E eu rogarei ao Pai. [João 14.16a]
“Portanto, se guardarem meus mandamentos, viverem juntos em harmonia e fraternidade, mostrando assim que me amam, então, devem resignar-se com o fato de o diabo os importunar. O mundo mostrará sua hostilidade e os afligirá e atormentará sem fim. Ademais, os falsos cristãos e as facções retribuirão o amor de vocês com todo tipo de maldade. Não permitam que isso os intimide, mas perseverem e permaneçam em meu amor. Vocês não passarão necessidade e não serão abandonados, pois não ficarei sentado, ocioso, lá em cima, no céu, e esquecerei vocês. Nada farei além de ser seu amado sacerdote e mediador; orarei e suplicarei por vocês ao Pai para que ele lhes dê o Espírito Santo, que os consolará, fortalecerá e preservará em todas as necessidades, para que vocês permaneçam em meu amor e possam suportar alegremente tudo que lhes acontecer por minha causa”.
Mas, como é possível reconciliar as palavras “Eu rogarei ao Pai” com aquelas ditas acima, de que “o que pedirdes em meu nome isso Eu farei”? Ali, Cristo mostra que é verdadeiro Deus e que ele mesmo quer conceder o que lhe pedirem. Aqui, porém, ele diz que rogará ao Pai para que este lhes mande um Consolador. Como se pode afirmar do verdadeiro Deus que ele pedirá algo de alguém outro? Pois, certamente, não é próprio de Deus estar sujeito a alguém outro e ser obrigado a receber algo dele. Não, Deus, mesmo é capaz de dar e fazer todas as coisas.
Por isso, quando a esperta razão e as mentes sagazes escutam tais palavras de Cristo, imediatamente exclamam: “Oh, essas não são palavras de Deus, mas de um simples ser humano. Pois se ele fosse Deus, teria de dizer: ‘Eu lhes mandarei o Consolador’”. Dessa maneira, querem mandar o Espírito Santo para a escola; bancam os espertos com sua gramática e sua lógica e nos ensinam que a palavra “rogar” não é própria de Deus e que, por conseguinte, Cristo não pode ser Deus. Então, ampliam e enfatizam isso com sua retórica, fazendo com que o Espírito Santo pareça uma criança, sim, um imbecil, que não sabe como falar. Independentemente do que o Espírito Santo faz e diz, deve estar errado. Portanto, criticam e sabem tudo melhor. Mas não são suficientemente piedosos para juntar os dois versículos, arrancando uma parte do contexto aqui e outra ali, e onde encontram uma palavra ou duas, lançam-se sobre elas e enganam as pessoas para que não vejam o que mais a Escritura tem a dizer sobre isso. Sim, se é válido tomar uma palavra ou duas de um contexto todo e ignorar o que vem antes e depois ou o que a Escritura afirma alhures, então, eu também poderia interpretar e torcer toda a Escritura e qualquer discurso da maneira como me aprouvesse.
Mas a regra é esta: olha o texto todo, inclusive as palavras que o precedem e as que o seguem. Então constatarás que Cristo fala tanto como Deus quanto como ser humano; com isso, evidenciar-se-á, poderosamente, como ensinamos e cremos, que Cristo é verdadeiro homem e, também, verdadeiro Deus. Pois, como se pode expressar em quaisquer palavras que ele fala como Deus e como homem ao mesmo tempo, visto que tem duas naturezas distintas? Se ele sempre falasse como Deus, não se poderia provar que ele [também] é verdadeiro homem. E se ele falasse sempre como homem, não se perceberia que ele também é verdadeiro Deus.
Por isso, Cristo precisa alternar, usando, às vezes, palavras que refletem sua natureza divina e, outras vezes, empregando aquelas que são próprias à sua natureza humana. Contudo, é a mesma pessoa que fala, às vezes, como se fosse tão-somente Deus e, outras vezes, como se fosse apenas ser humano. Pois, se Cristo é tanto Deus quanto ser humano em uma só pessoa, por que não deveria dizer também isso e aquilo de si mesmo sem fazer uma distinção? Mas, aqui, ele emprega ambas as maneiras de falar em rápida sucessão em um único sermão. Porque a mesma pessoa que disse há pouco “o que pedirdes em meu nome isso eu farei”, também declara aqui: “E eu rogarei ao Pai”. Isso acontece visando a tornar certo e claro este artigo: que, nessa pessoa, Cristo, não há somente divindade nem somente humanidade, mas que ambas, tanto a natureza divina quanto a humana, encontram-se indivisas em uma só pessoa.
Pois dissemos suficientemente que, na essência divina de Cristo e do Pai, há duas pessoas distintas. Por isso, quando falamos de Cristo, aqui, também é preciso ensinar claramente que ele é uma pessoa, mas que há duas naturezas distintas, a divina e a humana. De novo, exatamente como lá, a natureza ou a essência divina permanece não-misturada no Pai e em Cristo, assim, aqui, a pessoa de Cristo permanece indivisa. Por isso, os atributos de cada natureza, a humana e a divina, são atribuídos a toda a pessoa, e dissemos de Cristo: “O homem Cristo, nascido da virgem Maria, é onipotente e faz tudo que pedimos – não, contudo, de acordo com a natureza humana, mas de acordo com a natureza divina, não por causa de seu nascimento de sua mãe, mas, porque ele é o Filho de Deus”. E, mais, “Cristo, o Filho de Deus, roga ao Pai, não de acordo com sua natureza ou essência divina, segundo a qual ele é igual ao Pai, mas porque ele é verdadeiro homem e filho de Maria”. Portanto, é necessário juntar as palavras e compará-las de acordo com a unidade da pessoa. As naturezas sempre devem ser diferenciadas, mas a pessoa deve permanecer indivisa.
Assim como se crê nele como sendo uma pessoa, Deus e homem, também nos convém falar dele como o requer cada natureza. Algumas palavras indicam sua natureza humana; outras, sua natureza divina. Por isso, deve-se considerar o que Cristo diz de acordo com sua natureza humana e o que ele diz de acordo com sua natureza divina. Pois, onde isso não é observado e apropriadamente diferenciado, segue-se necessariamente todo tipo de heresia, como aconteceu em tempos passados, quando algumas pessoas afirmaram que Cristo não era verdadeiro Deus, e outras asseveraram que ele não era verdadeiro homem. Pois elas não foram capazes de seguir o princípio de diferenciar entre os dois tipos de discurso com base nas duas naturezas.
Pois Cristo falou, muitas vezes, como o homem mais humilde da terra quase não deveria falar. Por exemplo, quando ele diz: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” [Mt 20.28]. Com essas palavras, ele se torna completamente servo entre todos os seres humanos, embora seja verdadeiro Deus e Senhor sobre todas as criaturas, ao qual todos devem servir e adorar. Igualmente, Salmo 41[.4], ele faz de si um pecador e afirma que está sendo punido por causa do pecado. Isso, naturalmente, está fora de cogitação segundo a natureza divina. Por outro lado, ele, frequentemente, emprega o discurso da majestade enaltecida, que nenhum anjo ou criatura deveria usar, embora estivesse na forma e figura mais humilde enquanto vivia neste mundo, como, por exemplo, Jo 6[.62]: “Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar onde primeiro estava?”
(LUTERO, Martinho. Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e Capítulo 16 de S. João, pregado e explicado. 1537-1538. Tradução de Hugo S. Westphal e Geraldo Korndörfer. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2010, vol. 11, págs. 139-142)
(este comentário de Lutero sobre João 14:16a
continua no excerto ao qual se chega clicando aqui)