sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Carta aos Romanos - 5

Ainda sobre Romanos 8:1, eu gostaria de deixar registrado algumas coisas que os reformadores falaram sobre o versículo em questão. Em todos os 4 volumes das Institutas, Calvino fala apenas uma vez sobre este versículo (III, 4, 28), e ainda assim apenas para refutar a tese católica de que haveria uma classificação de pecados veniais e mortais que o cristão poderia cometer. Já Lutero vai citar Rm 8:1 ao falar sobre o batismo, que ele considerava sacramento nos moldes católicos:

Enquanto subsiste esse teu compromisso com Deus, este, por sua vez, age graciosamente contigo e se compromete contigo no sentido de não te imputar os pecados que estão em tua natureza após o Batismo. Ele não os considerará nem te condenará por causa deles. O que lhe basta e agrada é que estejas em contínuo exercício e alimentes o desejo de destruir esses pecados e de te livrar deles com teu morrer. Por isso, ainda que maus pensamentos ou desejos se manifestem e ainda que, por vezes, peques e caias, se tornares a te erguer e a entrar na aliança, teus pecados já se foram por força do sacramento e do pacto, como diz São Paulo em Romanos 8:1. A má e pecaminosa inclinação natural não condena ninguém que crê em Cristo, desde que não siga essa inclinação nem se submeta a ela. E o evangelista S. João afirma em sua epístola: "Se alguém cair em pecado, temos um intercessor perante Deus, Jesus Cristo, que se tornou um perdão de nossos pecados" (1 Jo 2.1). Tudo isso acontece no Batismo, em que nos é dado Cristo, como ouviremos no próximo sermão.

(Martinho Lutero, "Um Sermão sobre o Santo, Venerabilíssimo Sacramento do Batismo", in "Obras Selecionadas" – Os primórdios – Escritos de 1517 a 1519, Eds. Sinodal/Ulbra/Concórdia, 2004, vol. 1, 2ª ed., p. 418)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Carta aos Romanos - 4

Nos 7 primeiros capítulos de Romanos, Paulo vem traçando um paralelo entre a lei e a graça, entre judeus e gentios, para concluir, no primeiro versículo do capítulo 8, que "nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus". Depois, nos capítulos 9 a 11, ele vai retomar a questão dos judeus de maneira mais específica, em que vai falar da rejeição da justiça de Deus pelos judeus.

O capítulo 8 funciona, para mim, como o cume da montanha que Paulo pretendia atingir na sua carta ao Romanos. Ele era um cara muito inteligente, e sabia usar muito bem as ferramentas da retórica. Não por acaso o capítulo 8 está colocado bem no meio da carta, pois Paulo vem construindo um raciocínio lógico até aí, para mostrar a depravação humana e a misericórdia e a justiça de Deus, e depois de dar mais ênfase a isso no capítulo 8, vai retomar algumas questões, como a dos judeus, para detalhá-las nos capítulos seguintes. Assim, ele vai subindo a montanha cheia de obstáculos da lei em contraste com a graça, e da pecaminosidade do ser humano, para chegar no capítulo 8 e fazer uma apologia da graça de Deus, e, a partir daí, desce a montanha de maneira mais pausada e tranqüila, falando detalhadamente de algumas questões que não gostaria que ficassem pendentes, e que queria explicar melhor.

Para não me estender muito, vou comentar primeiro sobre os 17 primeiros versículos do capítulo 8. A primeira coisa que me chama a atenção é essa construção do primeiro versículo, de que não há nenhuma condenação para quem está em Cristo Jesus. Karl Barth traduz este versículo da seguinte maneira: "Agora, porém, não há sentença de morte contra aqueles que estão em Cristo Jesus!". Paulo faz questão de explicar quem é que "está em Cristo" nos versos 4-11, ou seja, está em Cristo quem tem o Espírito de Cristo, quem não está na carne, mas nele habita "o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos" (v. 11).

Esta é uma passagem eminentemente trinitária. Paulo faz questão de distinguir (sem dividir) as Três Pessoas da Trindade, em especial no v. 11. Aqueles que criticam a doutrina da trindade, dando como razão o fato do nome "trindade" não aparecer na Bíblia, desviam os olhos de versículos como esse, em que Paulo, no mesmo versículo 11, fala do Pai (aquele que ressuscitou a Jesus), do Espírito Santo e de Cristo Jesus. Ainda que o tema do tópico não seja este, pra mim fica claro que Paulo está tomando muito cuidado – pisando em ovos mesmo -ao falar desse mistério - inalcançável à razão – que é a Trindade, até porque boa parte dos seus destinatários era de judeus convertidos, a quem a idéia de Deus Único lhes era muito preciosa por distingui-los dos demais povos politeístas. Acho que esta é uma das razões pelas quais Paulo não usa a palavra Trindade nem esmiúça este entendimento neste trecho em particular. Primeiro, porque é uma palavra que somente vai ser usada pela primeira vez por Tertuliano quase 200 anos depois. Segundo, porque Paulo temia que fosse mal compreendido pelo seu público, por isso apresenta com muito cuidado o "Deus Único em Três Pessoas", sem fazer um tratado sobre o tema, mas deixando algumas pistas do que pensava a respeito, que hoje, para nós, são verdadeiras evidências, mas a audiência romana de sua época ainda não tinha condições de entender a amplitude do que ele estava falando.

