Artigo de Felipe Milanez publicado na revista Rolling Stone nº 63 em dezembro de 2011, que merece ser lido para se ter uma visão de como o mundo secular percebe - negativamente - o trabalho missionário entre os indígenas:
O mercado de almas selvagens
Missionários cristãos investem pesado na evangelização dos índios brasileiros com métodos ortodoxos, investimento internacional e persistência messiânica
Jesus ressuscitou. Saiu do sepulcro e apareceu primeiro para Maria Madalena. Em seguida, ela anunciou aos que haviam estado com ele. Manifestou-se a dois que iam para o campo, e depois a outros. Finalmente, de acordo com o Evangelho segundo Marcos, capítulo 16, Jesus apareceu aos 11 assentados à mesa “e lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado”. Disparou então, segundo o livro sagrado dos cristãos, a mensagem determinante da “missão”, em versículos 15 e 16:
“E disse-lhes: ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.”
“Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.”
No versículo 17, ainda segundo Marcos, Jesus vai mais longe: “E estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome expulsarão os demônios, falarão novas línguas”.
Condenadas à danação de um pecado original estão as criaturas não batizadas, portanto, todas as culturas não cristãs. Aos crentes, foi dada a obrigação, na forma de uma missão, da evangelização universal: eles deveriam traduzir a Bíblia para todas as línguas. Tarefa arriscada nos “confins da Terra”, que viria a ser complementada, pelo versículo 18, com a proteção divina: “Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão”.
Outubro de 2011, Caldas Novas, interior de Goiás: em um hotel de águas termais, tendas estão dispostas como uma conferência comercial, ou como uma feira de negócios na qual empresas utilizam estandes para vender seus pacotes e produtos. “Judeus por Jesus”; “Curso de Evangelização de Árabes”; “Missão Novas Tribos do Brasil”; “Adote um Povo”. Índios, ciganos, quilombolas, pobres do sertão nordestino: no VI Congresso Brasileiro de Missões, todas as criaturas desprovidas possuem representantes que negociam suas almas.
Minha alma, ateia, é a única condenada que circula pelo local. “Experimenta uma vez”, diz um senhor, com sorriso maroto no rosto. “Sou careta”, brinco. Ele quer que eu experimente a religião dele, como se fosse uma cápsula de felicidade a ser engolida. “Experimenta, você não vai se arrepender. Você vai ser feliz.”
Desconverso, contando histórias de aventuras na Amazônia. “Já sei”, diz o pastor Thomas Gregory. “Precisamos de gente com coragem.” Ele me oferece um exemplar do livro O Contrabandista de Deus, com a seguinte dedicatória: “Por Jesus vale a pena gastar nossas vidas! Experimente!” Em seguida, me apresenta a um jovem destemido da missão “Portas Abertas: Servindo Cristãos Perseguidos”. “Estamos indo traficar Bíblias para a China em dezembro. Ano que vem, vamos levar até a Coreia do Norte”, o rapaz me relata, determinado, consciente dos riscos de antecipar o que acredita ser o “julgamento final” e negando qualquer tipo de medo. “Não. Jesus está comigo”, diz.
No encontro organizado pela Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), os índios são apenas uma parte de um universo pagão de almas condenadas. Parte pequena, porém cobiçada: de acordo com levantamento da própria AMTB, os índios são compreendidos como 616 mil indivíduos de 340 etnias (para a Funai são 220) e que falam 181 línguas. Ainda segundo os mesmos cálculos, no Brasil há 69 línguas sem a Bíblia traduzida, 182 etnias contam com presença missionária evangélica e 257 programas de evangelização estão em curso, coordenados por cerca de 15 agências missionárias de diferentes denominações evangélicas históricas, mas em sua maioria batista, associadas à AMTB.
De todas as almas selvagens existentes, as consideradas mais valiosas são as dos índios ditos “isolados”: elas representam o universo a ser conquistado e cuja alma adquire maior valor, econômico e moral, no mercado espiritual. O levantamento da AMTB indica que 147 etnias não possuem a presença missionária evangélica, e que 27 povos seriam considerados “isolados”. O principal desafio que consta no relatório “Indígenas do Brasil” são as “etnias remotas (com pouco ou nenhum contato externo)”, que somam 42 povos. A lista mais recente da Funai, a ser divulgada, aponta 84 referências onde podem existir povos indígenas sem contato. Nesses locais, geralmente áreas de difícil acesso, é proibida a entrada de qualquer indivíduo sem a autorização da Funai.
