Crônica de Mário Magalhães para o UOL:
Elas também são filhas de Deus
Na missa das seis horas do domingo, quando a noite caíra sobre a Baixada Fluminense, Sabrina rezou a Ave-Maria e o Pai Nosso numa igreja local. Como não fez a primeira comunhão, embora tenha sido batizada, a moça de 25 anos não comungou nem se confessou.
Já na madrugada de hoje, segunda-feira, a universitária aluna de Letras perambula por Copacabana, a poucas centenas de metros do palco de onde o papa Francisco abençoará os fiéis na sexta. Com área de 3.115 metros quadrados e oito metros acima da areia da praia, o tablado se colore com o azul das luzes artificiais, que só não brilham mais porque a lua cheia ilumina generosamente a semana que começa.
Mais perto ainda de Sabrina, a menos de cem metros, ergue-se a décima estação da Via-Sacra que será encenada diante do papa e uma multidão de católicos e curiosos. Ainda mais pertinho, na mesma calçada, está fechada a loja de souvenires da Jornada Mundial da Juventude.
Devota de Santo Antônio, de quem espera de presente um casamento para toda a vida, a exuberante mulata Sabrina não serpenteia entre as mesas do Bar Balcony atrás de marido ou de graças divinas. Garota de programa, ela procura um cliente.
Foi para o Balcony que migrou parte das mulheres de vida árdua depois que o Estado do Rio liquidou a Help, em janeiro de 2010. Templo da prostituição na zona sul carioca, a boate dará lugar à nova sede do Museu da Imagem e do Som. “Vamos recuperar uma área degradada da cidade”, anunciou na época o governador Sérgio Cabral, com dicção puritana.
Além do Balcony, com suas mesas e cadeiras espalhadas pela calçada da avenida Atlântica, dois estabelecimentos vizinhos atraem clientela com cacife para desembolsar centenas de reais por uma horinha de saliência. A Dolce Vita Disco promete: “Venha curtir uma noite inesquecível no melhor ponto de Copacabana”. O Kalabria Club fulmina eufemismos: “Suas noites com mais prazer”.
As três casas situam-se ou são grudadas à praça do Lido, escancarada para o mar. Ali fica a churrascaria Carretão, mas, com o perdão da vulgaridade, são outras as carnes que seduzem as legiões de turistas que acorrem até lá. Moradores dos edifícios protestam contra a gritaria das brigas noite adentro que lhes perturbam o sono. Sem contar a assuada decorrente das batidas policiais em busca de menores de idade e drogas ilícitas.
O Balcony não descansa: está aberto 24 horas por dia. O “breakfast buffet”, com panquecas, xaropes, bacon, ovos mexidos e outras comidas do gosto de estrangeiros, inicia às quatro horas da manhã e termina às dez.
Sexo ecumênico
“Sei que vivo em pecado”, murmura a mineira Mel, sobre saltos arranha-céu, ao lado do bar. Evangélica, ela imagina que seria feliz se vivesse como freira católica. Na virada do sábado para o domingo, quando se deitou com um angolano, um chinês e um paulista, um de cada vez, embolsou R$ 750.
Nos seus tempos de atendente de telemarketing, amargava um salário mínimo mensal. O marido, que acalenta gays em uma sauna, fatura R$ 70 a cada 15 minutos de ereção. Ela tem 20 anos, ele 22.
“Se o papa passar e olhar para mim, eu vou gritar ‘come on’”, brinca Mel, estampando o sorriso enfeitado por aparelhos nos dentes e fazendo com um dedo indicador o sinal de quem chama Chico para conhecê-la melhor.
Duas décadas atrás, outra evangélica labutava nas madrugadas do Lido, antes mesmo do ocaso da Help. “Cheguei a sair com o primeiro-ministro de certo país”, testemunhou Wilma Ribeiro em livro. Hoje a antiga prostituta é pastora da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte.