Nos versos 12 a 16, Paulo continua falando do Espírito Santo, reforçando a idéia (no v. 14) de que "todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus", ou seja, está em Cristo (e portanto não sofre nenhuma condenação) quem "o próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (v. 16), pelo que não estamos mais (insiste Paulo) na escravidão da lei, mas recebemos o espírito de graça e de adoção pelo qual podemos dizer "Aba, Pai! (v. 15 – uma ressonância de Gálatas 4:6). Essa idéia do testemunho (ou "testificação") pelo Espírito vai ser retomada muito tempo depois por João em sua 1ª carta, dizendo que "o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade" (1 João 5:6) , "e o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida" (1 João 5:11-12).

Talvez se possa dizer que Romanos 8 seja o capítulo do Espírito Santo nas cartas de Paulo. Em apenas alguns versículos, ele fala bastante sobre o Espírito, o Espírito de Deus, o Espírito de Cristo, "o Espírito da vida que, em Cristo Jesus, nos livra da lei do pecado e da morte" (v. 2). Jesus, ainda que fosse o Messias prometido pelos profetas, era um dado novo para os judeus, que conheciam a existência do Espírito Santo, mas o Velho Testamento não falava dEle com tanta ênfase e com tanta Personalidade como Paulo agora estava escrevendo, acho eu que para avisá-los que uma nova era havia começado no relacionamento de Deus com os seres humanos, e o Espírito Santo, que convence o mundo do pecado, da justiça e do juízo (João 16:8 ) agora atestava quem era filho de Deus (ou não) mediante Jesus e, assim, estava livre (ou não) de condenação.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

As confiáveis testemunhas do Livro de Mórmon

No forum Atos, tenho debatido com alguém que se identifica como Mórmon, e insiste em garantir a veracidade das 3 testemunhas principais e das 8 testemunhas adicionais que atestam a autenticidade do Livro de Mórmon, tal como recebido por Joseph Smith Jr. no final da década de 1820. 

Os mórmons afirmam que houve 3 testemunhas principais, Oliver Cowdery, David Whitmer e Martin Harris, que viram as placas que contêm o registro do Livro de Mórmon traduzido por Joseph Smith Jr., bem como os caracteres nelas gravados. 

É o que consta das primeiras páginas do Livro de Mórmon, onde está registrado também o depoimento de 8 familiares de Smith Jr. e Whitmer, alegando que teriam visto o livro das placas "com aparência de ouro", bem como os caracteres gravados. 

São eles: Christian Whitmer, Jacob Whitmer, Peter Whitmer Jr., John Whitmer, Hiram Page, Joseph Smith Senior, Hyrum Smith e Samuel H. Smith. 

A repetição dos sobrenomes Whitmer e Smith não é acidental. Como em qualquer processo judicial que se preze, em qualquer nação civilizada, o depoimento de familiares, dada a parcialidade, pode servir no máximo como informação a quem julga, mas nunca como testemunho oficial, vamos nos concentrar nas 3 testemunhas principais.

OLIVER COWDERY

Oliver Cowdery era parente distante de Joseph Smith Jr., embora só tenham constatado este dado quando se encontraram pela primeira vez. 

Nascido em 1806, era membro da Igreja Congregacional em Poultney, Vermont, onde era pastor Ethan Smith, que apesar do sobrenome não tinha nenhum parentesco com Joseph Smith Jr. 

A importância de Ethan nessa história é que ele escreveu o livro "View of the Hebrews" (1823), em que especulava sobre a origem hebraica dos índios americanos, e Cowdery estava ciente disto. 

Qualquer semelhança com o Livro de Mórmon (1830) pode até não ser coincidência, mas muitos estudiosos não-mórmons dizem que paira uma certa suspeita no ar sobre a influência de Cowdery na versão final do Livro de Smith Jr. 

Em 5 de abril de 1829, Cowdery encontrou Smith pela primeira vez, ocasião em que se descobriram parentes distantes e este último contou-lhe que havia encontrado as placas douradas. 

Os dois tinham também em comum o fato de serem aventureiros e caçadores de tesouros e de gostarem de usar bolas de cristal para adivinhações quando mais jovens. 

Smith havia parado a tradução das placas douradas, em função do desaparecimento das 116 primeiras páginas que estavam em poder da outra futura testemunha, Martin Harris. 

Após o encontro de Smith com Cowdery, este funcionou inicialmente como escriba das traduções daquele, e, segundo alegou, até tentou traduzir algumas placas, mas não conseguiu. 

O trabalho de ambos foi tão rápido que durou menos de 2 meses para finalizar a tradução. Segundo também alegaram, Cowdery ainda participou de algumas visões de Smith, tendo sido ambos batizados pelo próprio João Batista, além de terem visto Pedro, Tiago e João transfigurados (ainda segundo suas versões).

Organizaram a "Igreja de Cristo" em 6 de abril de 1830, sendo que a Cowdery coube o título de "Segundo Elder" (o primeiro, obviamente, era Smith). 

Entretanto, já a partir de 1831, Sidney Rigdon passa a suplantá-lo na hierarquia mórmon. 

Em 1832, Cowdery se casa com Elizabeth Ann Whitmer, que, como o sobrenome supõe, era filha e irmã de vários Whitmers que formaram parte das 8 testemunhas restantes do Livro de Mórmon, além da outra testemunha principal, David Whitmer (seu irmão). 