Os “índios isolados” são as comunidades indígenas que vivem de forma autônoma na floresta, evitam a aproximação com o universo ocidental e esse contato, se ocorrer, é eventual e conflituoso. A ocupação recente da Amazônia ocasionou os primeiros encontros com diversos povos, como os zo’é e suruwahá, que a Funai considera de “recente contato”. Eles recebem proteção especial em razão da vulnerabilidade física da população, suscetível a epidemias.
O principal objetivo dessas agências evangelizadoras é “alcançar” outras culturas com a leitura de sua forma de crença, daí o aspecto “trans” do tema “cultural” das religiões. “Precisamos de mais 500 novos missionários para pregar o Evangelho a todos os povos indígenas no Brasil”, conclama no microfone Ronaldo Lidório, um dos principais líderes desse movimento. Traduzindo: o objetivo é convencer os índios, assim como todas as pessoas do mundo, a se tornarem crentes – salvar as almas condenadas pelo pecado original.
Henrique terena é alto, tem cabelos longos e usa um charmoso cocar de penas azuis de arara. Falando com desenvoltura e retórica apurada, ele anda sempre próximo a Eli Tikuna, líder indígena que vem da margem do rio Solimões, já quase na fronteira com a Colômbia. Juntos, aguardam o chamado para pregar no salão lotado de brancos, curiosos para ouvir os tais “índios crentes”.
Grandes astros da conferência, os índios pastores formam o que os missionários evangélicos consideram ser a “terceira onda evangelizadora”. Primeiro, eram os estrangeiros que aportaram no Brasil com a Bíblia debaixo do braço (no século 19 e no pós-guerra); a segunda onda ocorreu por meio dos missionários brasileiros, com a institucionalização das missões estrangeiras no Brasil, ao longo da segunda metade do século passado; e hoje os próprios índios agem como missionários.
As almas indígenas são o objeto do alcance proselitista de um determinado grupo de evangélicos, principalmente os de denominação batista (conhecidos como “históricos”). O sistema de evangelização ocorre segundo regras capitalistas, com agências, igrejas e crentes financiadores. Por trás de tudo, há diversos interesses que se aliam com a conveniência exigida para a alma condenada ser alcançada – garimpeiros no Amapá, madeireiros e fazendeiros no Pará, seringueiros no Acre, o exército no Amazonas. Nessas alianças, domesticar os selvagens para servirem de mão de obra é o objetivo dos laicos. Já o alcance e a salvação das almas é a verdadeira missão religiosa.
Em 1991, a Fundação Nacional do Índio determinou a expulsão de todas as missões das áreas indígenas e rompeu os contratos que tinha com os missionários de prestação de saúde e educação para os índios. Por parte do governo, não havia o conhecimento exato do número de aldeias com presença missionária. Mas o então presidente da Funai, o sertanista Sidney Possuelo, conhecia de perto a atuação da New Tribes Mission (hoje, Missão Novas Tribos do Brasil) junto do povo zo’é, cujo primeiro contato ocorreu em 1986. Na época, a expedição contava com a presença de Edward Luz, que atualmente é o presidente da Novas Tribos do Brasil. Antropólogos afirmaram então que cerca de 30% da população índia pereceu devido a doenças levadas pelos missionários. Possuelo, que trabalhou junto aos zo’é, determinou a retirada dos missionários assim que assumiu a Funai. Na visão de Luz, que até hoje tenta retomar contato com os zo’é, a Funai “persegue” os missionários.
“Nós, como instituição, só temos a agradecer a essa perseguição. Porque quanto mais a perseguição vem, mais nós crescemos”, afirma Luz. “O Cristianismo sempre foi pautado por isso. O sangue dos mártires regava a semente daqueles que haviam de nascer. E no governo brasileiro isso foi a mesma coisa.”
