Carlos é Promotor de Justiça com carreira de sucesso em um dos Estados brasileiros.
Entre as muitas áreas em que atuou ao longo de vários anos, se destaca o júri, onde lhe coube centenas de vezes a função de Estado de acusar pessoas que foram processadas por terem cometido crimes contra a vida.
Aquela terça-feira seria um dia como outro qualquer: mais um júri para fazer, mais jurados para convencer, mais uma vítima de homicídio cujo sangue e família clamavam por Justiça, mais um réu para – se possível - condenar.
Só que Carlos não estava tão convicto da culpabilidade desse réu em particular.
18 anos haviam se passado desde que Juca fora assassinado, e o principal suspeito do crime era seu cunhado Silas, que havia sido casado à época com a irmã da vítima.
18 anos antes, Silas havia deixado a esposa no interior do Brasil e chegou à capital daquele Estado, com a intenção declarada (e tida como inocente) de fazer ali uma breve escala para depois ir a São Paulo procurar melhor sorte.
Chegando lá, foi se hospedar – sem ter sido convidado - no barraco em que Juca a duras penas sobrevivia.
Este, gentil ao extremo, como só os humildes conseguem ser, cedeu ao cunhado a sua própria cama e passou a dormir num colchão estendido no chão.
Mal sabia o pobre coitado que essa hospitalidade lhe custaria a existência.
Já Silas sabia que Juca estava então recebendo seguro-desemprego, o que, naquela ciranda de infortúnios, era uma quantia tentadora para quem tinha pouca (se alguma) esperança na vida.
Silas ficou uma semana no barraco de Juca, e saiu um sábado qualquer dizendo que - por fim – iria a São Paulo. Com que dinheiro ninguém soube precisar.
Na manhã seguinte, um domingo, dois vizinhos que eram grandes amigos de Juca estranharam não tê-lo visto logo cedo, como era seu costume de regar todos os dias as parcas plantas de seu miserável jardim.
Chamaram por ele, e a ausência de resposta os levou a investigar melhor. O que não foi difícil, já que nem muro ou cerca separava o pobre Juca da curiosidade alheia.
Uma porta entreaberta denunciou que nunca mais teriam o companheiro de tantas histórias sofridas e mínimas alegrias. Seu corpo jazia no colchão estendido no chão com as marcas sanguinolentas de uma marretada na cabeça.
O assassino nem se dera ao trabalho de levar ou esconder a marreta, que – ensanguentada – servia de testemunha inanimada do fim inglório de Juca.
Os bolsos da calça de Juca estavam para fora, como se seu algoz os tivesse revirado, e o suspeito mais provável era Silas, que fizera questão de alardear sua finalmente chegada viagem a São Paulo um dia antes como um álibi talvez por demais conveniente.
Investigadores, delegados, promotores e juízes se sucederam no caso, os amigos de Juca mantiveram firmes suas versões por todo o tempo, mas por quase duas décadas não foi possível encontrar o paradeiro de Silas, até que alguém o localizou a milhares de quilômetros dali.
Trazido ao banco dos réus, o promotor Carlos agora não tinha certeza se havia evidências suficientes para condenar Juca, mas antes de pedir a absolvição por falta de provas, decidiu inquirir melhor o acusado.
Afinal, presentes ao tribunal estavam os pais de Juca, e aguardavam para depor os dois amigos e vizinhos que - por 18 anos – não faltaram nenhuma vez quando era necessário ouvi-los a respeito do que havia ocorrido naquele fatídico dia perdido na penumbra dos tempos.
Ao ser interrogado pela última vez, Silas não conseguiu sustentar a versão de sua viagem a São Paulo, por mais que ele e seu advogado tivessem tentado fazê-la parecer crível.
No confronto de sua narração dos fatos com os testemunhos convincentes dos dois amigos, não restava nenhuma dúvida sobre quem falava a verdade.
Ficou óbvio para todos os presentes ao tribunal que Silas não conseguia contar uma história minimamente coerente com pessoas, horários e locais compatíveis, e ele próprio terminou se enredando e contradizendo em sua ficção.
Os pais e amigos de Juca não conseguiram disfarçar sua dolorosa satisfação. Haviam honrado o compromisso de punir o responsável pela morte de alguém tão gentilmente simples, mas tão humildemente querido.
Como os quatro amigos que um dia destelharam uma choupana a fim de descer pendurado o leito de um paralítico para que Jesus o curasse (Marcos 2:1-12), Juca, embora morto, tinha quatro pessoas com quem contar, quatro seres queridos que – por 18 anos – não desistiram de honrar o amor e a amizade e prestar-lhe a perene homenagem dessa tão humana justiça.
Como Abraão, creram em esperança contra a própria esperança (Romanos 4:18) para que não perecesse o grito sufocado de socorro e a memória singela de um ente querido.
Quatro pessoas e um Promotor de Justiça podiam agora voltar para casa com a alma lavada e a consciência serena do dever cumprido.
O promotor Carlos, com tantos júris nas costas, tampouco conseguia esconder seu íntimo regozijo por “vingar”, representando o Estado, a morte de um cidadão que perambulou rápida e cordialmente por uma vida que lhe foi tão sovina.
Não havia, entretanto, tempo para celebrações. O dia seguinte chegaria inexoravelmente para todos eles, trazendo seus dilemas, rotinas e as mesmas ou novas obrigações.
O sol só não se levantaria mais para Juca, que – pelo menos - finalmente repousaria em paz.
Esta é uma história real. Os nomes e alguns pequenos detalhes foram trocados para que os verdadeiros personagens não fossem identificados.
É bom saber que ainda existe um Brasil que funciona, que existem amigos verdadeiros e há pessoas que agem em nome do Estado, agindo em nome de fracos e oprimidos e procurando dar voz e honra a vivos e mortos que não puderam se defender.
Infelizmente, nem todas as histórias terminam assim nos tribunais, mas esse parece ser um lembrete de que é sempre possível que a Justiça seja solenemente servida a quem pouco ou nada tem para esperar.
“Encontraram-se a graça e a verdade,
a justiça e a paz se beijaram
Da terra brota a verdade,
dos céus a justiça baixa o seu olhar”
(Salmo 85:10-11)