Entrevista com o psicólogo americano Philip Zimbardo, que conduziu uma pesquisa interessante sobre o problema do mal, publicada na Veja de 21/08/13, ed. 2335, págs. 15, 18 e 19:
O mal está em todos nós
Entrevista com Philip Zimbardo
Gabriele Jimenez
O psicólogo americano, que demonstrou como as circunstâncias podem fazer aflorar
a maldade nos homens, diz que prisões são inúteis e que o mal se autoalimenta
Boa parte dos 80 anos do psicólogo americano Philip Zimbardo foi dedicada a buscar resposta a uma questão ao mesmo tempo fascinante e assustadora: o que leva as pessoas a praticar o mal?
Seu ponto de partida foi uma revolucionária pesquisa realizada nos anos 70, na Universidade Stanford: ao isolar e dividir um grupo de jovens entre guardas e prisioneiros no ambiente imaginário de uma prisão, ele constatou que os maus-tratos de uns e a submissão de outros extrapolaram todos os limites.
Hoje, o psicólogo tem críticas ao próprio experimento. "Foi antiético porque causou sofrimento aos participantes", diz.
No livro O Efeito Lúcifer (Ed. Record), lançado recentemente no Brasil, Zimbardo se debruça sobre as lições da experiência de Stanford.
De seu escritório na universidade, ele falou a VEJA sobre os padrões que levam pessoas ordinárias a cometer maldades fora do comum.
O Brasil está chocado com os indícios de que um menino de 13 anos, de comportamento considerado normal, tenha assassinado toda a família e se matado. O que poderia explicar tamanha barbárie?
Philip Zimbardo: Felizmente, casos horrendos assim, em que um suposto bom menino faz uma coisa muito má, são raros. Eles não se enquadram em nenhuma categoria-padrão da psicologia, nem se encaixam em uma análise "normal" da natureza humana. Nesse caso, poderíamos investigar se, nesse menino, a consciência da mortalidade, decorrente de sua doença degenerativa, gerou a sensação de que a vida não valia a pena. E, em vez de morrer passivamente, ele escolheu agir e ceifar a vida de pessoas que amava. Mas não conheço detalhes do episódio e, pelo que você me diz, nem mesmo se sabe se ele ocorreu dessa forma.
Onde reside a origem do mal?
Zimbardo: Freud dizia que a tendência a destruir e a praticar o mal tem suas raízes na própria natureza da mente humana e que todos nós, sem exceção, carregamos um componente que incita à maldade. Os pensadores que vieram depois reforçaram essas descobertas, ao concluir que o mal está no caráter, na personalidade. Ou seja, ele repousa dentro das pessoas - e pode vir à tona ou não. Minha contribuição foi pesquisar a fundo quais ambientes e situações estimulam de forma decisiva a expressão desse lado ruim de cada um. Sim, as circunstâncias têm um peso determinante para que o mal viceje. Submetida à forte pressão, muito pouca gente é capaz de resistir e se manter no espectro do bem.
Qualquer um de nós pode cometer uma atrocidade, então?
Zimbardo: Os estudos mostram, um após o outro, que não mais do que 10% das pessoas conseguem permanecer imunes às situações que as compelem a agir de forma má. Quando os caminhos familiares e seguros são trocados por uma situação totalmente nova, o inesperado pode despertar no ser humano reações completamente contrárias a tudo aquilo em que acredita, fazendo emergir uma face bastante cruel. É assim que surgem, muitas vezes, os regimes tiranos, violentos, usurpadores das liberdades individuais e transgressores dos limites.
Até mesmo aqueles indivíduos que todos consideram boas pessoas estão sujeitos a se converter ao mal nessas situações?
Zimbardo: Sem dúvida, e a história reforça bem isso. Os seres humanos são flexíveis em relação a seus valores e crenças. Tendem a se adaptar ao status quo. Se ele muda, as pessoas logo trocam seus padrões habituais de resposta por outros que façam mais sentido na nova ordem. Pergunte a alguém o que faria em uma situação de pleno poder sobre os outros e muito provavelmente ouvirá: "Faria o bem, claro". Mas eu questiono: se essa pessoa nunca esteve diante de uma situação de pressão extrema, como saberá ao certo? Na verdade, não há como prever. Eu mesmo, no experimento que coordenei em Stanford, percebi uma transformação assustadora nos meus alunos e em mim mesmo.
No senhor também?
Zimbardo: Eu não me preparei como deveria para uma pesquisa de tantos dias ininterruptos. Era o único especialista formado do grupo e comecei a perder a perspectiva objetiva. Relembrando a experiência: dividi 24 jovens brilhantes e saudáveis em dois grupos, um de guardas e outro de prisioneiros, com a intenção de observar seu comportamento durante quinze dias. Naquele ambiente de prisão, os "guardas" imediatamente se puseram a submeter os "presos" a abusos constantes e cada vez mais cruéis, enquanto estes afundavam na submissão e na depressão. Eu, de minha parte, fui me deixando controlar pelo papel de diretor da prisão e perdendo o distanciamento indispensável em minha posição. O processo foi tão violento que decidi encerrar o experimento em seis dias. Foi tempo suficiente para comprovar que, diante de circunstâncias favoráveis, pouquíssimos são capazes de resistir ao mal.
