Aproveitamos agora para reproduzir, também, interessante artigo comparativo de teorias sobre o mal, publicado na Veja em 24/11/12:
Como nasce o mal
Contrariando estudos clássicos, pesquisa mostra que pessoas que cometem atos cruéis a mando de autoridades não o fazem por obediência cega, mas por acreditarem estar fazendo a coisa certa
Grande parte da compreensão sobre como pessoas normais se comportam em ditaduras vem de estudos realizados nos anos 1960 e 1970. A Segunda Guerra Mundial ainda estava viva na lembrança e cientistas de todo o mundo tentavam explicar os horrores vistos na Alemanha nazista, onde cidadãos comuns — até mesmo exemplares — cometeram atos de extrema crueldade a mando do governo. Pesquisas clássicas lideradas pelos psicólogos americanos Stanley Milgram e Philip Zimbardo mostraram que o mais pacato dos seres humanos poderia cometer atos terríveis se assim lhe fosse ordenado pelas autoridades, pois teríamos uma tendência inata à obediência e à submissão.
Um novo artigo publicado na edição desta semana da revista PLOS Biology revisita as conclusões desses estudos e afirma que as pessoas que agiram daquela maneira não eram apenas motivadas pela obediência cega, mas também demonstravam entusiasmo ao realizar atrocidades. Pessoas capazes de cometer atos cruéis não são penas receptoras passivas de ordens; elas também se identificam com autoridades abusivas, e acreditam estar fazendo a coisa certa mesmo quando são violentas.
Essa discussão começou no início da década de 1960, logo após o julgamento de Adolf Eichmann, um burocrata nazista que ajudou a elaborar os planos de extermínio de judeus. Eichmann, que conseguiu se esconder durante dez anos na Argentina, estava sendo julgado por ter ajudado a transportar milhões de pessoas para os campos de concentração. No entanto, o que espantou os pesquisadores da época é que ele parecia ser um sujeito normal, que apenas cumpria ordens de autoridades — mesmo que essas ordens implicassem no genocídio. No livro Eichmann em Jerusalém, a filósofa alemã Hannah Arendt cunhou a expressão "banalidade do mal" para explicar por que grandes crimes da humanidade não foram cometidos por monstros, mas por gente comum que aceita ordens superiores. Nos anos seguintes, a tese de origem a um grande número de pesquisas sobre o assunto.
Autoritarismo de laboratório — Em 1963, Stanley Milgram conduziu um experimento para comprovar a ideia de que pessoas comuns obedeciam de modo cego às ordens das autoridades. Pesquisador da Universidade Yale, ele convocou 40 voluntários para participar do estudo, mas avisou apenas que iriam fazer parte de um teste de memória. Todos foram designados para a posição de "professor" e instados a ajudar um segundo voluntário, que seria o "aluno", a memorizar uma série de palavras. A cada palavra errada, deveriam aplicar um choque elétrico no aluno. Os choques começavam leves, com apenas 15 volts, mas cresciam a cada resposta errada até atingir o valor de 450 volts, que pode ser mortal para um ser humano.
O que os voluntários não sabiam é que o homem respondendo às perguntas era um ator, e os choques não eram reais. Milgram não estava interessado na memória, mas em quão longe os voluntários iriam ao aplicar os choques elétricos. E eles foram longe: todos os participantes deram choques de até 300 V. Desses, 65% não pararam de aplicar os choques até atingir os 450 volts – mesmo com os atores fingindo extremo sofrimento. Segundo o psicólogo, o experimento mostra que pessoas normais estariam dispostas até a matar um completo estranho simplesmente por terem recebido a ordem de uma autoridade.
Já o estudo realizado por Philip Zimbardo na Universidade de Stanford, em 1971, buscou analisar como as pessoas estão dispostas a assumir papéis abusivos se esses lhes forem designados por autoridades. Zimbardo escolheu 24 voluntários, e os separou de modo aleatório em dois grupos: guardas ou prisioneiros. Eles foram colocados dentro de uma falsa prisão construída no Departamento de Psicologia da universidade, e os guardas instruídos a agir do modo que fosse necessário para manter o controle.
Seu objetivo era observar a interação entre os dois grupos, e ver como se comportariam sem uma autoridade por perto. Os resultados foram chocantes. Os guardas começaram a agir de modo tão abusivo e violento que o estudo precisou ser interrompido depois de apenas seis dias. Zimbardo concluiu que os voluntários assumiram um comportamento autoritário porque se adequaram de modo automático ao papel que lhes foi designado, mesmo sem receber ordens específicas para isso. Segundo o psiquiatra, a brutalidade era apenas uma consequência da representação do papel de guarda e da pressão do resto do grupo.
Tanto o estudo de Milgram quanto o de Zimbardo se tornaram referências na área. Falavam sobre a natureza humana e a submisso do homem à autoridade — e ambos deram origem a filmes, documentários e livros diversos.