Tudo ia bem até 1838, quando os dois élderes entraram em rota de colisão, em função de disputas financeiras, (Smith e Rigdon estavam envolvidos na falência da Kirtland Safety Society, e, por isso, tinham se mudado para Far West, Missouri, fugindo dos credores e da justiça, além de terem sido expulsos da igreja de Kirtland), da questão da separação entre igreja e Estado, e principalmente do caso que Smith estava tendo com Fanny Alger, uma empregada adolescente de sua própria casa, e que muitos acreditam ter sido a "primeira segunda esposa" de Smith, numa prática polígama a que Cowdery se opunha. 

Como tinha o apoio da família Whitmer, tanto Cowdery como seus aparentados foram excomungados da Igreja de Smith em 12 de abril de 1838, sendo que outra das 8 testemunhas, Hiram Page, sofreu a mesma pena. 

Naquele dia, duas das três testemunhas principais e cinco das oito testemunhas acessórias foram excluídas da igreja de Smith. 

Ficaram conhecidos como "os dissidentes". Cowdery e os Whitmer ficaram morando perto de Far West por mais dois meses, mas uma pregação de Sidney Rigdon em 17 de junho de 1838 - que passou à história mórmon como o "Sermão Salgado" ("Salt Sermon") -, dizendo que eles eram o sal que havia perdido o sabor e, portanto, deveria ser pisado, foi entendido por eles como uma real ameaça de morte por parte dos danitas, que formavam uma espécie de braço armado dos primeiros mórmons para lutarem contra todos os que os ameaçavam, o que dá mostras do suposto caráter cristão do grupo. 

Cowdery foi estudar Direito em Tiffin, Ohio, onde se destacou na política local. Após a morte de Smith Jr. em 1844, ele reconheceu James J. Strang como sucessor do "profeta" (da igreja mórmon strangita), mas em 1848 ele pediu para se encontrar com Brigham Young e pediu reconciliação com a igreja de onde havia sido expulso 10 anos antes, tendo sido rebatizado em 12 de novembro de 1848. 

Pouco tempo depois, contraiu tuberculose e veio a falecer em 3 de março de 1850, na casa de David Whitmer, em Richmond, Missouri. Assim, uma das testemunhas principais do Livro de Mórmon passou mais tempo fora da igreja do que dentro dela, tendo sido excomungado por iniciativa do próprio Joseph Smith Jr.

DAVID WHITMER

Nascido em Harrisburg, Pennsylvania, em 7 de janeiro de 1805, David Whitmer se mudou para Fayette, New York, no começo da década de 1820, e tendo feito uma viagem a Palmyra, no mesmo Estado, em 1828, encontrou seu amigo Oliver Cowdery, e este lhe falou, algum tempo depois, sobre as placas douradas de Joseph Smith. 

Trouxe a família de seu pai para viver também em Palmyra, e foi batizado em junho de 1829, antes da organização da igreja por Smith em 1830. 

Whitmer alegou que, junto com Smith e Cowdery, teve uma visão do anjo apresentando as placas douradas, e a "igreja de Cristo" foi organizada na casa de seu pai, Peter Whitmer, em Fayette, conforme Smith disse, mas depois desmentiu, dizendo que o local de fundação havia sido Manchester, NY. 

Após a excomunhão sua, de seu cunhado Cowdery, e de sua família, Whitmer teve que mudar-se da região de Far West, onde tinha grandes propriedades de terra, para fugir dos danitas, e assim encontrou refúgio em Richmond, também no Missouri. 

Mesmo assim, recorreu aos não-mórmons para recobrar o direito às suas terras de onde Smith os havia expulsado, e chegou a dizer o seguinte:

"Se vocês acreditam no meu testemunho ao Livro de Mórmon, se vocês acreditam que Deus falou a nós, as três testemunhas, com a sua própria voz, então eu lhes digo que em Junho de 1838, Deus falou comigo de novo com sua própria voz vinda dos céus e me disse para 'separar-me do meio dos Santos dos Últimos Dias, porque o que eles procuraram fazer comigo então eu deveria fazer com eles'."

Curioso, não? Se o testemunho de Whitman é essencial para a validade do Livro de Mórmon, por que duvidar deste outro testemunho, em que ele lhe disse para separar-se dos santos dos últimos dias?

Após o assassinato de Smith Jr. em 1844, muitos mórmons se lembraram da antiga ordenação de Whitmer para ser sucessor de Smith, em 1834. 

Valendo-se deste precedente, alguns admiradores de Whitmer fundaram a "Igreja de Cristo" whitmerita, em Kirtland, Ohio, mas Whitmer negou-lhes apoio, pelo que a nova igreja não durou muito. 

Entretanto, em 1876, Whitmer buscou esta referência do passado para fundar a segunda "Igreja de Cristo" whitmerita, que passou a seu sobrinho após sua morte em 25 de janeiro de 1888, sendo que a igreja durou até a década de 1960. 

Embora tenha mantido seu testemunho a respeito do Livro de Mórmon, Whitner, talvez por ter sido o mais longevo das testemunhas, foi o que deu mais entrevistas, e em muitas delas apontava dados desencontrados, ou dizia que havia sido mais uma "impressão" do que propriamente uma "visão". 

Não ficava claro se tinha de fato visto as placas com seus olhos naturais. O fato é que ele também viveu a maior parte da sua vida longe dos mórmons.

MARTIN HARRIS, "O INÍQUO"

Martin Harris era o mais velho das 3 testemunhas principais, e o único, entre o "profeta" e as testemunhas, que não tinha parente entre os 8 informantes acessórios. 

Havia nascido em 18 de maio de 1783, em Eastown, NY. Pouco se sabe da juventude de Harris, mas algumas pessoas dizem que ele tinha algumas visões estranhas. 

