Artigo publicado no IHU em janeiro deste ano e que continua tristemente atual:
Cinco mitos sobre a perseguição anticristã
Em seu discurso anual aos diplomatas do dia 9 de janeiro, o Papa Bento XVI destacou a liberdade religiosa com ênfase nos cristãos perseguidos em todo o mundo. "Em muitos países, os cristãos estão privados dos direitos fundamentais e marginalizados da vida pública", disse ele. "Em outros países, eles suportam ataques violentos contra suas igrejas e seus lares".
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 13-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesta semana, uma delegação de bispos católicos da Europa e dos EUA tentaram chamar a atenção para um pequeno capítulo dessa história global: a Faixa de Gaza, onde 2.500 cristãos vivem em meio a uma população esmagadoramente muçulmana de 1,5 milhão de pessoas. Eles se encontram presos em um torno formado pela militância islâmica, de um lado, e por um bloqueio imposto pelos israelenses e pelos egípcios, de outro.
O bispo inglês William Kenney disse aos cristãos de Gaza, "Você não estão esquecidos".
É um sentimento adorável, e os bispos da Coordenação para a Terra Santa, que inclui o bispo de Tucson, Gerald Kicanas, como o representante norte-americano, merecem crédito pelos seus esforços. No entanto, ficamos pensando quanta realidade existe por trás da afirmação de Kenney.
O intelectual francês Régis Debray, esquerdista veterano que lutou ao lado de Che Guevara na Bolívia, observou que a perseguição anticristã se desdobra diretamente no ponto cego político do Ocidente – as vítimas são geralmente "muito cristãs" para estimular a esquerda e "muito estrangeiras" para o interesse da direita.
Como contribuição para apagar esse ponto cego, vamos desmascarar cinco mitos comuns sobre a perseguição anticristã.
Mito nº 1: Os cristãos são vulneráveis apenas quando são minoria
Acima de tudo, mesmo que isso fosse verdade, dificilmente diminuiria a seriedade da questão. De acordo com uma recente análise do Pew Forum, 10% dos cristãos vivem em sociedades em que são uma minoria. Dado que existem 2,18 bilhões de cristãos no planeta, isso se traduz em mais de 200 milhões de pessoas, muitas delas enfrentando ameaças, como as da Faixa de Gaza.
Qualquer flagelo que põe 200 milhões de pessoas em perigo, seja qual for a causa, mereceria preocupação.
No entanto, é palpavelmente falso que a perseguição ocorre apenas onde os cristãos são uma minoria. Segundo dados de outubro de 2010 do Pew Forum, os cristãos enfrentam ataques em um impressionante total de 133 países, o que representa mais de dois terços de todas as nações da terra, incluindo muitas onde os cristãos são uma forte maioria.
Um olhar sobre uma recente lista reunida pela Agência Fides, a agência de notícias missionária do Vaticano, de agentes de pastoral católicos mortos durante o ano passado, ilustra esse ponto.
Dos 26 que perderam suas vidas em 2011, apenas um morreu em um país onde os cristãos são uma minoria: o padre salesiano Marek Rybinski, morto na Tunísia, em fevereiro. Todos os demais morreram em países onde os cristãos são maioria, incluindo várias nações majoritariamente católicas, como Colômbia, México, Burundi, Sudão do Sul e Filipinas.
A Colômbia, o sexto maior país católico do planeta, também foi lugar mais perigoso do mundo para ser um agente de pastoral católico em 2011. Seis padres e um leigo morreram, somando-se a uma sangrenta contagem de 70 padres, dois bispos, oito religiosos e três seminaristas mortos na Colômbia desde 1984.
Um dos mais angustiantes e novos martirológios de 2011 veio do México, onde 92% da população é católica. Mary Elizabeth Macías Castro, líder do Movimento Leigo Scalabriniano e blogueira, foi decapitada por expor as atividades de um cartel de drogas. De acordo com a Comissão para a Proteção dos Jornalistas norte-americana, ela foi a primeira jornalista do mundo morta devido ao uso de mídias sociais.
Em qualquer lugar em que os cristãos professam a sua fé abertamente, tomam posições contra a injustiça ou se colocam em perigo por causa do Evangelho, eles estão em risco – seja qual for a demografia religiosa do lugar.
Mito nº 2: Tudo tem a ver com o Islã
Uma parcela desproporcional de perseguições anticristãs é, na verdade, alimentada pelo Islã radical. Open Doors, um grupo evangélico, colocou nove Estados muçulmanos em sua lista "Top 10" de 2011 dos lugares mais perigosos para os cristãos, incluindo Afeganistão, Arábia Saudita, Somália e Irã.
