quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 4

Lutero perante Carlos V na Dieta de Worms em 1521

NINGUÉM SERÁ JUSTIFICADO PELAS OBRAS

Pois, por obras da lei, ninguém será justificado.
(Gálatas 2:16)

Até aqui, as palavras são de Paulo que falou a Pedro. Nelas, resumiu o artigo principal da doutrina cristã, que faz verdadeiros cristãos. Agora, ele muda o discurso aos gálatas a quem escreve e conclui, dizendo: “Como a situação é essa que somos justificados pela fé em Cristo, conclui-se que, por obras da lei, não será justificada toda carne”.

“Não toda carne” é um hebraísmo que peca contra a gramática. Lemos, Gn 4[.15]: “Para que não o matasse todo aquele que o encontrasse”. Os gregos e os latinos não falam assim. “Não todo aquele” quer dizer “ninguém”. “Não toda carne” quer dizer “nenhuma carne”. Mas, em latim, “não toda carne” significa “alguma carne”. O Espírito Santo, todavia, não observa tal rigor da gramática.

Carne, contudo, não significa, me Paulo, aqueles pecados grosseiros como os sofistas supõem, pois esses, ele costuma mencionar por seus nomes explícitos, como, por exemplo, adultério, fornicação, imundícia, etc., Gl 5[.19ss]. Para Paulo, carne significa o mesmo que para Cristo, que diz em Jo 3[.6]: “O que é nascido da carne é carne”. Carne, portanto, significa toda a natureza do homem, com a razão e todas as suas forças. “Essa carne”, diz, “não é justificada por obras, nem mesmo, por obras da lei”. Não diz: “A carne não é justificada por obras contra a lei, como violência, bebedeira, etc., mas por obras feitas segundo a lei, as quais são boas”. Para Paulo, portanto, carne significa a mais alta justiça, sabedoria, culto, religião, intelecto, vontade, por maiores que sejam nesse mundo. Por isso, o monge não é justificado por sua ordem, nem o sacerdote pela missa ou pelas horas canônicas, nem o filósofo pela sabedoria, nem o teólogo pela teologia, nem o turco pelo alcorão nem o judeu por Moisés. Em suma, por mais sábios e justos que sejam os homens, segundo a razão e a lei divina, não são justificados, contudo, por suas obras, méritos, missas, por sua mais alta justiça e pela prestação de cultos.

Os papistas não creem nisso, mas, cegos endurecidos, defendem suas abominações contra a consciência e perseveram nessa sua blasfêmia e, ainda, agora, vangloriam-se com estas palavras: “Quem faz essa e aquela obra merece a remissão dos pecados; prometemos, com certeza, a vida eterna a quem serve a essa ou àquela santa ordem”. É uma blasfêmia indizível e horrível atribuir às doutrinas dos demônios, aos estatutos e regras dos homens, às ímpias tradições do papa e às obras dos monges aquilo que Paulo, o apóstolo de Cristo, recusa a atribuir à lei divina e às suas obras. Se ninguém é justificado por obras da lei divina, segundo o testemunho do apóstolo, muito menos, alguém será justificado pelas regras de Benedito, de Francisco, etc., em que não se encontra nenhuma sílaba a respeito da fé em Cristo, mas, apenas, insiste-se nisto: “Quem observa essas coisas, tem a vida eterna”.

Por isso, sempre me admirei muito que, por tantos séculos, em que perduravam essas seitas da perdição, a Igreja pôde subsistir em meio a tantas trevas e erros. Houve alguns que deus chamou, simplesmente, pelo texto do Evangelho, que permanecia em seus sermões, e pelo Batismo. Esses andavam perante deus na simplicidade e humildade do coração, pensando que, somente, os monges e os que foram ordenados pelos bispos fossem santos e religiosos, mas eles, profanos e seculares que, de forma alguma, poderiam ser comparados com aqueles. Não encontrando eles em si mesmos, nem boas obras, nem méritos que pudessem contrapor à ira e ao juízo de Deus, refugiaram-se na paixão e morte de Cristo e, nessa simplicidade, foram salvos.

Horrível, porém, e infinita é a ira de Deus que, através de tantos séculos, puniu a ingratidão e o desprezo do Evangelho e de Cristo nos papistas, entregando-os a uma mente reprovável. Negando totalmente a Cristo no que diz respeito à necessidade dele e blasfemando-o, acolheram, no lugar do Evangelho, as abominações das regras e tradições humanas as quais, unicamente, veneraram e preferiram à Palavra de Deus até que, finalmente, foi-lhes proibido o matrimônio e foram forçados àquele celibato incestuoso. Então, também, foram poluídos, exteriormente, com toda a sorte de escândalos, adultério, devassidão, impureza, sodomia, etc. Esse era o fruto daquele celibato impuro. Assim, Deus, com justiça, entregou-os, interiormente, a uma mente reprovável e, exteriormente, permitiu que caíssem em tantos crimes, pois blasfemaram o unigênito Filho de Deus no qual o Pai quer ser glorificado, a quem entregou à morte, a fim de que os que nele creem fossem salvos por intermédio dele e não, pelas ordens deles. “Aos que me honram”, diz Deus em 1 Rs 2[sc. 1 Sm 2.30], “honrarei”. Mas Deus é honrado em seu Filho, Jo 5[.23]. Quem, pois, crê que o filho de Deus é nosso Mediador e Salvador, honra o Pai e Deus, por sua vez, o honra, isto é, orna-o com seus dons: a remissão dos pecados, a justiça, o Espírito Santo e a vida eterna. Do outro lado, “os que me desprezam”, diz Deus, “serão desmerecidos” [1 Sm 2.30].

A conclusão principal, portanto, é esta: “Por causa das obras da lei, ninguém será justificado”. Dando a essa conclusão dimensões mais abrangentes e percorrendo todas as posições sociais, concluirás que um monge não será justificado por sua ordem, nem uma freira pela castidade, nem um cidadão justificado por sua honradez, nem um príncipe por sua beneficência, etc. A lei de Deus é maior que o mundo inteiro, porque abrange todos os homens e as obras da lei excedem, extremamente, às obras seletivas dos homens de justiça própria. No entanto, diz Paulo, que nem a lei nem as obras da lei justificam. Uma vez estabelecida a proposição, o apóstolo começa, agora, a confirma-la com argumentos. E o primeiro argumento é, por assim dizer o oposto da conclusão.

(LUTERO, Martinho. Comentário à Epístola aos Gálatas, 1531. MARTINHO LUTERO, Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2008, Vol. 10, pág. 147-149)



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