Entrevista com o filósofo australiano Peter Singer, publicada na Folha de S. Paulo de 25/08/13:
Por uma vida menos ordinária
MARCELO LEITE
RESUMO Peter Singer, professor da Universidade de Princeton (EUA), vem ao Brasil para duas palestras no ciclo Fronteiras do Pensamento. Ele argumenta que a pobreza e a mudança do clima são os maiores problemas do mundo e, como solução, defende que as pessoas reduzam consumo de carne e doem parte de sua renda.
O filósofo australiano Peter Singer, da Universidade de Princeton (EUA), é o conferencista de amanhã, em Porto Alegre, do ciclo Fronteiras do Pensamento.
Na quarta-feira ele estará em São Paulo para palestra no Teatro Geo, onde deve abordar temas de ética prática como a pobreza no mundo, escolhas alimentares, bem-estar animal e mudança climática.
Para o controverso autor do clássico "Libertação Animal" [trad. Marly Winckler e Marcelo Brandao Cipolla, WMF Martins Fontes, 496 págs., R$ 79,90], cada pessoa deveria doar uma parte de sua renda para ajudar a diminuir a desgraça de 1 bilhão de pobres que vivem com menos de um dólar por dia.
Esse é o tema do livro "The Life You Can Save", de 2009 (lançado em Portugal com o título "A Vida que Podemos Salvar", Gradiva, 252 págs., R$ 69,10, sob encomenda), mas um de seus primeiros artigos, de 1972, já tratava dele -e foi citado por 1.259 outros autores desde então.
Singer está insatisfeito com o efeito do livro, que calcula ter vendido 60 mil cópias no mundo inteiro. Mais ainda com o baixo número de "compromissos" (pledges) da página de internet equivalente, em que pessoas comuns podem jurar em público que vão passar a doar determinado percentual de sua renda para organizações de caridade: 16.394.
Ele doa um terço de sua renda, mas prefere não equiparar a "cegueira moral" dos outros ao Holocausto, e diz que é o maior problema do presente é a pobreza, ao lado da mudança do clima, no futuro.
Folha - O tema da mudança climática já apareceu também no seu radar ético? Ela tem o potencial de tornar a vida pior para um bocado de gente pobre, no futuro. Devemos nos importar menos com as vidas futuras do que com as do presente?
Peter Singer - Esses dois assuntos estão intimamente conectados. A resposta curta para a pergunta é "não". Devemos nos importar o mesmo tanto com as pessoas, não importa a época em que vivam. Claro que há questões sobre a incerteza, quando falamos do futuro. Nós podemos saber muito mais sobre as pessoas que vivem agora, de modo a ajudá-las, do que podemos saber sobre pessoas que viverão daqui a cem anos. Isso é relevante, e podemos aplicar um desconto sobre o futuro, mas num grau bem pequeno.
Não é demais pedir a alguém que se torne vegetariano e ainda por cima doe uma porção significativa de sua renda para combater a pobreza?
Reconheço que só algumas pessoas vão de fato agir nesse sentido. Mas acho que todo mundo poderia considerar uma mudança nas suas escolhas alimentares e, se tiverem alguma sobra de dinheiro, considerar sua responsabilidade perante os pobres do globo.
Não é uma questão de tudo ou nada, ou você se torna um vegetariano ou não faz nada. Várias pessoas nos Estados Unidos, por exemplo, estão dizendo: "Bem, eu como carne todos os dias...". Existe uma prática chamada Segunda-Feira Sem Carne. Outros escolhem dois ou três dias por semana em que não comem carne. Penso que seja algo fácil de fazer, uma coisa saudável, e obviamente faz diferença, pelo menos do ponto de vista de reduzir a pecuária industrial e a emissão de gases do efeito estufa.
Se o sr. tivesse de dar um conselho a um adolescente sobre como agir, diria que ele ou ela devem se juntar a uma organização de caridade, a um partido político ou a uma ONG militante? O que seria mais eficaz para salvar vidas agora e no futuro?
Bem, não há razão para não fazer as três coisas. Não precisa ser uma escolha do tipo "ou isso ou aquilo". O valor de se envolver com um partido político vai depender de onde, no mundo, a pessoa vive e de quão abertos são os partidos políticos, da possibilidade de fazer alguma diferença nesses partidos. Minha resposta, realmente, é: quanto mais, melhor.
Há um problema com a ideia de ação individual. Um exemplo: no livro "Uma Verdade Inconveniente", Al Gore dá uma série de ideias sobre o que as pessoas podem fazer para combater o aquecimento global, como trocar as lâmpadas de casa. Mas, desde 2006, as coisas só pioraram nesse campo. O sr. acha que pedir às pessoas que doem parte de sua renda resolve algo?
