Na esteira do centenário do começo da Primeira Guerra Mundial, tristemente relembrado ontem aqui, reproduzimos excelente artigo de Diego Viena, bem detalhado e abrangente, publicado no Valor Econômico de 24/01/14:
Rastros da guerra
Uma guerra iniciada há cem anos na Europa trouxe consequências até hoje expostas nas divisões que afetam o continente, apesar de décadas de esforços de integração e unificação. Mais do que sugerir paralelos com as dificuldades atuais da Europa, a "Grande Guerra" está sendo lembrada em analogias com um mundo em que o equilíbrio entre potências é frágil, a relação entre governos e suas populações está em xeque e pequenas disputas locais adquirem rapidamente um significado global.
É consenso, entre historiadores, que a Primeira Guerra Mundial marcou o verdadeiro início do século XX: o tempo da guerra total, da industrialização dos conflitos, das mortes contadas aos milhões, do ocaso da Europa e do triunfo dos Estados Unidos. Há divergências, porém. Enquanto cada país avança em suas iniciativas particulares de lembrar os próprios mortos entre 1914 e 1918, com poucas exceções, os esforços para fazer da efeméride um evento global, ou ao menos europeu, não frutificaram. Nem a Comissão Europeia, instituição que representa diretamente o longo e difícil processo de integração do continente, programou eventos que levem sua assinatura.
"A dificuldade de integração é real", diz o historiador Gerd Krumeich, da Universidade de Dusseldorf e do Instituto para a História do Tempo Presente, na França. "A Europa não tem como ficar unida e pacífica se não conseguir passar além dos acordos meramente econômicos e políticos. Também é indispensável que se dissemine o hábito de conhecer melhor a história comum e a mentalidade uns dos outros." Para Krumeich, não se deveria exigir dos alemães que tenham comemorações da Primeira Guerra só porque outras nações comemoram o armistício, em 11 de novembro. "Mas podemos pedir que os alemães entendam por que as outras nações celebram seus mortos: esses mortos têm a ver com a Alemanha, mesmo que os alemães tenham esquecido disso."
Segundo Krumeich, a Primeira Guerra foi tão apagada da memória coletiva alemã que os monumentos aos mortos estão "completamente mofados". Mas, pergunta o historiador, "seria muito pedir aos franceses para colocar uma placa no ossuário de Douaumont, onde 150 mil soldados desconhecidos estão enterrados, lembrando que pelo menos 70 mil deles são alemães?"
A chanceler alemã, Angela Merkel, mencionou brevemente a efeméride em seu discurso de ano-novo, lembrando que também se celebram em 2014 os 75 anos do início da Segunda Guerra Mundial e os 25 anos da queda do Muro de Berlim. Ela chamou atenção para o contraste entre esses três eventos e as eleições para o parlamento europeu, que ocorrerão em maio. A queda do muro, na definição da chanceler, marcou "o começo do fim da separação entre a Alemanha e a Europa". Mas ela também afirmou que, para a prosperidade de seu país, é indispensável um papel de liderança na União Europeia, mais especificamente, na superação da crise da zona do euro.
Tanto a moeda comum quanto a liderança alemã são fonte de desconfiança no continente. A crise tem causas econômicas, que aprofundam as divisões internas na Europa, mas a falta de coordenação na celebração do centenário mostra que ainda não existe uma identidade europeia em termos de história e perspectivas comuns. "Isso quer dizer que não existe um público europeu", afirma o historiador Oliver Janz, da Universidade Livre de Berlim e autor de um livro recém-lançado que, apesar de chamar-se "1914", trata da guerra inteira. "A história é essencialmente sobre identidades. Então, é preciso ampliar o esforço para organizar a história, a memória e as identidades em escala europeia, e não nacional. As rememorações do centenário da guerra deveriam fazer isso."
A memória da Primeira Guerra fomenta outros tipos de paralelos. A historiadora Margaret McMillan, da Universidade Oxford, autora de "Paz em Paris", argumenta que vários sinais apontam para semelhanças entre o mundo anterior a 1914 e o início do século XXI. A instabilidade na Síria, por exemplo, envolve interesses de três dos principais blocos de poder - Estados Unidos, Rússia e União Europeia. No ano passado, o uso de armas químicas naquele país - surgidas, como assinala Margaret, durante a Primeira Guerra Mundial - quase resultou em bombardeios americanos, contra a vontade dos russos. Na Ásia, uma China em rápida expansão econômica começa a testar seus músculos geopolíticos, entrando em rota de colisão com o Japão, aliado dos Estados Unidos.