Conheci Edward Luz no V Congresso Brasileiro de Missões, em 2008, em Águas de Lindoia (SP). Naquele momento, o drama da tribo dos índios suruwahá estava à tona: a Funai havia expulsado dali o grupo “Jovens com uma Missão” (Youth with a Mission, no original). Os missionários acusavam os índios de serem violentos assassinos de crianças e praticarem o infanticídio – era preciso a evangelização para salvá-los. A Funai culpa os missionários por uma leva de suicídios que chegou a atingir 10% da população local. Marcia Suzuki foi a missionária que se colocou como porta-voz do drama. “No Parque do Xingu também praticam o infanticídio, e dizem que não”, ela declarou na época. O tema do infanticídio foi levantado na mídia em torno de um filme de ficção, mas tratado como um “docudrama”, realizado pelo filho do fundador da Youth with a Mission, o cineasta David L. Cunningham. Em Hakani: A Survivor’s Story, índios suruwahá aparecem enterrando uma menina viva. O departamento da Funai que protege os suruwahá afirmou que os índios ficaram revoltados ao saber da história. Hakani, a tal criança índia, foi retirada da aldeia por Suzuki e hoje a acompanha em igrejas, na busca de recursos para a missão Atini. O drama de Hakani também serviu para divulgar um projeto de lei chamado Muwaji, que incriminaria funcionários públicos em caso de infanticídio e que legitimaria a presença de evangélicos em aldeias.
A bancada evangélica no Congresso Nacional, formada por cerca de 50 deputados, pouco se mobilizou. A maioria, pentecostal, é distante das denominações históricas, como os batistas. “Há evangélicos contra a evangelização dos índios, como os ecumênicos”, afirma Geter Borges, assessor parlamentar presente no Congresso Brasileiro de Missões. As divergências internas praticamente impediriam, diz ele, que a bancada mostrasse uma união sobre projetos – “não votam juntos, e não têm o peso e a força, por exemplo, dos ruralistas”, diz. Sobre a evangelização, Borges contextualiza: “Esse grupo da AMTB é que tem essa proposta de evangelizar os índios, que é proselitista. É a visão que se tem do Espírito Santo. Eu sou batista, mas creio que podemos ser salvos sem o batismo”.
A estratégia de utilizar os próprios índios como missionários foi definida no VI Congresso de Missões. E, para facilitar a realização do trabalho, eles farão uso de um dogma retórico: “O Estado não pode impedir um índio de encontrar um outro índio”, explica Luz. O objetivo das agências atualmente é capitalizar a maior quantidade de indígenas possível para se tornarem pastores. Para provocar uma reação pública, decidiram que irão solicitar, através dos índios kanamari, o ingresso na terra indígena Vale do Javari, onde está localizada a maior população de índios isolados remanescente do mundo. Caso a Funai negue a presença missionária, a estratégia prometida será acionar o Poder Judiciário contra o governo. “Metade dos povos indígenas não são aldeados. Um grande número frequenta as universidades. E a maioria fala: vou voltar para o meu povo e vou levar o evangelho pra eles. E contra essa força não há resistência”, conclama Luz.
O presidente da Novas Tribos insiste que o impedimento da entrada dos missionários nas aldeias tem cunho “ideológico”. “A Constituição não dá amparo para esse tipo de perseguição”, afirma Luz. “Nós temos o direito de pregar o evangelho para todo mundo. E toda pessoa tem o direito a aderir ou não. Vamos levar essa discussão às raias do Supremo.” Argumento-chave nesse debate é o que Luz chama de “direito da comunidade indígena de decidir o seu presente e seu futuro” – ou seja, de escolher sua religião. É o mesmo ponto levantado por alguns raros antropólogos que não se opõem aos missionários. “Os índios podem escolher seu destino”, declarou uma antropóloga evangélica que não quis ser identificada. “Agora, nem sempre os missionários são honestos nas opções que oferecem.”
“A motivação deles é ideológica: eles querem expandir a ideologia religiosa deles para todos os seres humanos do planeta”, rebate Márcio Meira, presidente da Funai, que alega que a Constituição Federal protege a liberdade de crença, assegurando a proteção aos locais de culto. Nesse caso, a Funai tem poder de vetar a entrada nas áreas habitadas por índios “isolados”, assim como dos povos de pouco contato: “Cabe ao Estado laico exercer o poder de proteção e impedir qualquer contato de missionários com índios isolados”.
