segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 23


SOBRE OS PREGADORES ITINERANTES E CLANDESTINOS - PARTE 1

Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos

1532

INTRODUÇÃO

Lutero se dirige a Eberhard von der Tann [Administrador do Wartburgo] que, juntamente com Justo Mênio [pastor e superintendente de Eisenach e mais tarde de Gotha], se destacou como adversário dos “anabatistas”(*). Durante alguns anos ambos observavam atentamente as atividades destes. Inclusive, Mênio interrogou em 1531 diversas pessoas diretamente ligadas a eles. Aí se evidenciou que foram novamente batizadas em casas de particulares, por pregadores ambulantes que ganhavam a vida como trabalhadores rurais sazonais. O contato com estes “intrusos e pregadores clandestinos” tinha como consequência que as pessoas desistiam de participar do culto comunitário e dos sacramentos. Esperavam para logo que Deus iria punir o mundo, salvando, porém, a elas. Além disso, em parte, rejeitavam qualquer forma de governo. Já em 1525, Lutero tinha explicado que pregador, ou é diretamente enviado da parte de Deus e então, por este confirmado mediante milagres, ou é vocacionado ordenadamente por uma comunidade ou autoridade civil, favorável à Reforma. Em Von der Widdertauffe an zween Pfarherrn (1528) [“Sobre o Rebatismo, a Dois Pastores”], tomou posição frente à doutrina dos “anabatistas” até onde ele a havia percebido, ressaltando o Batismo de crianças como veículo precípuo da graça de Deus. Agora, no escrito “Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos”, vê o erro básico deles no fato de se imiscuírem nas comunidades sem terem sido vocacionados formalmente. Em contraposição, enfatiza sobremaneira a ordenação e a vocação, a autoridade e responsabilidade dos ordenados e vocacionados pela pura doutrina e pregação. Não é novo o fato de Lutero se referir a isso. Nunca, no entanto, insistira na ordenação e vocação com tanta energia como o faz no presente escrito. Sem estas “não sobrará mais Igreja em parte alguma”.




Ao severo e firme Eberhard von der Tannen, administrador do Wartburgo, meu benevolente senhor e amigo.

Graça e paz em Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém. Fiquei sabendo, prezado senhor e amigo, que aí entre vós e na circunvizinhança, os anabatistas gostam de infiltrar-se, querendo infectar os nossos com seu veneno. Sei muito bem que estais suficientemente instruídos e advertidos pelo livro de Justo Mênio e também que exerceis vosso ofício de modo honesto e louvável contra esses mensageiros do diabo. O diabo, porém, não desiste facilmente, e há muitos que, tendo dado uma lida superficial num livro, atiram-no num canto e esquecem todas as advertências. Aí se necessitaria de alguém que os admoestasse diariamente, sem cessar. Por isso me propus, com a presente carta a vós, a rogar e advertir uma vez mais os magistrados, cidades e senhores, a embargarem a atividade desses intrusos, para fazermos nossa parte.

O primeiro ponto em que se pode apanhá-los facilmente é o seguinte: quando se pergunta por sua vocação, quem os teria enviado para cá sorrateiramente a pregar na clandestinidade, eles não têm resposta, nem são capazes de apresentar sua credencial. E eu vos digo: mesmo que esses intrusos não tivessem outro defeito e fossem santos perfeitos, esse único ponto (o fato de se infiltrarem sem terem recebido uma ordem e sem terem sido chamados) prova, com clareza, que são mensageiros e mestres do diabo. Pois o Espírito Santo não se infiltra na clandestinidade, mas desce publicamente do céu. As cobras se aproximam sorrateiramente, mas as pombas voam. Por isso essa infiltração clandestina é a legítima forma de o diabo se aproximar, isso é certo!