Assim como na "belle époque" o antissemitismo era uma válvula de escape para qualquer problema doméstico importante, do ponto de vista da opinião pública, diz Margaret, a atualidade tem seu escapismo na forma da xenofobia de partidos de extrema-direita, como a Frente Nacional na França e o British National Party (BNP) no Reino Unido, ambos em expansão paulatina nas últimas décadas.
Em termos internacionais, a ideia de que o comércio produz uma interdependência que afasta o risco de uma guerra de larga escala já não era novidade em 1914. Margaret McMillan cita o livro "A Grande Ilusão", escrito em 1909 pelo jornalista Norman Angell, como argumento da época para a impossibilidade de um conflito entre as grandes potências: o Reino Unido e a Alemanha eram os principais parceiros comerciais um do outro naquele tempo, assim como, hoje, os destinos das duas maiores economias, Estados Unidos e China, estão intimamente interligados.
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O casal imperial a minutos de morrerem: flores e sorrisos antes da catástrofe. |
"Um paralelo é digno de nota: o caráter explosivo do terrorismo internacional", afirma o historiador americano Jay Winter, da Universidade Yale e autor dos livros "1914-1918: The Great War and the Shaping of the 20th Century" (A grande guerra e a formação do século XX) e "Remembering War: The Great War Between History and Memory in the 20th Century" (Relembrando a guerra: a Grande Guerra entre história e memória no século XX). O conflito, que deixou mais de dez milhões de mortos e redesenhou o cenário político internacional, começou após o assassinato do herdeiro do trono austríaco, Francisco Ferdinando e sua mulher, Sofia Chotek, por um estudante sérvio ligado ao grupo terrorista Mão Negra, contrário à presença do arquiduque na capital da Bósnia-Herzegóvina, em 1914. Em resposta, o império austro-húngaro declarou guerra à Sérvia. "A guerra foi iniciada pelas respostas austro-alemã e russa ao ataque terrorista na Bósnia. O caminho para a paz no Oriente Médio foi irreversivelmente alterado pelo assassinato de Yitzhak Rabin [primeiro-ministro de Israel, de 1992 a 1995] por um terrorista judeu. Os ecos são evidentes", afirma Winter.
A voz dissonante é a de Krumeich. "Essas comparações não me convencem, porque hoje conhecemos a capacidade de destruição das máquinas militares. Em 1914, isso não acontecia. Também sabemos quais são as forças e os limites de uma economia globalizada: não somos mais obcecados por abrir novos mercados como um imperativo que envolve a vida e a morte das nações. É muito diferente." Krumeich lançou no fim do ano passado o livro "Juli 1914: Eine Bilanz" (Julho de 1914: um balanço).
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Imprensa americana anuncia guerra contra a Alemanha,
acrescentando que Cuba e Brasil podiam se aliar a eles. |
As analogias não dão o tom das celebrações que se preparam. Os principais projetos europeus de rememoração do conflito iniciado em 28 de julho de 1914 têm foco semelhante. Buscam trazer à tona as memórias dos combatentes e das populações envolvidas, mais do que celebrar temas nacionais ou militares. No Reino Unido, os Arquivos Nacionais prometem colocar em livre acesso na internet 1,5 milhão de páginas de diários de guerra escritos por soldados. Na França, uma Comissão do Centenário foi criada para receber projetos de eventos de cultivo da memória da guerra, com consultoria de especialistas de vários países. Foram selecionados mais de 2000 projetos. Na Alemanha, a Associação Popular Alemã de Manutenção de Sepulturas de Guerra colocou no ar uma página que agrega todos os eventos e exposições que relembram os mortos do conflito.
Segundo Winter, que é consultor da comissão francesa, os eventos relacionados ao centenário devem caracterizar-se por uma linha pacifista, "honrando os mortos sem glorificar a guerra", o que seria "como comemorar a peste bubônica do século XIV". "Se há uma mensagem política, é a de que, para entender a importância da integração europeia, é preciso voltar a esse momento espetacular de desintegração da Europa, em 1914."
O mais ambicioso projeto de rememoração do conflito é conduzido pela Biblioteca Europeana, instituição continental de documentação digital, que desde o ano passado recolhe e digitaliza as lembranças e documentos de particulares relacionados ao dia a dia das trincheiras. A França, onde ocorreu grande parte dos combates na frente ocidental, é o país onde essa coleta mais avançou, encabeçada pelos Arquivos Nacionais. Há duas semanas, uma das organizadoras do projeto na França, Catherine Dhérent, comemorou a descoberta de um diário mantido por um soldado desconhecido, com anotações sobre a localização e atividades de sua unidade em cada etapa da guerra. Chamou a atenção da equipe de digitalização o fato de que o próprio soldado censurou passagens que não eram factuais: riscou, rasgou ou cortou todas as partes em que deixava sua opinião.