Um dela era a de Jesus na forma de um cervo, que havia conversado por ele, acompanhando-o por 3 milhas. 

Em Palmyra, Harris conheceu Smith, que lhe contou sobre as placas douradas que revelavam segredos de uma antiga civilização ameríndia. 

Além de servir por algum tempo como escriba de Smith, Harris também o patrocinava, e pedia cópias dos caracteres das placas para certificar-se de sua autenticidade. 

Certa vez, pediu a Smith 116 páginas do manuscrito para mostrar a sua esposa, Lucy, e outras pessoas, levou-as para casa, e elas desapareceram. 

O trabalho de Smith foi obrigado a parar, e somente com a ajuda de Cowdery ele pode retomá-lo. Apesar do acontecido, Harris continuou a apoiar Smith financeiramente, mas o "profeta" fala o seguinte a respeito deste acontecimento:

Doutrinas e Convênios – Seção 3
Revelação dada a Joseph Smith, o Profeta, em Harmony, Estado da Pensilvânia, em julho de 1828, referente à perda de 116 páginas do manuscrito traduzido da primeira parte do Livro de Mórmon, chamada Livro de Leí. O Profeta havia permitido, com relutância, que essas páginas passassem de sua custódia à de Martin Harris, que servira por pouco tempo como escrevente na tradução do Livro de Mórmon.
9 Eis que tu és Joseph e foste escolhido para fazer a obra do Senhor, mas por causa de transgressão, se não ficares atento, cairás.
10 Lembra-te, porém, de que Deus é misericordioso; portanto arrepende-te do que fizeste contrário ao mandamento que te dei e és ainda escolhido; e és chamado à obra outra vez;
11 A não ser que faças isso, serás abandonado e tornar-te-ás como os outros homens e não mais terás o dom.
12 E quando entregaste aquilo que Deus te deu visão e poder para traduzir, entregaste o que era sagrado nas mãos de um homem iníquo,

Assim, se Joseph Smith fosse realmente profeta, como os mórmons alegam, Deus lhe teria dito que uma das 3 testemunhas principais, Martin Harris, era um homem iníquo, que havia desaparecido com 116 páginas de sua suposta tradução. Ora, como é que Smith pode apresentar uma testemunha que o próprio Deus, segundo afirma no seu ofício de "profeta", diz ser "iníquo"?

Entretanto, o iníquo Harris continuou patrocinando Smith (muito conveniente, não?) e participou da organização da nova igreja, tendo assumido altos cargos e, em 1836, após a morte de sua mulher, de quem havia se separado informalmente antes, casou-se com a filha de Brigham Young, Caroline Young, de apenas 22 anos de idade, portanto, 31 anos mais jovem que ele, mas com quem teve 7 filhos. 

Na época, os mórmons estavam em Kirtland, Ohio, e em 1837, com a falência da Kirtland Safety Society, que Harris chamou de "fraude", levou a uma profunda divisão na igreja, sendo que os excluídos foram Joseph Smith Jr. e Sidney Rigdon, tendo permanecido uma igreja na cidade com o nome de "Igreja de Cristo", cujos estatutos datam de 1838. 

Em 1839, os líderes rejeitaram o Livro de Mórmon, no que Harris não concordou, tendo sido excluído, e em 1840, voltou para a igreja de Smith em Nauvoo, Illinois. Mudar de religião tinha sido uma constante na vida de Harris. 

Mesmo antes de ser mórmon, ele tinha trocado de religião 5 vezes, e continuou fazendo o mesmo depois da morte de Joseph Smith. 

Entre várias idas e vindas e reviravoltas, colaborou com Strang, com Whitmer, com Bishop, declarou que William Smith, o único irmão vivo de Joseph, deveria ser seu sucessor. Em 1856, sua mulher Caroline o abandonou e foi viver em Utah com os demais mórmons. 

Pobre, sem família e sem igreja, em 1870, os mórmons convidam Harris a ir para o Utah, e ele aceita o convite e vai viver lá, onde passa os seus últimos dias até morrer em 10 de julho de 1875. 

Embora Harris não tenha negado seu testemunho do Livro de Mórmon, suas versões variavam. Houve uma oportunidade em que ele disse que o havia visto com os "olhos espirituais", havendo vários depoimentos no sentido de que ele nunca viu as placas douradas com os olhos naturais, mas somente em sonhos ou visões.

CONCLUSÃO

Bem, essas são as três principais testemunhas do Livro de Mórmon. Era de se esperar que vivessem uma vida digna, de alguém que testemunhara algo realmente sobrenatural da parte de Deus, mas o próprio Deus, segundo o "profeta" Smith, chama uma delas (Harris) de iníquo. 

Todos eles, de alguma maneira, romperam com a igreja que ajudaram a fundar, e mesmo aqueles que retornaram, o fizeram no fim da vida, e por motivos que não ficaram muito claros. Fica a critério de cada um decidir se esses fatos invalidam ou não o seu caráter e se os seus testemunhos são confiáveis.