No entanto, simplesmente identificar a perseguição anticristã com o Islã é enganoso. Há exemplos convincentes de colaboração entre cristãos e muçulmanos em várias partes do mundo, e essa é a base da visão do Papa Bento XVI de uma "Aliança de Civilizações" (um dos principais partidos políticos das Filipinas, por exemplo, é o Democratas Muçulmanos Cristãos). Também não se deveria esquecer que as vítimas mais numerosas do extremismo muçulmano são, de fato, outros muçulmanos.
Além disso, o Islã radical dificilmente é a única fonte de animosidade anticristã. Os cristãos sofrem de uma série de outras forças, incluindo:
- O ultranacionalismo (como na Turquia, onde nacionalistas extremistas tendem a ser uma ameaça maior do que os islamistas);
- Estados totalitários, especialmente do âmbito comunista (China, Coreia do Norte);
- O radicalismo hindu (a agressão anticristã se tornou rotineira em algumas regiões da Índia. Nesta semana, radicais hindus armados com paus e barras de ferro atacaram 20 cristãos pentecostais em uma casa particular perto de Bangalore, um ataque que deixou o pastor sem um dedo de sua mão esquerda. Quando os cristãos denunciaram agressões semelhantes há duas semanas, um membro da comissão oficial do Estado para as minorias, que está sob o controle de um partido nacionalista hindu, deu de ombros: "Se realmente conhecessem os ensinamentos de Jesus, os cristãos não deveriam estar reclamando", ele teria dito);
- O radicalismo budista (como no Sri Lanka, onde, ao contrário dos estereótipos de tolerância budista, manifestações lideradas por monges budistas atacaram igrejas cristãs e outros alvos em todo o país em 2009);
- Interesses corporativos (como na região amazônica do Brasil, onde ativistas cristãos foram mortos por protestar contra injustiças dos conglomerados do agronegócio);
- O crime organizado, narcotraficantes e bandidos menores (por exemplo, o assassinato, em 1993, do cardeal mexicano Juan Jesús Posadas Ocampo, alvejado 14 vezes no aeroporto de Guadalajara por homens armados ligados a um cartel de drogas, ou o assassinato no mesmo ano do padre italiano Giuseppe Puglisi, um crítico feroz da máfia siciliana);
- Políticas de segurança impostas pelo Estado (como em Israel, onde postos de controle, requisitos de visto e outras restrições dividem as famílias cristãs entre a Jerusalém Oriental e a Cisjordânia e tornam praticamente impossível que os cristãos de um local prestem culto em outro);
- E até mesmo, acredite ou não, o radicalismo cristão.
Se esse último dado parece ser contraintuitivo, considere-se o que aconteceu no vilarejo de San Rafael Tlanalapan, no estado mexicano de Puebla, em setembro passado. Setenta protestantes locais foram forçados a fugir depois que um grupo de católicos tradicionalistas emitiram um ultimato assustador: saiam imediatamente ou serão "crucificados ou linchados".
A questão é que o extremismo e a intolerância de qualquer tipo, não o Islã, são a ameaça.
Mito nº 3: Ninguém a viu chegar
Quando os cristãos são alvejados, os políticos e a polícia muitas vezes desempenham o papel de capitão Louis Renault, em Casablanca, que professa seu choque com o que aconteceu, mas sugerindo que a violência foi uma calamidade imprevisível, em vez de uma falha de vigilância. No entanto, em um número perturbador de casos, os sinais de advertência foram muito claros.
A Turquia é um exemplo. No dia 3 de junho de 2010, o bispo Luigi Padovese, um capuchinho italiano e vigário apostólico de Anatólia, foi assassinado pelo seu motorista, que alegou ter tido uma revelação privada identificando Padovese como o anti-Cristo. Como o motorista estava recebendo tratamento psiquiátrico, as autoridades turcas anunciaram que não houve "motivo político" e declararam o caso encerrado.
O que não se reconheceu foi o clima geral em que um louco pôde ter tido a ideia de que um bispo católico era a encarnação do mal.
Pouco depois que Padovese chegou em 2004, começaram as negociações para a adesão da Turquia à União Europeia, inflamando ressentimentos nacionalistas. Entre esse ponto e a morte Padovese em 2010, um claro padrão de ameaça surgiu para a pequena minoria cristã (150 mil de 72 milhões):
- Em 2005, polêmicos minidramas sobre as Cruzadas foram ao ar na televisão turca, o que fez com que pedras começassem a ser atiradas contra as janelas de igrejas cristãs, lixo fosse deixado na porta das igrejas e abusos verbais fossem proferidos contra o clero cristão pelas ruas;
- Também em 2005, um livro sensacionalista foi publicado por um turco chamado Ilker Cinar, que alegava ser um ex-protestante que havia retornado ao Islã, intitulado Eu fui um missionário. O Código está decodificado. Ele afirmava que os cristãos estavam trabalhando com os separatistas curdos e queria, destruir a nação.