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Cena insólita da Primeira Guerra:
cavalaria contra força aérea. |
Na Universidade Livre de Berlim, Oliver Janz coordena um projeto de memória da Primeira Guerra com maior abrangência. A Enciclopédia Internacional 1914-1918 on-line" tem como objetivo realçar o caráter mundial de uma guerra que começou como um conflito localizado nos Bálcãs, entre uma Sérvia que ambicionava se tornar uma potência local e um império austro-húngaro em franca decadência, mas rapidamente se transformou em guerra total na Europa e, ao terminar, tinha envolvido os cinco continentes. Com a participação de 86 editores e cerca de 900 pesquisadores, a enciclopédia pretende resgatar o sentido do conflito em todas as frentes de batalha.
"É uma perspectiva muito eurocêntrica considerar que a guerra aconteceu entre agosto de 1914 e novembro de 1918", diz Janz. "No Leste Europeu, por exemplo, a guerra continuou por vários anos, com a guerra civil na Rússia e na Turquia, o confronto entre a Grécia e a Turquia, a expulsão dos gregos da Anatólia e assim por diante."
A Enciclopédia será lançada em 8 de outubro, na sede do Conselho das Regiões da Europa, em Bruxelas. Segundo Janz, a escolha do local visa realçar o objetivo de superar as perspectivas excessivamente nacionais com que a Primeira Guerra é encarada no continente europeu. Janz lembra também que, do ponto de vista de vários países, a Primeira Guerra foi a amplificação de disputas armadas que já vinham acontecendo. Em 1912 e 1913, houve guerras nos Bálcãs, envolvendo a Sérvia, a Bulgária, a Romênia e o império otomano. A Itália, em 1911, aproveitou-se da derrocada dos otomanos para conquistar a Líbia, em ataque não provocado, graças ao qual sérvios, russos, alemães, ingleses e franceses enxergaram suas próprias possibilidades de acesso aos territórios dominados pelo antigo império muçulmano. Entre esses territórios estão Iraque, Síria e Palestina, que até hoje sofrem de instabilidade geopolítica.
O Japão, que se beneficiou da desintegração do pequeno império colonial alemão em 1919, vinha exercitando sua musculatura militar desde 1895, quando venceu a China, e principalmente 1905, quando derrotou a Rússia. Foi a primeira vez, desde que os otomanos deixaram de expandir seu território, que uma potência europeia foi derrotada por um país não europeu em uma guerra de larga escala. A guerra russo-japonesa de 1905 foi crucial para que os russos concentrassem suas energias em perseguir interesses no lado europeu, contra os otomanos e, principalmente, os austríacos.
Mesmo quando olhada apenas nas duas frentes europeias e no período agosto de 1914-novembro de 1918, vê-se que o conflito provocou uma transformação profunda na maneira como se faziam as guerras, no seu sentido econômico e no impacto sobre populações civis. Por isso, vários historiadores consideram 1914 o verdadeiro início do século XX. Estendida até a exaustão financeira das partes envolvidas, a guerra foi em grande parte decidida com a entrada, no lado aliado, de uma potência com recursos quase ilimitados e uma economia que até então só tinha lucrado com o conflito na Europa: os EUA.
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Kaiser Guilherme II e Tzar Nicolau II,
os primos antes da guerra. O primeiro
perderia o trono, o segundo, a vida. |
"A derrota da Rússia no inverno de 1917 deu à Alemanha uma grande oportunidade de transferir suas forças para a frente ocidental, mas, a essa altura, a guerra de submarinos conduzida pelos alemães tinha levado os Estados Unidos para a guerra", diz o economista Mark Harrison, da Universidade de Warwick e um dos autores de "The Economics of World War One" (A economia da Primeira Guerra Mundial), livro que examina detidamente a condição econômica de cada país beligerante. "Com a Rússia, os aliados tinham perdido a mais fraca das grandes potências. Com os Estados Unidos, receberam o reforço do mais rico de todos."
O ano de 1914 marca o encerramento de uma era de liberalismo na economia e expansão do comércio e das finanças internacionais, migração em massa com liberdade e integração dos mercados de capitais. "Foram necessárias décadas para reverter o impacto negativo da Primeira Guerra na globalização", diz Harrison. Contrariando a célebre tese de Lênin em "Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo", de que a guerra era consequência de disputas econômicas entre grandes blocos de capital, Harrison afirma que, para "a maior parte dos interesses comerciais e econômicos, era pouquíssima a expectativa de lucro com a guerra, mesmo na Alemanha".