Fontes:

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O evangelho de Lucas - parte 3

Ainda fruto dos estudos que estamos fazendo no Forum Atos, vou colocar aqui também os textos que o Gustavo preparou para o tópico em questão. Assim, vamos retornar um pouco no que vínhamos analisando até aqui, para depois retomarmos os capítulos restantes. O texto abaixo é de autoria do Gustavo.
Bem, iniciando então nosso estudo, algumas considerações sobre o evangelho de Lucas. Ele é o único dos evangelhos que tem uma continuação. Além disto, os versículos 1 a 4 do primeiro capítulo constituem um prólogo, que também pode ser chamado de exordium, muito usado por outros escritores gregos. O autor é definido como Lucas, apesar dele não se identificar no texto. Esta atribuição é dada por causa de narrações do livro de Atos, que é sequência deste evangelho, onde algumas trazem a narrativa em primeira pessoa do plural. São narrativas de Paulo, e a única pessoa que o acompanhava que preenche o pré-requisito é Lucas. Além disto, o evangelho sempre foi atribuído a ele. Lucas era médico (Cl 4:14). Provavelmente foi o último evangelho sinótico escrito. Como Atos foi escrito depois, e por causa de sua conclusão súbita, o livro de Lucas deve ter sido escrito nos anos 50 D.C. Também o fato de Lucas não mencionar a destruição de Jerusalém coloca este livro como escrito antes de 70 D.C.Há uma concordância geral que o livro não tenha sido escrito na Palestina.

Quem seria Teófilo?

O nome significa amigo de Deus. Não se sabe quem seria ele, mas é possível que ele fosse um magistrado, pois Lucas o trata da mesma forma que Paulo trata Festo (Atos 26:25). É interessante vermos aqui, um cristão obedecendo o preceito de dar honra a quem é devido. Nos mostra um grande exemplo. Pois devemos sempre ser educados e civilizados, acima de tudo. Estudar a motivação do livro é algo primordial, e para mim, a grande motivação do livro, acima de qualquer outra, é o próprio Teófilo. Como ele é chamado de "excelentíssimo", concluímos que ele seja um governante, pois é o mesmo tratamento recebido por Festo, como eu já tinha mencionado. Talvez por ser um governante, é que Lucas tenha feito questão de verificar todos os fatos como ele mesmo diz no início de seu Evangelho. Talvez Teófilo tivesse alguma familiaridade com a filosofia, e um relato com todos os detalhes o faria acreditar mais no que lhe foi relatado. Lucas disse que o intuito era revelar melhor o que Teófilo já tinha sido instruído. O verbo aqui pode significar também informado, o que poderia mostrar que Teófilo como governante, foi informado sobre alguns cristãos e seus ensinos. Lucas poderia ter escrito o evangelho como forma de informar Teófilo sobre eles, algo que era comum no meio cristão antes de Constantino. Se for assim, o texto até poderia ser inserido no contexto das disputas entre cristãos e judeus (algo amplamente relatado no livro de Atos). Talvez, aproveitando ainda esta linha de raciocínio, Lucas continua o relato escrevendo o livro de Atos, para informar Teófilo sobre toda a história de Cristo até aquele momento. Assim vejo os dois livros de Lucas como um relatório para um governante, para o contextualizar sobre uma disputa que até então não fazia idéia que existia, e para mostrar que os cristãos eram inocentes. Como Atos termina com a ida de Paulo para Roma, penso que Teófilo seja algum governante daquela cidade, talvez aquele que fosse julgar o caso. Isto explicaria também uma linguagem mais familiar a um pagão.

Lucas inicia sua narração pelo nascimento de João Batista, e sua concepção. Lucas menciona Herodes como rei. Herodes era um rei pagão, e isto para já indicava o cumprimento de uma profecia:
(Gn 49:10) O cetro não se arredará de Judà, nem o bastão de autoridade dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence; e a ele obedecerão os povos.
Lucas nos informa que Zacarias é da turma de Abias. Abias foi o oitavo escolhido para o serviço no templo, de 24 turmas (1Cr 24:10), e tomavam o serviço no templo por uma semana. Ele era casado com Isabel, segundo o evangelista, descendente de Aarão. É realizando seu serviço que ele recebe a revelação que sua oração foi ouvida. Muitas vezes nossas orações são ouvidas nos momentos que mais esperamos.Ele cita Elias, aludindo à profecia de Malaquias:
(Lc 1:17) irá adiante dele no espírito e poder de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à prudência dos justos, a fim de preparar para o Senhor um povo apercebido.
(Ml 4:5) Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor;
(Ml 4:6) e ele converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais; para que eu não venha, e fira a terra com maldição.
(Ml 3:1) Eis que eu envio o meu mensageiro, e ele há de preparar o caminho diante de mim; e de repente virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais, e o anjo do pacto, a quem vós desejais; eis que ele vem, diz o Senhor dos exércitos.

Não acreditando, Zacarias questionou o anjo. Este emudeceu suas dúvidas até o dia que ele as visse. Por seis meses ficaram ocultos, até que o anjo visitasse Maria também. Esta não respondeu com incredulidade, mas com fé. Depois de seu chamado, Maria visita Isabel, ficando com ela por mais três meses, provavelmente até o parto de João Batista, onde seu pai recobra novamente a fala.É interessante os detalhes sobre os costumes da época. Os nomes dos recém-nascidos são dados no momento da circuncisão, atestado nos dois casos. É interessante também que pelo que parece, os nomes naquela época eram dados como uma espécie de homenagem a algum membro da família, geralmente o pai.