À luz desse experimento, o senhor interpretou o extermínio de judeus pelos nazistas...
Zimbardo: Sim. Nossa mente possui uma capacidade infinita de racionalizar e justificar nossas ações. Para os nazistas, essa justificativa era a crença de aqueles atos se faziam necessários em prol de uma causa, um "bem maior". Outros, menos idealistas, diziam apenas estar realizando seu trabalho, e isso, para eles, tornava qualquer ação razoável. O fato é que havia milhões em cumplicidade, prontas para exercer o mal em sua pior forma dentro de um sistema muito bem engendrado. Hitler corrompeu todas as esferas da sociedade - da educação ao Judiciário - criando mecanismos de controle e dominação que o tornaram, a si próprio, dispensável. A meu ver, a história não mudaria seu curso se um dos planos para assassinar Hitler tivesse prosperado. A máquina para fazer o mal já estava montada, e a maioria se juntaria a ela, como sempre faz. Repare que um ingrediente essencial dessa engrenagem foi a desumanização das vítimas - no caso, os judeus. Quando isso acontece, a disseminação do mal se trivializa.
Há pessoas que são mais propensas a praticar o mal?
Zimbardo: Sim. O grupo mais propenso a se engajar em violência e ser destrutivo é o dos psicopatas, que até têm consciência de seus atos, mas não sentem culpa, empatia ou vergonha do que fazem e desprezam o sofrimento alheio. Esses indivíduos, felizmente, representam apenas 1% da população. Outra evidência que temos é que cerca de metade das pessoas que sofreram alguma espécie de violência brutal, na infância ou mesmo na idade adulta, tende a praticar tais atos mais tarde, ainda que não necessariamente na mesma intensidade. Mas as pesquisas não forneceram até este momento uma resposta razoável sobre por que alguns conseguem superar o trauma e outros vivem enredados nele.
Algumas pessoas resistem mais à maldade do que outras?
Zimbardo: Sim, e elas têm muito em comum. São pessoas que, segundo venho observando ao longo de décadas, repetem um mesmo padrão de comportamento: não se submetem a um sistema que consideram injusto e se rebelam contra autoridades tiranas, ainda que quase todo mundo à sua volta seja simpático a elas.
Ao afirmar que as circunstâncias podem corromper as pessoas, o senhor não está tirando delas a responsabilidade por seu atos?
Zimbardo: Por favor, não confundam o que digo com "desculpologia". As pessoas são, sim, responsáveis por suas ações e devem responder por elas perante as instituições de direito, mesmo que o sistema as tenha empurrado para a direção errada. O julgamento de Nuremberg trouxe essa questão à tona ao tratar da carnificina nazista. Os oficiais de Hitler alegavam no tribunal: "Eu estava apenas seguindo ordens. Não tinha como fazer diferente". Queriam banalizar o mal, como a filósofa alemã Hannah Arendt bem pontuou. Mas a Justiça condenou a todos, enfatizando uma ideia essencial: se você prejudicou o próximo, ceifou vidas, disseminou o mal, as razões são absolutamente irrelevantes. Você é culpado da mesma forma.
Uma vez que alguém tenha cometido um ato de maldade, fica mais fácil repetir o gesto?
Zimbardo: Sim, todos os estudos mostram que o mal vai subindo de nível numa progressão gradativa. Se a pessoa comete um pequeno desvio, tende a considerar o seguinte só "um pouquinho pior". Então, vai-se abrindo uma fresta perigosa para que ela traia, minta ou machuque os outros cada vez mais. E o indivíduo vai encontrando razões para justificar seus atos, de forma que suas atitudes não lhe pareçam malignas, mas, ao contrário, essenciais. Como é da espécie humana acreditar que é movida pelo bem, os valores começam a se distorcer para legitimar aquela situação. Passamos a acreditar que o que costumava ser errado agora é certo, ou pelo menos apropriado para um determinado contexto.
Por que o senhor foi à corte defender um dos soldados americanos que apareceram em fotos maltratando prisioneiros iraquianos em 2004?
Zimbardo: A administração Bush dizia que soldados como aqueles eram "maçãs podres", quando, na verdade, esse tipo de conduta se disseminava por muitas outras prisões iraquianas nos mais variados escalões. No caso de Abu Ghraib, ficou claro que militares de alta patente haviam incitado os abusos, instruindo seus subordinados a fazer o que fosse preciso durante a noite para que os prisioneiros abrissem a boca nos interrogatórios da manhã. Testemunhei em favor do sargento Chip Frederick argumentando que, sim, ele era culpado, mas sua pena deveria ser calculada levando-se em conta sua responsabilidade em comparação com a dos outros. Só que nenhum desses algos oficiais foi punido. Pior ainda: alguns acabaram até promovidos, num exemplo de como o sistema protege a si mesmo. Deveriam ter ido todos para a cadeia.