Segundo o economista, em quase todos os países envolvidos, o interesse em entrar em guerra estava restrito a uma pequena elite militar e política. As sociedades civis e as elites econômicas preferiam a prosperidade dos tempos de paz. Na Alemanha, o Partido Social-Democrata, o mais representado no parlamento e que aprovaria a emissão de bônus de guerra, manifestou-se contra a escalada armamentista diversas vezes. "O que há de interessante, e um tanto deprimente, é ver como essas pequenas elites conseguiram influenciar o curso dos acontecimentos."
Entre os lançamentos que se anteciparam às celebrações do centenário, tentando explicar precisamente a questão levantada por Harrison, um dos mais traduzidos e discutidos é "The Sleepwalkers" (Os sonâmbulos), do historiador australiano Christopher Clark, da Universidade Cambridge. O livro se concentra na "crise de julho", que se seguiu ao assassinato do herdeiro austro-húngaro Francisco Ferdinand e sua mulher em Sarajevo, em 28 de junho de 1914. Em mais de 600 páginas, Clark descreve os meandros confusos das relações entre as potências do continente no fim da "belle époque", mas também as divisões internas de cada país e o modo de pensamento tradicional e belicoso que motivou os principais artífices da guerra.
No fim do relato, a conhecida tese da responsabilidade alemã pelo conflito aparece bastante mitigada, a não ser pelos blefes e ultimatos lançados ao longo da crise de julho. O expansionismo da Sérvia, o orgulho ferido austro-húngaro, a estratégia russa de assegurar sua predominância na área do decadente império turco, o interesse de autoafirmação da Itália, a perseverança francesa em dar o troco pela guerra perdida contra a Alemanha em 1870 e a arrogância do regime britânico, são aspectos que ganham realce na narrativa de Clark, em paralelo ao pânico de que eram tomados os estrategistas de Berlim, à medida que a aliança de vizinhos hostis ao cáiser crescia em poderio e importância.
O historiador inglês Max Hastings, autor de "Catastrophe: Europe Goes to War, 1914" (Catástrofe: a Europa entra em guerra, 1914), chama atenção para o fato de que a política interna alemã pode ter influenciado as lideranças do país a subir o tom do militarismo. A maioria social-democrata no parlamento alemão, além de hostil ao militarismo, também se empenhava em reduzir os poderes da monarquia. Enquanto isso, afirma Hastings, a Alemanha exibia vantagens em relação aos vizinhos em todos os indicadores econômicos, mas a mentalidade imperial não conseguia reconhecer outra forma de poder que não o número de soldados.
Para Harrison, a difícil relação entre o pensamento político do século XIX e a racionalidade econômica explica em grande medida o interesse equivocado da Alemanha por entrar em guerra. "Naquele tempo, ninguém estava calculando o PIB e os líderes alemães não tinham a menor ideia do que pensariam os historiadores econômicos cem anos mais tarde. Eles raciocinavam em termos de equilíbrio militar e, nesse campo, o que podiam ver era uma aliança anti-alemã crescente." O que a história econômica mostra, e Harrison destaca, "é que a Alemanha poderia perfeitamente ter prosperado sem guerra. Mas não seria a Alemanha que existia na cabeça da elite prussiana: conservadora, aristocrática e militarista". O historiador pergunta o que Otto von Bismarck, chanceler do império alemão, ou o cáiser teriam pensado da Alemanha atual, próspera, liberal, democrática, vivendo em harmonia com seus vizinhos, apesar da perda da Alsácia e da Prússia Oriental. "Provavelmente, não gostariam muito", conclui.
Krumeich elogia o livro de Clark, mas manifesta desconforto com o que lhe parece uma diminuição excessiva da responsabilidade alemã. Foi o regime do cáiser, afinal, que deu o "cheque em branco" à Áustria para atacar a Sérvia - depois que o império dos Habsburgos impôs exigências deliberadamente inviáveis ao governo de Belgrado, na sequência de eventos que começou com o assassinato de Francisco Ferdinando em Sarajevo. Também foi a Alemanha que deu um ultimato à Rússia e, mais tarde, à França, para não se envolverem no conflito que se iniciava. Por fim, foram os alemães que violaram a neutralidade da Bélgica e a invadiram no caminho para a França, provocando a entrada do Reino Unido na guerra.
