Artigo publicado no IHU:
O ateísmo religioso de Ronald Dworkin
O último livro do filósofo Ronald Dworkin (1913-2013) foi publicado na Itália pela editora Il Mulino, com o título Religione senza Dio. Publicamos aqui o comentário do cientista político italiano Sebastiano Maffettone, professor da Libera Università Internazionale degli Studi Sociali Guido Carli de Roma.
O artigo foi publicado no blog Sperare per Tutti, 25-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Correndo o risco de cansar os meus 25 leitores, assinalo o lançamento do livro póstumo de Ronald Dworkin, Religion without God. Eu já tinha falado a respeito dele antes que o livro saísse, por ocasião da publicação de um artigo de Dworkin sobre o mesmo tema.
O lançamento do livro, porém, permite uma melhor exposição das ideias do autor e, acima de tudo, as apresenta em um marco geral mais claro. O principal problema discutido continua sendo o "ateísmo religioso". A tese central defende que a religião é mais profunda e importante do que Deus.
A religião de que fala Dworkin corresponde kantianamente à ética. Não qualquer tipo de ética, contudo, serve para essa tarefa. Deve-se tratar de uma ética baseada na ideia de valor objetivo. O valor, nessa ótica, permeia o universo e nos leva a pensar que a vida humana tem um sentido, e o mundo, uma ordem.
Segue-se daí que a divisão clássica entre pessoas religiosas e não religiosas é grosseira demais. Seria melhor dividi-las em crentes e não crentes, em que os crentes também incluem aqueles que compartilham de uma ética baseada no valor objetivo. Estes podem muito bem não acreditar em um Deus pessoal como o da Capela Sistina, mas acreditam em uma espécie de força espiritual que permeia a nós e ao mundo.
Depois de um primeiro capítulo introdutório, em que se apresenta a tese principal com os seus adiantamentos na literatura e na ciência, há três capítulos: o primeiro, dedicado ao universo, à física e ao sublime; o segundo, à liberdade religiosa; o terceiro, à morte e à imortalidade.
A tese central do capítulo introdutório afirma que as religiões teístas – como judaísmo, cristianismo e Islã – sempre têm dois aspectos, um científico e um valorial. A parte científica refere-se ao nascimento do universo e à origem da vida. A parte valorial nos diz como deveríamos viver e por quê. Dworkin argumenta – seguindo Hume – que a parte científica de uma religião não pode fundar a valorial, e que alguns ateus e os religiosos podem compartilhar a parte valorial.
Desse ponto de vista, o livro é mais uma crítica ao ateísmo militante – o que segue o estilo de um Dawkins, para que nos entendamos – do que à religiosidade teísta.
O segundo capítulo busca uma explicação teórica, ligada à física – o livro tem origem nas Einstein Lecturas, proferidas por Dworkin em Berna, em dezembro de 2011 –, da beleza do universo, do sublime que vemos no fundo da pesquisa. Depois de um virtuoso excursus entre arte e física teórica, Dworkin chega a defender que o sublime consiste na inevitabilidade do que acontece.
O terceiro capítulo trata da liberdade religiosa, dizendo que, mesmo do ponto de vista legal, os ateus crentes devem ser assimilados aos religiosos.
O último capítulo, sobre morte e imortalidade, tem um caráter especial se considerarmos que Dworkin o escreveu durante um período em que a leucemia que o levaria à morte, em fevereiro de 2013, se agravava. Não há a necessidade de um deus pessoal – sugere Dworkin – para dar um sentido a vida após a morte. Basta que acreditemos realmente na vida e no valor objetivo da nossa experiência, comportando-nos de uma maneira coerente com isso.
Dworkin certamente era um grande estudioso, mas não um especialista em teologia. Pessoalmente, sou fascinado pela sua tese central sobre o valor e acredito com convicção que ser ateu não envolve ceticismo moral. Espero também que alguns teólogos de valia levem a sério a sua tese e a discutam.