“Alguns povos, como os zo’é, os yanomami, os suruwahá, possuem contato, mas não possuem elementos de conhecimento das outras religiões para tomar uma decisão. Temos que garantir seus espaços de liturgia”, prossegue Meira, afirmando ainda que a Fundação não intervém nos casos de povos com contato antigo com a sociedade envolvente. “A Funai tem a obrigação legal de respeitar a vontade dos índios de permanecerem isolados”, diz.
“Em 2 mil anos, a bíblia foi traduzida apenas para 500 línguas”, prega o pastor Ronaldo Lidório no grande salão do VI Congresso Brasileiro de Missões, com certo tom de indignação frente às ovelhas de seu rebanho. É a hora de provocar “um tsunami espiritual”, conforme reforça o pastor indígena Henrique Terena no mesmo salão principal. Todos parecem chocados com mais um dado “oficial” divulgado pela AMTB: “147 povos indígenas no Brasil não conhecem o Evangelho”.
O encontro das sociedades europeias com os índios na América aflorou entre os crentes a missão determinada pelo “ide” de Marcos. Pelo lado católico, a catequização foi praticada inicialmente na aliança da Companhia de Jesus, pelos jesuítas, com os estados colonizadores espanhol e português (rompida no século 18). As tentativas de conquista de holandeses e franceses foram acompanhadas de religiosos protestantes. Enquanto a famosa “Primeira Missa” católica foi celebrada em 26 de abril de 1500 pelo frade Henrique de Coimbra, o primeiro culto evangélico em terras brasileiras ocorreu mais de 50 anos depois, em 10 de março de 1557, no Rio de Janeiro, pelos huguenotes franceses. Poucos anos depois, Jacques Balleur foi enforcado por pregar a religião da Reforma junto aos índios tamoios.
Hoje, os católicos atendem sob a organização do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que prega, de forma oficial, o respeito às religiões indígenas. De acordo com essa leitura, o papel do Espírito Santo salvaria as almas, independentemente do batismo. “É a tese de São Tomás de Aquino. Mas alguns ainda praticam o proselitismo”, assume Paulo Suess, um dos principais teólogos do Cimi. “Nunca oficialmente. Nunca vão dizer isso abertamente em uma assembléia do Cimi. Mas na aldeia eles podem agir assim.” A última missão jesuíta em atividade no Brasil foi a Utiariti, no Mato Grosso, completamente destruída pelos índios nos anos 70. Alguns líderes indígenas, jovens na época, guardam más lembranças das atuações dos padres. “Forçavam o casamento interétnico”, recorda o índio pareci Daniel Cabixi. “A gente sofria muito.”
Com as revoluções sociais do pós-guerra, sobretudo por causa do Concílio Vaticano II, e a teologia da libertação que se desenvolveu em seguida, os católicos na América passaram a optar pelo princípio da “encarnação”, segundo manifesto escrito em Goiânia, em 1975: “Seguindo os passos de Cristo, optar seriamente, como pessoas e como igreja, por uma encarnação realista e comprometida com a vida dos povos indígenas, convivendo com eles, investigando, descobrindo e valorizando, adotando sua cultura e assumindo sua causa, com todas as consequências; superando as formas de etnocentrismo e colonialismo até o ponto de ser aceito como um deles”.
Em 1912, ocorreu a evangelização dos índios terenas, no atual Mato Grosso do Sul. Esse é o marco, entre os evangélicos, da primeira evangelização indígena no Brasil. E foi também entre os terenas que foi “plantada” a primeira igreja. Em julho de 2012, o Conselho Nacional dos Pastores e Líderes Indígenas (Conplei) prepara a comemoração do centenário desse primeiro batismo. “Vai ser um grande encontro”, promete o pastor Henrique Terena, que diz contar com a presença de indígenas evangélicos do Paraguai e da Bolívia. “Vamos receber cinco mil indígenas. E vamos criar o Conselho Mundial dos Pastores e Líderes Indígenas.” As inscrições para o evento custam de R$ 80 (índios) a R$ 200 (não índios).