- No dia 8 de janeiro de 2006, um líder da Igreja Protestante de Adana foi espancado por cinco homens jovens;
- No dia 5 de fevereiro de 2006, um missionário católico italiano chamado Pe. Andrea Santoro foi assassinado a tiros na cidade de Trabzon por um jovem de 16 anos que gritava Allahu Akhbar (Padovese celebrou a missa fúnebre);
- Nas semanas seguintes ao assassinato de Santoro, o padre esloveno Martin Kmetec foi jogado em um jardim e ameaçado de morte na cidade portuária de Izmir, enquanto o padre francês Pierre Brunissen foi esfaqueado no porto de Samsun, no Mar Negro;
- No dia 19 de janeiro de 2007, um proeminente cristão turco de origem armênia, Hrant Dink, foi assassinado em Istambul;
- No dia 18 de abril de 2007, três missionários cristãos que dirigiam uma pequena editora foram assassinados em Malatya;
- Em 2009, a imprensa turca publicou notícias sobre o "Plano Cage", um esquema preparado por ultranacionalistas em conjunto com membros das Forças Armadas para desestabilizar o Estado por meio de ataques contra cristãos, armênios, curdos, judeus e alevitas.
Nesse contexto, realmente faz sentido definir o assassinato de Padovese como um ato isolado? Ou seria mais correto dizer que, mesmo que ninguém pudesse prever o momento e o alvo precisos do próximo ataque, a Turquia havia permitido um clima perigoso se exasperasse?
Para ser justo, as autoridades turcas deram passos depois de 2007 para suavizar as polêmicas anticristãs na mídia e, segundo a Associação das Igrejas Protestantes da Turquia, a violência diminuiu. Seu relatório anual listou 19 ataques anticristãos em 2007 e 14 em 2008, mas apenas dois em 2009. O assassinato de Padovese, no entanto, sugere que a mudança do clima continua sendo um trabalho em andamento.
(Como nota de rodapé, o maior jornal de fala inglesa da Turquia, Today's Zaman, publicou uma fascinante coluna em meados de dezembro comparando a tépida resposta do Vaticano aos assassinatos de Santoro e Padovese com a agressiva abordagem protestante nos casos Dink e Malatya. Os protestantes reuniram uma altamente poderosa equipe de advogados para pressionar por uma investigação séria e trabalharam duro para manter o interesse da mídia. De acordo com o colunista Orhan Kemal Cengiz, houve, por contraste, "uma absoluta falta de pressão por parte do Vaticano". Ele atribui isso a um diagnóstico errado em Roma de que muita pressão poderia inflamar as tensões cristão-muçulmanas. Na verdade, diz Cengiz, os culpados são nacionalistas turcos extremistas).
Mito nº 4: Só é perseguição se os motivos forem religiosos
Analisando a lista da Fides de agentes de pastoral mortos em 2011, é tentador concluir que grande parte dessa violência realmente não é anticristã. Em muitos casos, parece ser mais uma questão de estar no lugar errado na hora errada.
Um padre colombiano, por exemplo, foi esfaqueado até a morte por um ladrão que tentou roubar seu celular; outro foi baleado por bandidos que estavam atrás de sua motocicleta. O mesmo pode ser dito sobre a Ir. Lukrecija Mamica, uma membro croata das Irmãs da Caridade, e do leigo voluntário italiano Francesco Bazzani, ambos assassinados no Burundi em novembro. Mamica foi morta durante um assalto à residência das irmãs. Os ladrões então sequestraram Bazzani e o mataram quando um impasse com a polícia deu errado.
Ou consideremos o que aconteceu no dia 11 de janeiro em Kirkuk, no Iraque, onde homens armados abriram fogo contra o palácio do arcebispo caldeu. A polícia sugeriu que foi um erro, e que os terroristas tinham a intenção de atacar a casa próxima de um membro turcomeno do Parlamento iraquiano. Felizmente, ninguém ficou ferido no interior da residência do arcebispo, mas, supondo-se que alguém tivesse sido, isso seria contado como violência anticristã?
Certamente, nenhum desses casos se encaixa na definição tradicional de martírio, que requer que alguém seja morto in odium fidei – por ódio à fé. Mesmo esse padrão, no entanto, está sendo estendido nos dias de hoje. O Papa João Paulo II acrescentou mártires mortos in odium ecclesiae – por ódio à Igreja –, e muitos teólogos acreditam que o martírio deveria incluir não apenas as mortes por ódio à fé, mas também o ódio a virtudes essenciais para a fé.