No segundo capítulo, vemos novamente Lucas situando o relato historicamente. Há algumas controvérsias sobre Quirínio, mas que podem ser explicadas pela existência de mais de um recenseamento. Lucas não relata sobre a reação de Herodes neste ponto, se limitando ao relato do nascimento.Mais uma vez vemos Cristo cumprindo outra profecia em Lucas, onde ele alude Miquéias:
(Mq 5:2) Mas tu, Belém Efrata, posto que pequena para estar entre os milhares de Judá, de ti é que me sairá aquele que há de reinar em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.
Como José era descendente de Davi, algo que também foi previsto em profecia, ele deveria se alistar em Belém. É quando Maria dá a luz. Procurando uma estalagem para passar a noite, não conseguiram, por não haver lugar. Talvez por transportar uma mulher grávida, eles demoraram mais durante a viagem, chegando após muitas pessoas. Ela dá a luz e coloca Jesus em uma manjedoura. Lucas não informa onde está esta manjedoura, que muitos colocam em uma caverna.

A cena dos pastores mostra algo muito interessante para todos nós: a alegria tanto dos pastores quanto dos anjos, com as notícias do nascimento de Cristo. É desta alegria que se recorda no Natal, os mesmos motivos de comemoração daqueles pastores e anjos são os nossos motivos hoje. E contra aqueles que condenam a comemoração do Natal por não ter sido ordenados a fazer isto, os anjos que não foram alvo desta Salvação, comemoraram o nascimento de Cristo louvando e dando Glória a Deus. Um motivo simples foi dado por eles: "É que vos nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor". É o cumprimento da promessa, é a demonstração real do amor de Deus, e por isto os homens comemoraram, e por isto temos alegria como foi dito pelos anjos.Depois do nascimento, alguns manuscritos dizem "dias da purificação deles", mas segundo a Lei, a purificação era feita somente pela mãe (Lv 12:2). Como eram pobres, não precisaram levar um cordeiro:
(Lv 12:8) Mas, se as suas posses não bastarem para um cordeiro, então tomará duas rolas, ou dois pombinhos: um para o holocausto e outro para a oferta pelo pecado; assim o sacerdote fará expiação por ela, e ela será limpa.

O texto ainda menciona dois fiéis, e seu testemunho sobre Cristo. Sempre haverá fiéis a Deus, e estes dois que estavam inseridos no judaísmo são demonstração deste fato. Simeão era sacerdote, Ana era profetisa.Não se costuma falar muito sobre a infância de Jesus, apesar de atualmente haver muita especulação. O que Lucas nos disse é que iam todos os anos a Jerusalém, o que indica que eles viveram pelas redondezas. Jesus, mesmo com 12 anos, já tinha conhecimento sobre sua missão. Isto é importante para se afastar a interpretação gnóstica que o homem Jesus foi tomado pelo Cristo aos 30 anos.Lucas por duas vezes comenta que Maria guardava todos os fatos, meditando neles. Isto talvez indique que a própria Maria foi uma das fontes consultadas por Lucas.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Carta aos Romanos - 3

O primeiro versículo de Romanos 7 se dirige a pessoas que conhecem a lei, muito provavelmente no sentido genérico da palavra "lei", como disse no meu post anterior. Ainda que escreva a cristãos, Paulo está escrevendo a uma igreja que ele não conhecia, e que tinha algum tipo de informação que dizia como ela era composta, ou seja, de judeus, prosélitos e gentios convertidos. É interessante esta, digamos, "tática" que Paulo usa nas suas cartas, ao mostrar que, de alguma maneira, os seus destinatários eram íntimos seus no sentido de terem algo em comum, neste caso, a lei. A seguir, ele dá um exemplo muito simples, de casamento, o que também é uma forma dele se aproximar mais de uma "platéia" que ele não conhecia, ao tratar de um tema que qualquer pessoa de Roma, naquele tempo, entenderia.

O exemplo da viuvez, que não implicava adultério, é usado por Paulo para mostrar como os cristãos haviam morrido para a Lei (v. 4), para pertencerem a Jesus. Aí há um contraste, já que no exemplo da mulher que enviuvara, ela tinha sobrevivido ao marido para casar-se com outro homem. Agora, quando compara esta situação à Lei e à graça, Paulo diz que quem morreu, por assim dizer, era a Igreja, para a Lei, que de certa forma sobrevivera (pelo menos para os judeus), e a Igreja, morta para a Lei, agora se casaria com o Cristo morto e ressuscitado. Isto coloca um outro contraste: se os judeus deviam ter dado frutos para Deus, através da Lei, como Paulo já falara nos capítulos precedentes, agora essa tarefa cabia à Igreja, morta para a Lei e vivificada pelo Espírito.

No versículo 7, Paulo parte para outro recurso que ele usava para aproximar-se dos seus ouvintes, o da sinceridade. Havia começado Romanos falando genericamente da natureza e da humanidade, havia particularizado um pouco mais ao falar dos judeus e gentios, e agora passa a falar de si mesmo, de maneira sincera, como que desnudando o seu interior, o que sentia, o que passava dentro dele, em relação à Lei e à graça. O exemplo não é mais um casamento, mas, mais do que ele próprio, como ser físico, as suas emoções. Paulo continua construindo seus paradoxos entre lei e graça, dizendo que "o pecado, aproveitando a oportunidade dada pelo mandamento, produziu em mim todo tipo de desejo cobiçoso. Pois, sem a Lei, o pecado está morto" (v. 8 ), uma idéia da Lei como aio (condutor, servo, mordomo) entre o pecado e a morte no Velho Testamento, mas que agora servia como aio para a graça de Cristo, e assim cumprira a sua missão, algo que ele já havia usado na carta aos gálatas, dizendo:

Gal 3:21 É a lei, então, contra as promessas de Deus? De modo nenhum; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei.
Gal 3:22 Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos que crêem.
Gal 3:23 Mas, antes que viesse a fé, estávamos guardados debaixo da lei, encerrados para aquela fé que se havia de revelar.
Gal 3:24 De modo que a lei se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados.
Gal 3:25 Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio.
Gal 3:26 Pois todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus.
Gal 3:27 Porque todos quantos fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo.
Gal 3:28 Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.