Nesse verdadeiro mercado de almas que é o Congresso Brasileiro de Missões, até é possível “adotar” um povo. Em um dos estandes, a missionária explica: “Você assume esse povo, e deve orar por eles”. Além da oração, é sugerido também que sejam doados recursos para financiar o trabalho missionário. Valores não são mencionados, mas estima-se ser necessário cinco igrejas para sustentar o trabalho em um único povo. No palco, Eli Tikuna conta sobre o dia de glória que teve ao visitar uma igreja batista na Grande São Paulo: “Consegui R$ 10 mil em doações. Glória ao Pai!”
Na quinta edição do Congresso, em 2008, um empresário de São José dos Campos doou um avião modelo Caravan para a missão Asas do Socorro, que presta serviços de transporte aéreo para as agências missionárias e, segundo o comandante Rocindes Correa, conta já com 11 aeronaves. “Pregamos o evangelho integral, que cuida da alma, mas também da vida da comunidade”, diz Correa. Nesse intuito, a Asas do Socorro oferece também o transporte de médicos e dentistas evangélicos.
Segundo dados divulgados pela própria AMTB, a edição 2011 do Congresso Brasileiro de Missões custou por volta de US$ 40 mil e recebeu aproximadamente 500 pessoas (291 responderam a um questionário), sendo 40% batistas e mais da metade oriunda da região Sudeste. Um terço era de pastores, lideranças religiosas, e 98% dos presentes consideraram a programação “boa ou excelente”. A próxima edição, aliás, já tem data marcada: acontece em 2014.
E se jesus realmente retornar e for parar no meio dos índios? Dizem os crentes que a comunidade deverá estar preparada para recebê-lo – diferentemente do que aconteceu da primeira vez, quando ele nasceu em berço judaico durante a dominação romana e foi morto ainda jovem. Essa é a explicação sugerida pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que morreu em 1997, sobre o principal motivo que leva os missionários a “gastarem sua vida” em nome da evangelização dos índios na Amazônia.
Foi Ribeiro quem trouxe os missionários do Summer Institut of Linguistics (SIL) para o Brasil, na década de 50. Preocupado com o desaparecimento das línguas indígenas, o antropólogo imaginaria que, ao custo da tradução da Bíblia, ao menos as línguas seriam documentadas, em caso de desaparecimento de um povo. Escreveu ele no livro Confissões: “Serviço maior meu foi mandar uma linguista do Instituto Linguístico de Verão, com doutorado, conviver com eles e dedicar-se por quase um ano ao estudo do idioma ofaié. Assim, ao menos sua língua se salvou pelo registro escrito e sonoro para futuros estudiosos das falas humanas”.
Quando se dedicou a salvar as línguas indígenas, Ribeiro desconhecia as ligações do SIL com a poderosa família norte-americana Rockfeller, que procurava novas jazidas de petróleo, e com a direita norte-americana e agências de informações dos Estados Unidos, fatos mostrados no livro Thy Will Be Done, de Gerard Coilby e Charlotte Dennet. No Brasil, onde persiste o fantasma da “internacionalização da Amazônia”, essas ligações suspeitas fizeram crescer os temores de ações escusas dos missionários.
Se externamente há fantasmas da internacionalização, nas aldeias, os índios reclamam da interferência em suas culturas. Os missionários Manfred e Barbara Kern, da New Tribes, divulgaram que um dos líderes indígenas da tribo uru-eu-wau-wau, de Rondônia, teria cometido adultério. “Pelo que entendemos, ele é reincidente e já foi repreendido pelos outros líderes”, escreveram eles, em uma carta pública divulgada em 28 de junho. “Reze para o Senhor fazer um grande trabalho de restauração na sua vida e da sua esposa.” Os uru-eu formam um povo tupi e não são tradicionalmente monogâmicos, mas, de acordo com os missionários, estão “aprendendo a ser”.
A abordagem em relação ao adultério foi justamente o que chamou a atenção do líder indígena Davi Kopenawa Yanomami sobre a conduta suspeita de missionários. Ele afirma ter conhecido o Evangelho através da ação de membros da Novas Tribos, que estiveram presentes na aldeia yanomami Toototobi, e fez sua opção: “O missionário não é como garimpeiro. É outro político. Eles não invadiam a terra, mas a nossa cultura, a nossa tradição, o nosso conhecimento. Eles são outro pensamento para tirar o nosso conhecimento e depois colocar o conhecimento deles, a sabedoria deles, a religião deles. Isso é diferente. Eu, Davi, já fui crente. Junto com eles. Mas depois queria conhecer Jesus Cristo. E não deu certo. Um missionário não índio namorou uma yanomami. Daí não deu certo. Descobri que não é verdade. Aí eu não acreditei mais. São crentes falsos. E não acreditei mais”.