Acho que não é igual ao caso da mudança climática. Se eu doo para a Oxfam ou outra organização eficiente, isso faz uma diferença específica. Claro que não se trata de resolver a questão da pobreza global; obviamente eles não podem fazer isso. Mas quer dizer que algumas famílias vão receber telas contra mosquitos para as camas e que suas crianças não vão morrer de malária, ou que as crianças vão receber vermífugos e, sem parasitas, serão mais saudáveis, terão mais energia e irão melhor na escola. Ou uma aldeia consegue abrir um poço, e as pessoas não terão mais de caminhar três horas por dia para conseguir água.
A razão para não ser assim com a mudança do clima é que, neste caso, de fato é necessário que governos se unam e estabeleçam limites de emissões de gases do efeito estufa. Não há como reunir um grupo de pessoas que possa fazer algo de significativo para de fato reduzir o aumento dos gases de efeito estufa e o aumento de temperatura resultante. São decisões mais amplas, como livrar-se de usinas elétricas movidas a carvão, criar um imposto sobre o carbono ou um mercado para créditos de carbono. É uma situação diferente da pobreza global, para a qual penso que indivíduos podem fazer uma grande diferença.
Voltando ao tema do bem-estar animal e do bem-estar humano. O sr. responde ao romance "A Vida dos Animais", do sul-africano J.M. Coetzee, indicando que vê problema na comparação que a protagonista, Elizabeth Costello, faz entre o modo como tratamos os animais e o Holocausto. O sr. escreveu: "O valor que se perde quando algo é esvaziado depende do que estava ali quando estava cheio, e há mais [conteúdo] na existência humana do que na de um morcego".
Esse argumento se parece ao de parte de pecuaristas que destroem a floresta no Brasil: eles criam empregos que vão beneficiar pessoas, e pessoas são mais importantes que o ambiente ou espécies selvagens. O sr. concorda?
Concordo com a posição geral de que é relevante a questão de quantas pessoas estão se beneficiando e quantas pessoas estão sofrendo, mas não que isso seja usado como argumento para destruir a Amazônia ou pôr mais cabeças de gado para pastar, ignorando as questões de longo prazo de que falávamos há pouco.
Uma das principais causas das emissões brasileiras de gases do efeito estufa é o desmatamento; outra, o próprio gado. Esse pessoal não está de fato beneficiando mais pessoas do que aquelas que consomem essa comida hoje. Eles causam muito mais dano no mundo todo, hoje e no futuro. É um cálculo errado.
E quanto à oposição de valores entre existências humanas e animais? Devemos ter uma preferência?
É razoável dizer que, se se trata do valor de uma vida, do ato de matar em si, o ser cuja vida contenha mais capacidades sofre uma perda maior. Se for para comparar a morte de uma pessoa com a de uma vaca, é razoável dizer que a morte de um ser humano é a tragédia maior. Mas há muito mais que o ato de matar na criação industrial de animais, que vivem vidas horríveis. Precisamos perguntar: por que fazemos isso, qual a necessidade de fazer assim?
Seria comparável ao caso dos alemães que preferiam ignorar a existência de campos de concentração, como sugere a personagem Elizabeth Costello, de Coetzee?
Há um certo paralelo aí. A diferença, suponho, é que as pessoas na Alemanha aceitavam a moralidade da ideia de que é errado matar seres humanos inocentes. Creio que estavam mais conscientes da seriedade do mal que se fazia durante o Holocausto, na medida em que sabiam do que estava acontecendo.
No entanto, a maior parte das pessoas não é criada com a noção de que animais são moralmente importantes, de que devemos dar a seus interesses a mesma consideração que damos aos nossos. Pode-se dizer que voltar as costas para isso é mais desculpável. Mas também creio que haja algum paralelo, sim.
Um paralelo constrangedor, não? Essa é a questão suscitada pelo livro de Coetzee.
Sim. Ele é um escritor brilhante e nos faz sentir o desconforto das pessoas na plateia quando ouvem a palestra de Elizabeth Costello sobre o questionamento de seus hábitos. Há no livro a discussão particular sobre o paralelo com o Holocausto, muito contencioso. Coetzee está expondo as pessoas a esse desconforto. Mas, de novo: não há um número suficiente de pessoas que o estejam lendo e levando essas questões em conta.
O sr. iria até o ponto de dizer que a pobreza mundial é o Holocausto do século 21?
Não gosto muito de usar essa linguagem de Holocausto, de estendê-la para coisas que não estão assim tão perto. Vejo algumas diferenças. Ao dizer que o que está acontecendo com os pobres do mundo é o nosso próprio Holocausto, você desqualifica ou reduz a enormidade do que aconteceu no período histórico dos anos 1940. Mas o que eu diria é que, ao lado da mudança climática, é uma cegueira moral que temos e que, na escala de sua seriedade e de suas consequências, é comparável ao Holocausto.