Paulo retoma essa idéia no v. 12, dizendo que "a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom", mas por meio dela o pecado se revela e coloca em conflito aquele que quer adorar a Deus, pois o bem que deseja, não consegue fazer, pela guerra interna entre o bem e o mal, ou seja, o desejo de agradar a Deus, e a existência de uma Lei que lhe aponta o pecado. Como vencer esta aparente contradição entre a lei que mata e o Espírito que vivifica? Acho que o próprio Paulo explica isso na 2ª carta aos coríntios:

2Co 3:5 não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus,
2Co 3:6 o qual também nos capacitou para sermos ministros dum novo pacto, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica.
2Co 3:7 Ora, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fixar os olhos no rosto de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual se estava desvanecendo,
2Co 3:8 como não será de maior glória o ministério do espírito?
2Co 3:9 Porque, se o ministério da condenação tinha glória, muito mais excede em glória o ministério da justiça.
2Co 3:10 Pois na verdade, o que foi feito glorioso, não o é em comparação com a glória inexcedível.
2Co 3:11 Porque, se aquilo que se desvanecia era glorioso, muito mais glorioso é o que permanece.
2Co 3:12 Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar.
2Co 3:13 E não somos como Moisés, que trazia um véu sobre o rosto, para que os filhos de Isra desvanecia;
2Co 3:14 mas o entendimento lhes ficou endurecido. Pois até o dia de hoje, à leitura do velho pacto, permanece o mesmo véu, não lhes sendo revelado que em Cristo é ele abolido;
2Co 3:15 sim, até o dia de hoje, sempre que Moisés é lido, um véu está posto sobre o coração deles.
2Co 3:16 Contudo, convertendo-se um deles ao Senhor, é-lhe tirado o véu.
2Co 3:17 Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade.
2Co 3:18 Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.

Creio, portanto, que é esta transformação de glória em glória, vivificados pelo Espírito, que deixamos a Lei para trás e encontramos a liberdade em Cristo. É esta, portanto, a resposta que eu acho que Paulo daria à pergunta que faz a si mesmo, finalizando Romanos 7:

Rom 7:24 Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?
Rom 7:25 Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor! De modo que eu mesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado.

pra depois, no versículo seguinte, começar Romanos 8 dizendo:

Rom 8:1 Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.
Rom 8:2 Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Carta aos Romanos - 2

Em Romanos 4, eu acho muito interessante as imagens que Paulo usa para falar da graça de Deus, em especial nestes versículos:

Rom 4:3 Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.
Rom 4:4 Ora, ao que trabalha não se lhe conta a recompensa como dádiva, mas sim como dívida;
Rom 4:5 porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça;


A idéia que ele passa no v. 4 é que, se tentarmos nos justificar pelas nossas obras, o que estamos cobrando de Deus, na verdade, é um salário, porque Deus teria para conosco uma dívida a ser paga, o que contraria todo o raciocínio dos capítulos anteriores, em especial o 3, em que ele afirma que não há ninguém justo, não há ninguém que mereça nada da parte de Deus. Assim, nossa atitude deve ser a de Abraão, que não cobrou de Deus um salário por ter peregrinado pelo Oriente Médio em Seu nome, mas apenas creu que Deus o justificaria em qualquer situação.

Ainda falando de Abraão (vv. 10-12), Paulo lembra que ele foi justificado pela fé antes de ser circuncidado e que a circuncisão foi apenas um selo da justiça da fé não só para os seus descendentes circuncidados, mas também para os incircuncisos (nós, os gentios) que também têm fé. Logo (v. 13), não é pela Lei (circuncisão) que veio a promessa a Abraão, de que ele seria Pai de muitas nações, mas sim pela justiça da fé (incircuncisão). Assim, Abraão teria duas descendências, a da lei e a da fé, mas a ambas seria destinada a promessa (v. 16).

Aproveitando esta idéia de que Abraão creu, contra todas as evidências pessoais e circunstanciais, numa promessa de Deus que ele não veria realizada (afinal, não viveu o suficiente para isso), nos versículos seguintes, aparecem algumas frases que estamos acostumados a ouvir na igreja e fora dela, como a que "Deus chama as coisas que não são como se já fossem" (v. 17), e que Abraão "creu em esperança contra a esperança" (v. 18). Eu, pessoalmente, gosto muito do v. 20, que afirma que ele foi fortalecido na fé dando glórias a Deus, algo que eu procuro praticar quando me sinto enfraquecido.

Nos versos 24 e 25, Paulo volta a falar de Jesus, para começar o capítulo 5 falando da salvação pela fé em Jesus Cristo, que nos justifica. "Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça". Até então tudo era trevas, indecisão, portas fechadas. Romanos 5:1 é, talvez, o centro e o resumo de toda a pregação de Paulo e, por que não dizer, do cristianismo. Karl Barth associa este versículo a Romanos 13:12, em que Paulo como que "canta": "A noite é passada, e o dia é chegado". Embora este seja o ápice de sua carta, curiosamente, entretanto, Paulo faz aqui uma pausa no seu longo discurso teológico que vinha fazendo até então, e passa a falar de uma espécie de "teologia prática", da vida do dia-a-dia do cristão, gloriando-se na esperança da glória de Deus, mas não somente nela:

Rom 5:3 E não somente isso, mas também gloriemo-nos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a perseverança,
Rom 5:4 e a perseverança a experiência, e a experiência a esperança;
Rom 5:5 e a esperança não desaponta, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.


