quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 25


SOBRE OS PREGADORES ITINERANTES E CLANDESTINOS - PARTE 3


(este texto é continuação do anterior, que pode ser lido clicando aqui)


É verdade que há os que argumentam que, em 1 Cor 14[.30], São Paulo teria concedido a qualquer um a liberdade de pregar na comunidade e, inclusive, contestar o pregador ordenado, ao dizer: “Se o que está sentado tiver uma revelação, cale-se o primeiro”. Por isso os intrusos acreditam terem a autoridade e o direito de julgar o pregador de qualquer igreja em que entram e de pregar diferente. Isso, porém, é um grande engano. Os intrusos não observam bem o texto e tiram dele, ou melhor, introduzem nele o que querem. Na referida passagem, São Paulo fala dos profetas que devem ensinar, e não do povo que escuta. Profetas, porém, são mestres detentores do ministério da pregação na Igreja. Se assim não fosse, por que se chamaria alguém de profeta? Portanto, peça ao intruso que primeiro prove ser profeta ou mestre na Igreja à qual chega, e quem lhe confiou esse ministério. Depois disso se há de ouvi-lo, de acordo com o ensinamento de São Paulo. Se não o conseguir provar, manda-o para o diabo, que o enviou e lhe deu a ordem de usurpar um ministério da pregação alheio, numa igreja à qual também não pertence como ouvinte ou discípulo, que dirá como profeta e mestre.

Que modelo fabuloso daria isso se qualquer pessoa tivesse o direito de interromper o discurso do pastor e de começar a discutir com ele! E logo mais, um terceiro se intrometeria no debate dos dois, mandando também calar a esse segundo. E depois, ainda viria um bêbado da bodega da esquina e interviria na discussão desses três, mandando também ao terceiro calar-se. Por fim, inclusive, as mulheres quereriam fazer uso desse direito, como “a que está sentada” [cfe. 1 Co 14.30], mandando os homens calar, e depois uma mulher a outra – que algazarra, que gritaria de bodega, que festa popular daria isso! Até num chiqueiro as coisas seriam mais ordeiras do que numa igreja dessas. Que o diabo seja pregador em meu lugar! Os cegos intrusos, porém, não pensam nessas coisas. Acham que somente eles são “os que estão sentados” e não percebem que qualquer um dentre os demais deveria ter o mesmo direito, e também poderia manda-los calar. Eles próprios não sabem o que dizem, o que significa “estar sentado” ou “falar”, o que significa “profeta” ou “leigo” nessa palavra de São Paulo.

Quem quiser, leia todo o capítulo e descobrirá que nele São Paulo se refere à profecia, à instrução e pregação na comunidade ou igreja. Ele não ordena à comunidade pregar, mas está falando com os pregadores que pregam na comunidade ou na reunião. Do contrário, não poderia proibir às mulheres que preguem, pois também elas são parte da comunidade cristã. A deduzir do texto, a situação era a seguinte: na igreja, os profetas, como os legítimos pastores e pregadores, estavam sentados no meio do povo, e um ou dois deles recitavam ou liam o texto, como ainda hoje é costume, por ocasião das grandes festas, em algumas igrejas, que duas pessoas cantem o Evangelho.

Em seguida, um dos profetas, que estava na vez, passava a discursar sobre esse texto, explicando-o, a exemplo do que foram as homilias na Igreja romana. Tendo esse acabado de falar, outro podia acrescentar algo, confirmar ou explicar [ainda melhor] o que disse o precedente, como fez São Tiago em Atos 15[.13ss.], respondendo ao discurso de São Pedro, confirmando e explicando-o. Do mesmo modo procedeu São Paulo nas sinagogas, especialmente, em Antioquia da Pisídia. Lucas relata que, após a leitura da Lei, os chefes da sinagoga também permitiram que Paulo falasse. Paulo então se levantou e falou, no entanto, na qualidade de apóstolo comissionado; além disso, fora convidado pelo chefe da sinagoga e não, como intruso. Fica, pois, evidente que a expressão “estar sentado” se refere somente aos profetas e pregadores ordenados: aquele que dentre eles deveria falar, erguia-se, ou então ficava sentado, dependendo da importância do assunto.