Em todo caso, os riscos atuais dificilmente se limitam aos clássicos casos de martírio, mas sim a uma grande variedade de circunstâncias em que os cristãos estão em perigo. Mesmo que não sejam atacados por motivos religiosos, as suas razões para estarem naquele lugar geralmente estão enraizadas em sua fé.
No Burundi, por exemplo, Mamica e Bazzani quase certamente não foram alvejados por serem cristãos. Com toda a probabilidade, seus assassinos simplesmente pensavam que uma residência de freiras tinha coisas que valiam a pena roubar e não estariam fortemente guardadas. Ainda assim, uma religiosa e um leigo voluntário da Europa obviamente sabiam que havia lugares muito mais seguros para estar do que no noroeste do Burundi, um epicentro do genocídio de 1994. Eles escolheram estar lá porque suas crenças religiosas os levaram a ir ao encontro das pessoas esquecidas e vulneráveis.
Da mesma forma, até agora, o arcebispo Louis Sako e os outros caldeus em Kirkuk, ambos clérigos e leigos, facilmente poderiam ter ingressado no êxodo dos cristãos do Iraque. Eles preferiram ficar, muito provavelmente porque acreditam na importância de um testemunho cristão, ou simplesmente porque não querem ver a sua Igreja extinta depois de 2.000 anos de história.
Na identificação de cristãos que precisam de ajuda, a única coisa que deveria importar é que eles estão na linha de fogo – e não o que está na cabeça de quem quer que seja que puxe o gatilho.
Mito nº 5: A perseguição anticristã é uma questão da direita
Dos cinco mitos aqui considerados, esse é sem dúvida o mais pernicioso. Se pudermos concordar sobre qualquer coisa neste mundo polarizado, essa coisa deveria ser que a perseguição de pessoas com base em suas crenças – quaisquer que sejam essas crenças – é intolerável.
A partir disso, a perseguição anticristã foi colocada pela primeira vez no mapa político norte-americano em meados da década de 1990 por uma constelação de ativistas e intelectuais conservadores, como Michael Horowitz, Nina Shea e Paul Marshall. Na The New York Times Magazine, em 1997, Jeffrey Goldberg chamou a recente preocupação com os cristãos perseguidos de "uma questão fabricada na região de Washington que produz a mais valiosa das commodities política: a questão polêmica".
Goldberg descreveu como a cruzada para defender os cristãos perseguidos coloca diversos grupos políticos locais importantes uns contra os outros.
- Grupos religiosos centrais versus católicos evangélicos e conservadores (o então secretário-geral do Conselho Nacional de Igrejas, Joan Brown Campbell, queixou-se em 1997 que o movimento sugeria um "cristianismo excessivamente poderoso");
- Conservadores sociais versus pró-grupos de negócios e pró-sistema dominante de política externa (a China tende a ser o ponto focal. Impomos sanções por causa do histórico da China em termos de liberdade religiosa ou não?);
- Grupo de direitos humanos tradicionais (Human Rights Watch, a ACLU [American Civil Liberties Union]) versus movimento baseados na fé.
Até certo ponto, essas divisões ainda existem. Pode-se acrescentar que, na era pós-11 de setembro, a violência anticristã por parte dos muçulmanos é um terrível grito de guerra para os falcões da direita norte-americana, o que pode ajudar a explicar por que alguns liberais continuam ariscos.
Tudo isso, no entanto, diz muito mais sobre a política norte-americana do que sobre a natureza da perseguição anticristã. Infelizmente, desenvolvemos uma cultura política que poderia transformar a figura da mãe e a torta de maçã em questões polêmicas também.
A verdade é que a perseguição contra os cristãos, ideologicamente falando, é uma iniciativa de oportunidades iguais.
Pensemos, por exemplo, nos famosos mártires do movimento da teologia da libertação, como o arcebispo Óscar Romero, ou nos seis jesuítas e duas mulheres assassinados em El Salvador em 1989. Há também o bispo guatemalteco Juan José Gerardi, espancado até a morte, em 1998, dois dias depois de divulgar um relatório sobre a guerra civil do seu país, que criticava fortemente o Exército e grupos paramilitares de direita. Mais recentemente, a irmã norte-americana Dorothy Stang, assassinada no Brasil em 2005 por defender os amazonenses pobres e indígenas; ou a irmã indiana Valsha John, morta no ano passado por defender os membros da subclasse tribal contra a expropriação de suas terras por empresas de mineração de carvão.
Defender os cristãos perseguidos, em outras palavras, dificilmente é um esforço que deve preocupar apenas a direita política e teológica. Delinear a perseguição anticristã como um jogo político não é apenas uma obscenidade, mas também factualmente impreciso.