O pastor Marcos Feliciano, igualmente evangélico, foi filmado pregando que os católicos adoram Satanás e têm o corpo “entregue à prostituição”. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados talvez mudasse de opinião se passeasse pelo ecumenismo do sexo pago em Copacabana.
A balzaquiana Júlia, uma tentadora mistura de sangue alemão, africano e indígena, filiou-se à Igreja Católica por 15 anos, à Assembleia de Deus por seis e no momento flerta com o ateísmo. “Ou é céu ou o inferno”, ela contrapõe. “Não dá para servir a dois deuses ao mesmo tempo. Agora, estou no inferno.”
Mas seu inferno está longe do vermelho, pois não morre no prejuízo quem exige R$ 500 antes de subir com os clientes a um quarto dos dois hotéis do Lido onde eles deixam mais R$ 80 ou R$ 100 pela hospedagem: “Sou como o cinema, cobro antes”. Como as outras, jura não pagar um centavo para gigolô.
Com o desembarque do hermano Francisco, Júlia sumirá de Copa. Teme que manifestantes tementes a Deus se voltem contra o pecado que mora ao lado do palco do papa. “Podem confundir as coisas e haver um protesto contra nós.” Ela ignora que o cardeal Jorge Mario Bergoglio celebrou missa com prostitutas e ex-prostitutas em Buenos Aires. Nada lhe falei porque só vim a saber há pouco, informado pelo meu velho chapa Rodrigo Bertolotto.
Júlia se lembra de que há dois meses um táxi parou, e o passageiro mandou o motorista convocar uma garota de cabelo curtinho e seios mirrados, “que mais parece um menininho de 12 anos”, mas é mulher e maior. Mais tarde, a jovem rameira confidenciou: o freguês era um padre. “Eu é que ainda quero ‘fazer’ um padre”, fantasia Júlia.
Ela e as companheiras de ofício, em meio aos perfumes adocicados que exalam, gargalham da recomendação do Vaticano contra camisinha. “Iria morrer todo mundo”, Júlia prevê.
‘De dia, é papa. De noite, é puta’
Seu nome de batismo, como o de todas as personagens mencionadas, é outro. Júlia é mãe de quatro filhos. Bruna, uma magrinha espelicute de 23 anos, de dois. Bruna se enfureceu com a visita do papa, que estaria afugentando o macharéu. Como ela também roda sua bolsa na pista, isto é, batalha na rua calçada com pedras portuguesas, queixa-se das grades que isolarão a avenida: “Vão me prejudicar. Quero que o papa se…”.
Sabrina, a mulata que não está no mapa, não tem do que lamentar. Fisgou um freguês que veio ao Rio para a jornada. Algumas garotas contam que os peregrinos passam pelo Balcony, olham demoradamente para elas, mas não sucumbem à tentação. Logo um taxista diria temer os próximos dias, porque os forasteiros têm pouco dinheiro e andam de transporte coletivo.
Uma prostituta aparentada da Dona Redonda confirma que desde a quinta-feira o movimento murchou. Mas o baixote leão-de-chácara da Dolce Vita nega, contrariado: “É que estamos na baixa temporada. Em agosto, com as férias na Europa, esquenta. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. De dia, é papa. De noite, é puta”.
Por volta da uma e meia da manhã, elas são mais de 50 no Balcony. Chamam muito mais a atenção do que as TVs exibindo rugbi, baseball, lutas e futebol para a gringolândia. As mais formosas aguardam a abordagem, pois “se for em cima deles já se desvaloriza”, ensina Júlia. Ao redor da mesa onde bebemos Coca-Cola, sentam-se libaneses, americanos, noruegueses e brasileiros.
Milena, 28, veio de metrô para o batente. Ela viajava no vagão de um grupo de homens participantes da Jornada Mundial da Juventude. Quando entraram duas mulheres de short curtinho, os marmanjos contorceram os pescoços para admirar os traseiros.
“Hipócritas”, esperneou Milena, ameaçando um barraco.
Besteira dela. Afinal, como as garotas de programa, os peregrinos também são filhos de Deus.