De fato, não é incomum as alianças estratégicas para a evangelização assumirem feições mais mundanas, muitas vezes contrárias aos direitos indígenas. Em um caso emblemático ocorrido em 1986, a Novas Tribos teria se unido a seringueiros que escravizavam índios no Acre, conforme relata o cacique yawanawa Biraci “Bira” Brasil.
Ainda jovem, Bira foi morar em Rio Branco (AC), onde percebeu que “nosso povo estava não apenas perdendo a língua, mas perdendo o nosso espírito. Nossa conexão espiritual com nós mesmos, com a natureza, com o nosso mundo, com os nossos ancestrais”. Decidiu, então, unir os jovens e expulsar os missionários, instalados na tribo por três décadas. “Convenceram todo mundo a ser crente. Botaram uma ameaça no nosso coração, dizendo que sem essa religião todo mundo iria para o inferno, que nós não teríamos salvação, não seríamos capaz de ser um povo feliz. Que nós vivíamos com o demônio. Que nossos rituais e nossas crenças eram coisas do demônio.”
“Eram racistas”, o cacique prossegue. “Não gostavam da gente, pareciam que tinham nojo de índio. Não deixavam índio andar no mesmo barco com eles. Não deixavam comer junto. Nos tratavam mal. Sem respeito. Principalmente os americanos. Eram muito arrogantes. A gente sofria muito. A gente tinha vergonha de ser a gente. A missão estava dizendo que a nossa cultura era coisa do demônio. Nossa ayahuasca, nossas cerimônias. Nós éramos proibidos, através da intimidação, de realizar nossos rituais. Do lado da missão estavam os seringalistas, seringueiros. Se aliavam com todo mundo. E a igreja fazia a gente aceitar ser dominado. Além da evangelização, dessa descaracterização cultural do nosso povo, ainda mantinham a presença dos não indígenas dentro da terra. Faziam a gente aceitar nossa condição de escravo.”
A expulsão dos missionários e dos seringueiros ocorreu em uma noite de 1986. Em carta publicada em 28 de fevereiro desse ano, os missionários Stephen e Corine relatam que na época os índios queriam “roubar seus pertences e queimar suas casas”. A Polícia Federal foi convocada, e Bira foi perseguido e acusado de ter se engajado com uma “organização de esquerda”.
Atualmente, Bira é referência espiritual na aldeia e há uma década organiza um dos maiores festivais indígenas do Brasil, o Yawa, quando recebe povos de outras etnias e visitantes ocidentais para celebrar a cultura e a espiritualidade yawanawa, com muito rapé e ayahuasca. Ele também viaja pelo mundo realizando rituais xamânicos tradicionais de seu povo. Aprendeu com os pajés Yawa e Tatá, que nunca deixaram de praticar os ritos, ainda que escondidos, durante a dominação da Missão Novas Tribos.
No que depender das agências evangelizadoras, porém, a luta está apenas começando. “A perseguição nos dá força. O sangue dos mártires regava as sementes daqueles que haviam de nascer”, reforça o missionário Edward Luz, prometendo jamais desistir de evangelizar o povo zo’é, de onde foi expulso pela Funai. “Nós vamos voltar para os zo’é. Não sei como. Mas vamos voltar. Nosso Deus é soberano. O homem pode espernear, mas no final vai ter um encontro com Deus. E, se não estiver preparado, vai sofrer.”
Luz prevê que, se o Estado tentar impedir a pregação da Bíblia nas aldeias, o fato poderia unir todas as denominações evangélicas, que são rivais entre si. “Se [o governo] proíbe pregar o evangelho, está proibindo a liberdade da adoração; proíbe o autor do evangelho, o senhor Jesus; e proibiu a Bíblia, proibiu o Deus criador”, diz. E desafia: “E nós partimos para um confronto”