Soldados nazistas conseguiam se divertir durante a guerra. |
A tese de Haslam foi formulada a partir de um experimento que ele conduziu em parceria com a rede de televisão inglesa BBC em 2002. Ele replicou o experimento da prisão feito por Zimbardo, mas garantiu que não houvesse nenhuma interferência por parte dos pesquisadores e os guardas não soubessem, a princípio, como deviam agir.
Dessa vez, os voluntários demoraram muito mais tempo para assumir seus papéis. Os prisioneiros foram os primeiros a se identificar como um grupo, e encontraram um modo de resistir à autoridade dos guardas, criando um sistema mais igualitário na prisão. Segundo Haslam, isso mostra que as pessoas não se submetem automaticamente aos papéis que lhes são incumbidos, e que elas podem resistir a esses papéis quando não gostam das consequências.
Com o passar do tempo, no entanto, uma parte dos guardas e dos prisioneiros passou a acreditar que a situação estava fugindo do controle e conspirou para criar uma nova hierarquia na prisão. No final, o experimento desencadeou o mesmo tipo de abusos que o realizado nos anos 1970 por Zimbardo. Mas, segundo Haslam, isso não aconteceu porque os voluntários aceitavam cegamente o papel de guarda. Ao contrário, foi só quando os indivíduos passaram a acreditar no novo papel, e a se entusiasmar com as ações, que a nova ordem autoritária se impôs.
Para o psicólogo, o estudo de 2002 demonstrou que aqueles que obedecem à autoridade não o fazem de modo cego, mas de modo ativo. O fazem por escolha e não necessidade e, por isso deveriam ser vistos como seguidores engajados, e não conformistas cegos. Ao analisar o estudo de Stanley Milgram, Haslam diz que os voluntários só aceitaram aplicar os choques porque acreditavam e se identificavam com os objetivos científicos do pesquisador.
Adolf Eichmann no julgamento de Jerusalém, imortalizado por Hannah Arendt |
Seu artigo questiona o resultado dos experimentos de Stanley Milgram e Philip Zimbardo. Quais seriam os erros na pesquisa de Milgram? Eu discordo da ideia de que as pessoas aplicando os choques estão simplesmente seguindo ordens. Na verdade, elas estão trabalhando duro, confrontando uma situação muito desconfortável, para tentar fazer a coisa certa e ajudar no avanço da ciência. Eles acreditam nisso. Não são zumbis ou autômatos, mas pessoas que acreditam estar participando de uma tarefa significativa. Quando alguns pensadores falam sobre o mal, eles se referem a uma espécie de ladeira escorregadia, pela qual as pessoas deslizam por inércia, sem pensar no que estão fazendo. Não é esse o caso. Os participantes estavam lutando duro – aplicar choques em seres humanos não é uma atividade facilmente digerível – para ir até o fim da experiência.
Essa conclusão pode ser usada para analisar o comportamento de pessoas que vivem sob tiranias? É claro. Muitos historiadores vêm tentando entender o comportamento dos burocratas no regime nazista. Não é o caso de dizer que eles só obedeciam a ordens. Esses burocratas sabiam muito bem o que faziam, e acreditavam que era o certo. Matar pessoas inocentes é difícil, e requer um grande nível de convencimento. Era a fé no regime nazista que lhes permitia fazer isso.
Em 2002, o senhor realizou um experimento muito semelhante ao de Zimbardo, mas chegou a conclusões diferentes. Por que isso aconteceu? Na verdade, nossos experimentos atingiram resultados muito semelhantes. No entanto, ficou muito claro para mim que esse resultado não foi atingido simplesmente porque os guardas se conformaram ao seu papel. Em nossa prisão, o sistema original falhou porque uma parte dos guardas não se identificou com o papel. A cadeia viveu uma espécie de hiato, no qual nada funcionava. Foi aí que um grupo de prisioneiros e guardas se juntou e decidiu que precisavam de um regime mais autoritário. Foi só quando eles passaram a acreditar que essa era a solução para seus problemas que estabeleceram o novo regime. As pessoas não entram naturalmente nesse tipo de situação e começam a brutalizar os outros. Elas só fazem isso quando acreditam que essa é a coisa certa para se atingir um objetivo. Isso pode ser visto em grande parte das tiranias.
Em que tipo de situação isso acontece? As pessoas não são tirânicas porque isso lhes é ordenado. Elas têm de se identificar com a causa. Por exemplo, ninguém estava ouvindo o que Hitler tinha a dizer no começo dos anos 1930. Foi só anos depois, quando os alemães começaram a acreditar que o nazismo tiraria a Alemanha de uma situação difícil, que alguns deles – os mais comprometidos com a ideologia – se tornaram capazes de agir como agiram.
Então os indivíduos que seguem as ordens são ideologicamente comprometidos como a tirania? É isso. Quando procuramos o que dá energia e dinamismo para a tirania, não vamos encontrar pessoas que seguem ordens cegamente. As organizações autoritárias só se sustentam porque alguns indivíduos se identificam com elas, acreditam em seus pressupostos e trabalham duro para atingir seus objetivos. Se as pessoas apenas seguissem ordens, esses regimes não chegariam a lugar nenhum.