Isso se compara a um príncipe reunido com seus conselheiros, ou a um burgomestre reunido com seus colegas conselheiros. Aí um deles se levanta e faz seu discurso e depois, outro. Por fim, aceitam unanimemente aquele que fez a melhor proposta. Assim um ajuda ao outro com seu conselho e tudo acontece de forma ordeira. No mesmo sentido, os profetas eram como que o conselho da Igreja, para ensinar a Escritura e governar e prover a comunidade. Acaso se deveria admitir que um vagabundo e estranho qualquer viesse, ou um cidadão sem mandato se infiltrasse para recriminar e instruir o burgomestre? Isso não acabaria bem. A gente deveria agarrá-lo pelo cangote e entrega-lo a Mestre João [o encarregado da disciplina]. Esse lhe mostraria seu devido lugar.

Muito menos se deve tolerar que um intruso estranho se insinue num conselho espiritual, isso é, no ministério da pregação, ou que um leigo se arrogue a pregar em sua igreja paroquial sem ser chamado. Isso deve ser e permanecer incumbência dos profetas. Eles é que deverão cuidar da doutrina, ensinar um após o outro e sempre ajudar-se fielmente uns aos outros, de modo que tudo se desenrole de forma decente e ordeira, diz São Paulo. Como, porém, as coisas podem ser feitas de modo decente e ordeiro onde cada qual interfere no ministério alheio, que não lhe foi ordenado e, se todo leigo quer levantar-se na igreja, querendo pregar?

Admira-me, porém, visto serem espiritualmente tão instruídos, por que não aduzem os exemplos onde também mulheres profetizaram, governando, desse modo, os homens, terra e gente, como Débora, em Juízes 4, que derrotou o Rei Jabim e Sísera, e governou a Israel; e a profetisa de Abel-Bete-Maaca, que viveu no tempo de Davi, conforme 2 Reis 20 [sc. 2 Samuel 20.13ss.]; e a profetisa Hulda, na época de Josias, em 4 Reis 22 [sc. 2 Rs 22.14ss.]; e muito antes, Sara, que instruiu a seu senhor Abraão que expulsasse a Ismael com a mãe Hagar; e Deus ordenou que lhe obedecesse. E outras ainda, como, por exemplo, a viúva Ana, Lc 2[.36ss.], e a virgem Maria, Lc 1[.46ss.]. Aí eles teriam argumentos e poderiam autorizar também as mulheres a pregar na Igreja. Quanto mais poderiam os homens pregar, onde e quando quisessem, segundo esses exemplos.

Não queremos discutir aqui o direito que essas mulheres do Antigo Testamento tiveram para ensinar e governar. Naturalmente não o fizeram como intrusas, sem chamado e por iniciativa religiosa própria, ou por presunção. Se assim fosse, Deus não teria confirmado seu ministério e obra com milagres e grandes feitos. No Novo Testamento, porém, o Espírito Santo ordena, através de São Paulo, que as mulheres devem silenciar na Igreja [cfe. 1 Co 14.34] ou na comunidade, e diz que isso é mandamento do SENHOR [cfe. 1 Co 7.10]. Não obstante, ele sabia perfeitamente que Joel havia anunciado que Deus iria derramar seu Espírito também sobre suas servas; além disso, sabia que as quatro filhas de Filipe haviam profetizado, Atos 21[.8ss.]. Na comunidade ou Igreja, porém, onde existe o ministério da pregação, elas deveriam silenciar e não pregar. No mais, podem perfeitamente acompanhar as orações, o canto e dizer o “amém”, ler em casa e instruir, admoestar, consola-se mutuamente; também podem interpretar a Escritura da melhor maneira possível.

(para acessar a continuação deste texto, clique aqui)

(LUTERO, Martinho. Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos. 1532. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2009, vol. 7, págs. 119-122)



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