obediência a Deus. Mas, se minha fé não é suficientemente forte e eu não ajo e não vivo como deveria, isso não vem em prejuízo da Palavra”. Portanto, também aqui falamos: “Embora eu não mereça que minha oração seja ouvida, Cristo, em cujo nome ofereço esta oração, é, certamente, muito digno; por causa dele, minha indigna e insuficiente oração também deve ser aceitável e digna diante de Deus. S. Bernardo foi um excelente homem e teve pensamentos cristãos, porque admoestou seus irmãos tão fielmente de que, quando quisessem orar, não se deixassem impedir pela dúvida. “Pois tão logo que começamos a orar” (disse ele), “as palavras já estão contadas e registradas no céu”.
(Martinho Lutero, “Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e Capítulo 16 de S. João, pregado e explicado”, tradução de Hugo S. Westphal e Geraldo Korndörfer, in MARTINHO LUTERO, Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre, Canoas: Ulbra, 2010, vol. 11, págs. 406-413)