Ainda assim, Krumeich coloca a questão da responsabilidade pela guerra em outros termos. Tanto os alemães quanto os outros países que, nos anos anteriores, expandiam e equipavam seus exércitos em ritmo acelerado têm responsabilidade por atirar a Europa e o mundo no conflito. Mas os diplomatas e líderes políticos que trabalhavam pela eclosão do conflito não imaginavam que a guerra se tornasse tão prolongada e assumisse dimensões de verdadeira catástrofe. Pensavam que o conflito, ganhasse quem ganhasse, seria curto. Uma guerra de tamanhas proporções era algo que sequer podiam conceber. "A guerra poderia ter sido evitada, se os líderes das grandes potências pudessem imaginar o que seriam as batalhas de Verdun e do Somme" [que, em 1916, mataram, juntas, cerca de 1,4 milhão de soldados], conclui Krumeich.
Janz observa que outros temas importantes são deixados de lado, enquanto a questão da responsabilidade pelo início da guerra continua sendo citada em primeiro lugar até hoje, quando o público começa a se interessar pelo tema. O primeiro fato negligenciado é que um conflito localizado se tornou global e afetou até mesmo países que permaneceram neutros. "Além disso, precisamos encarar essa tragédia como um alerta de que não se pode nunca considerar que a paz está garantida", afirma o historiador. "Um conflito localizado em alguma região instável pode levar à ruína todo o sistema de equilíbrio global. Seria uma ilusão pensar que isso deixou de ser verdade."
Os nomes pelos quais a Primeira Guerra é chamada, cem anos mais tarde, nos países envolvidos revelam a marca que deixou na consciência dos povos. A "Urkatastrophe", catástrofe originária dos alemães, é também a "Great War" dos britânicos ou "Grande Guerre" dos franceses. É a origem da identidade nacional para australianos, neozelandeses e outros povos que emergiram do colonialismo graças à participação no conflito. A resposta rápida e extensa à convocação por contribuições pessoais, na França e na Inglaterra, sobretudo, é uma demonstração, segundo Winter, de que "a Primeira Guerra foi o momento em que a história global e a história pessoal se tornaram uma coisa só, e nunca mais se separaram".
O foco das celebrações em relatos de soldados e histórias de particulares reflete também uma novidade nefasta introduzida pela Primeira Guerra Mundial, que se tornaria um espectro recorrente no século XX: os massacres e deslocamentos forçados de civis. Já nos primeiros dias da guerra, na futura Iugoslávia, ocorreram expurgos de sérvios. Na Bélgica, moradores suspeitos de sabotar as linhas de comunicação alemãs foram executados. Na Rússia, populações de origem alemã foram deslocadas e houve pogroms em comunidades judaicas. O episódio mais sangrento ocorreu no império turco-otomano. O governo acusou a população armênia de colaborar com as tropas russas e passou a considerar cada armênio um inimigo. O resultado foi o genocídio armênio, que vitimou um número estimado em até 1,5 milhão de civis. Até hoje, o governo turco nega a ocorrência do episódio - negação que é um dos entraves à entrada da Turquia na União Europeia.
Quando foi assinado o Tratado de Versalhes, em 1919, considerado o documento que encerrou a guerra, o mundo estava profundamente transformado: seu centro cultural e econômico, a Europa, sede dos grandes impérios coloniais que dominaram o século anterior, estava moralmente humilhado: deixara de ser o exemplo quase único de modernização possível. Regiões até então periféricas, como o Japão e a América Latina, puderam passar a procurar seus modelos de modernização. "Foi o começo de uma era de nacionalismo profundo, tanto em política quanto nas artes", afirma Janz. Movimentos modernistas, como o brasileiro de 1922, têm entre suas raízes, segundo o historiador, um esforço de repensar a condição nacional depois do trauma da Primeira Guerra.
Quatro dinastias centrais para a história dos séculos anteriores haviam sido removidas. Os Hohenzollers alemães e os Habsburgos austro-húngaros haviam sido expulsos e viviam no exílio. No lugar do antigo império turco-otomano, que em 1453 havia derrotado o império bizantino, a jovem república turca era reformada sob o comando de Mustafa Kemal Atatürk. Nicolau II, na Rússia, mais do que removido, havia sido morto, com toda sua família. O novo poder bolchevique ainda deveria enfrentar uma longa e sangrenta guerra civil antes de tornar-se a União Soviética e controlar um enorme território, até a queda do Muro de Berlim, em 1989.
Na Alemanha, as revoluções de 1918, que forçaram o fim da guerra, também quase resultaram em socialismo. Mas o resultado mais palpável foi o ressentimento disseminado pelo país como resultado dos termos draconianos do tratado que encerrou o conflito: estava instalado o ovo da serpente do qual sairia o nazismo.