Ouvi dizer que os intrusos se infiltram entre os segadores e pregam no campo durante o trabalho. Da mesma forma, infiltram-se entre os carvoeiros e se aproximam de pessoas individualmente nas florestas, semeando em toda parte, espalhando seu veneno e afastando as pessoas de suas igrejas paroquiais. Eis aí a maneira legítima de o diabo se movimentar e agarrar as pessoas, como teme a luz e age no escuro. Quem seria tão atrasado a ponto de não perceber que se trata de verdadeiros mensageiros do diabo? Se fossem de Deus e honestos, procurariam, antes de mais nada, o pastor, para negociar com ele: apresentariam seu mandado, lhe exporiam suas convicções de fé e perguntariam se ele estaria disposto a admiti-los como pregadores públicos. Caso o pastor não os admitisse, estariam desculpados perante Deus. Poderiam então sacudir o pó de seus pés etc. Pois o púlpito, a administração do Batismo e do Sacramento são da responsabilidade do pastor, e toda a cura d’almas lhe foi confiada. Agora, porém, querem desalojar o pastor clandestinamente com todo seu mandato, sem, no entanto, revelarem seu mandato secreto. Esses são autênticos ladrões e assassinos de almas, blasfemadores e inimigos de Cristo e sua Igreja.

Aqui, com efeito, a única solução é que ambas as autoridades, a espiritual e a secular, se empenhem com afinco. A autoridade espiritual tem que instruir o povo permanentemente, com todo o empenho, incutir os pontos supramencionados, que não admitam nenhum intruso e o identifiquem com segurança como mensageiro do diabo, e lhes ensine a perguntar: De onde vens? Quem te enviou? Quem te deu a ordem de pregar-me? Onde tens credenciais seladas que provem que foste enviado por homens? Onde estão teus sinais milagrosos que provem que Deus te enviou? Por que não procuras nosso pastor? Por que me procuras clandestinamente e te escondes nos cantos? Por que não atuas publicamente? Se és filho da luz, por que temes a luz? Com essas perguntas deveria ser fácil embarga-los (a meu ver), pois não têm como provar sua vocação. E se nós pudéssemos incutir no povo esse conceito de vocação, seria fácil desembaraçar-se desses intrusos. Também é preciso instruir e adverti-los sempre no sentido de denunciarem esses intrusos ao pastor. Isso é sua obrigação, se querem ser cristãos e salvar-se. Pois, se não o fizerem, colaboram com o mensageiro do diabo e intruso a roubar sorrateiramente do pastor (sim, do próprio Deus) seu ministério de pregação, o Batismo, o Sacramento e a cura d’almas e, além disso, aliciar seus paroquianos, devastando e destruindo, desse modo, a paróquia (que Deus instituiu). Se ouvissem e tomassem conhecimento dessa advertência quanto ao conceito de vocação, alguns corações cristãos certamente iriam denunciar esses pregadores clandestinos e traiçoeiros ao pastor. Porque, como dito: quando se insiste na vocação, certamente se pode intimidar o diabo. Um pastor, afinal, pode gloriar-se de ocupar pública e legitimamente o ministério da pregação, do Batismo, do Sacramento e da cura d’almas, e que esse lhe foi confiado o que, aliás, se deve exigir e esperar dele. Os traiçoeiros e estranhos intrusos, porém, não podem gloriar-se disso e têm que confessar que vêm como estranhos e que invadem um ministério alheio. Isso não pode ser obra do Espírito Santo, mas deve ser obra do tinhoso diabo.

(para ler a continuação deste texto, clique aqui)


(*) o termo “anabatista(s)”, derivado do grego, significa literalmente “o(s) que batiza(m) de novo”. Denominava-se de anabatistas um grupo de pessoas de linha entusiasta ou espiritualista. Inspiradas pela Reforma, entendiam que teriam que aprofundá-la. Um dos seus líderes era Tomás Müntzer. Entre outras peculiaridades, como inspiração direta do céu, defendiam o rebatismo e o Batismo de adultos, opondo-se ao Batismo de crianças.

(LUTERO, Martinho. Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos. 1532. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2009, vol. 7, págs. 114-117)



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