sábado, 5 de julho de 2014

Quando um lama morre no Brasil e é cremado no Nepal


Artigo de Ricardo Anderáos para o Brasil Post:

Da morte à vida: cremação e reencarnação no Himalaia

Na décima terceira Lua após sua morte no Brasil, o lama tibetano Chagdud Rinpoche foi cremado no Nepal. Eu participei do retiro de Yoga da Morte durante o qual ele faleceu em Três Coroas, no Rio Grande do Sul. E não hesitei em cruzar o mundo para fazer parte da cerimônia de cremação que aconteceu ao ar livre, nas encostas do Himalaia. Lá, no altar do templo localizado defronte à pira funerária em forma de estupa, seu cadáver coberto com vestes rituais permanecia sentado em posição de meditação, exatamente como estava quando seu coração parou de bater.

Quando o Rinpoche morreu exatamente? E quem é o garoto que foi identificado alguns anos depois como sua reencarnação? As perguntas da nossa mente racional ficam em segundo plano face a tudo que vivenciei nesse processo. Continuo com minha estratégia de suspensão da descrença: o que acredito ou deixo de acreditar perde importância diante dos ganhos que a meditação me dá no meu relacionamento comigo mesmo e com todos ao meu redor. Numa palavra: Bodhichitta.

Ficamos hospedados em um monastério em Boudanath, nos arredores de Kathmandu, ao lado da gigantesca estupa que é um dos templos budistas mais sagrados do mundo. À volta desse enorme monumento branco em forma de disco, do tamanho de um estádio, milhares de pessoas circulam, rezam e fazem prostrações incessantemente. Nos seis dias seguintes nossa rotina se repete: liderados pela lama Tsering Everest acordamos antes do amanhecer, viajamos duas horas de ônibus numa estradinha assustadora que serpenteia até o alto das montanhas, chegamos ao templo e praticamos meditação durante todo o dia aos pés do kudun do Rinpoche. No fim do dia voltamos a Boudanath, circumbulamos a grande estupa algumas vezes recitando mantras, jantamos e despencamos na cama.

Meditar é uma tarefa às vezes fácil, às vezes dificílima. Mas nunca antes nem depois daqueles dias consegui tamanha clareza e profundidade em minha prática. Não sou uma pessoa dada ao misticismo, e resisto a aceitar explicações mágicas para as coisas. Mas sou obrigado a confessar que meditar perto do corpo do Rinpoche, tanto dentro quanto fora daquele templo, com temperaturas próximas de zero, foi uma experiência transcendental. Ainda hoje, passados mais de dez anos, me alimento das lembranças e insights daqueles dias quando enfrento dificuldade para relaxar a mente e meditar. Depois de seis dias de purificação e meditação, chegou o grande momento para cerca de 300 pessoas que saíram de várias partes do mundo para participar da cremação. Alguns vieram do Tibete, cruzando os Himalaias, enfrentando a neve e fugindo da polícia de fronteira chinesa para estar ali. Muitos vieram da Índia, do Butão e de várias partes do Nepal. Outros tantos eram alunos dos EUA e do Brasil, países onde o incansável Chagdud Rinpoche havia construído redes com dezenas de templos e centros de prática.

Quatro lamas ficaram ao redor da estupa crematória, marcando os quatro pontos cardeais. Ao lado de cada um deles, monjes e praticantes avançados empunhavam instrumentos musicais, sinos, vajras e outros objetos de prática. Os praticantes mais juniores, como era o meu caso, completavam o círculo. A estupa foi totalmente recheada com flores, ervas aromáticas e madeira. Na base, uma grande mandala pintada em pergaminho também demarcava os pontos cardeais.

O corpo do Rinpoche foi finalmente retirado do altar, colocado em uma liteira e levado em procissão ao redor da estupa. Por fim, foi depositado dentro da pira funerária, acima das ervas e da madeira. Todos sentamos e meditamos longamente, até que os quatro lamas começaram a conduzir a elaborada cerimônia. Depois de muitos mantras e cânticos, cada um enviou seu emissário com o fogo que foi colocado na base da estupa. Em pouco tempo as labaredas começaram a crepitar. Uma densa fumaça tomou conta do ambiente e subir ao céu, obscurecendo a luz do Sol.

O aroma que nos envolveu é inesquecível. Nunca me senti tão só e simultaneamente tão integrado ao universo. Os insights se sucediam de maneira ao mesmo tempo vigorosa e calma. Era claro que eu estava vivendo um dos momentos-chave de minha vida. O nascimento de meus filhos, a morte de meu pai e algumas imagens que povoam minha mente desde a mais tenra infância passavam diante de meus olhos. Nunca tão aqui, nunca tão agora...

Não tenho mais palavras. Deixo as imagens mais abaixo falarem por si:


Cerca de 4 anos depois daquele inesquecível 8 de dezembro de 2003, soubemos que o yangsi de Chagdud Rinpoche - sua reencarnação em uma criança - foi identificada no Tibete. Os quatro lamas que conduziram sua cremação haviam, finalmente, concluído a última etapa do misterioso ritual. Ganhamos uma foto do menino, mas nenhuma outra informação foi fornecida, como forma de proteção da criança. Em 3 de agosto desse mesmo ano, o decreto número 5 do Escritório Governamental para Assuntos Religiosos do Governo da China no Tibete tornou obrigatório o cadastramento junto ao governo de todas as crianças reconhecidas como reencarnações de lamas tibetanos, sob pena de acusação de fraude e prisão.



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