Assim, o crente passa por este processo:

Tribulações > Perseverança > Experiência > Esperança

Comentando estes versículos Karl Barth diz o seguinte:

Carta aos Romanos, de Karl Barth, Ed. Novo Século, 2003, p. 244:

Na paz de Deus existe um "sofrer", um "submergir", um "estar perdido" e "ser estraçalhado". Abraão flutua entre o céu e a terra; luta com Deus e o seu coração se parte. De um lado lhe é dito: "Isaque será a tua semente"; de outro "ele deverá morrer". Aí prevalece a base da fé, que a ninguém deixará envergonhado [confundido]; é ela que suporta o golpe." (Lutero)
Na paz de Deus tem lugar, também o que o mundo chama "incredulidade"; o clamor "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" é o ataque da morte e do inferno; "que ninguém se iluda; quem não quiser ser atacado, este não é cristão, porém incrédulo e inimigo de Cristo." (Lutero)

Esta "pausa" no discurso teológico de Paulo serve também para preparar o leitor para o que ele vai dizer lá em Romanos 8:35. Afinal, "quem nos separará do amor de Cristo? a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?"

E, nos versículos seguintes, Paulo aproveita este "gancho" das tribulações e aflições para falar de Cristo como a esperança para a reconciliação com Deus, falando, depois, da entrada do pecado no mundo através de Adão, do mundo sem Lei até Moisés, e da retirada do pecado do mundo através de Cristo, pois, "assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação e vida" (v. 18). A Bíblia do Peregrino diz que Paulo tenta formular, no curto espaço entre os versos 12 e 21, uma teologia do pecado original, o que fez com que este pequeno trecho fosse de difícil interpretação.

Tenho para mim, entretanto, que esta ênfase no pecado original faz o link entre os capítulos anteriores e o que vem a seguir. Como vem falando de graça nos capítulos 4 e 5, Paulo faz uma transição comparando a atitude do crente em relação à Lei e à graça no capítulo 6, preparando o espírito do leitor para o capítulo 7, em que falará mais sobre a Lei, até, no primeiro versículo do capítulo 8, concluir que "nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus". Entretanto, no raciocínio de Paulo, é preciso fazer esta transição entre a Lei e a graça no capítulo 6, para mostrar ao cristão que, mesmo que ele não esteja mais sujeito à lei e sim à graça, isto não deve ser motivo para que ele continue pecando. Com sua habitual ironia, ele começa o capítulo 6 perguntando: "Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que abunde a graça?".

Paulo se preocupa com o fato de que suas palavras sejam mal entendidas. Teme que sua ênfase na graça possa influenciar alguns irmãos a descambarem para a devassidão descontrolada. Continua alertando: "Pois quê? Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum". Por isso, ele faz um discurso veemente no capítulo 6 no sentido de que ninguém se engane, pois "o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor" (v. 23). Paulo opõe "salário" a "dom", associando o primeiro ao pecado e o segundo à vida eterna, recuperando o que havia dito em Romanos 4:4, ou seja, que salário não é dádiva, mas dívida. Só que a dívida aqui é invertida. É o pecado que gera a dívida para com Deus, e o seu pagamento (ou salário) é a morte. Já a vida eterna é dádiva de Deus, que Ele dá, ainda segundo o raciocínio de Romanos 4, mediante a fé.

Diário de um lunático - 3

20/02/2007

Olá para todos, meu nome é Pedro, já devem ter ouvido falar de mim.
Hoje é o último dia de carnaval, e resolvi escrever um pouco sobre meus dias neste feriado. Não me levem a mal, para mim o carnaval é uma total perda de tempo. No entanto, estive muito bem acompanhado no feriado, e por motivos de força maior acabei parando no meio da folia.
As chances de eu participar de tais festanças é nula, e não se perguntem se eu estou preocupado de ter participado mesmo não gostando. Uma das vantagens de não se possuir ligações religiosas é não ter compromissos morais. Você faz suas regras. Geralmente se copia de religiosos as regras mais "humanas", condenando aquelas que te proíbem de participar de festas e outras orgias.
Orgia era um bom nome para aquela festança... É incrível como aquele povo sabe pular como se fossem pipocas saltitando na panela. É incrível também como bebem! Parece haver uma cultura onde o homem deve beber até ficar tonto. Há alguns que dizem que se não for para ficar tonto, então não vale a pena beber. O bom é ficar tonto. Afinal de contas, qual é a graça de não se lembrar de nada? Não seria melhor ficar dormindo em casa?
Bem, infelizmente perdi minha companhia no meio da festa. Bem feito para mim, é o que dá procurar moças farristas. Elas possuem uma consciência moral mais flexível que eu, não ligam muito se arrastaram alguém para uma festa que ele não gosta, e o deixam pra lá depois que descobrem que ele só tem 10 reais e a chave do portão de casa no bolso.
Por isto, resolvi abandonar o barco. E como é complicado passar por aquela multidão! Aquilo era um perfeito campeonato de palhaços. Todos eles querendo aparecer mais e ser mais engraçados. Alguns andavam somente de roupas íntimas, se vangloriando das horas passadas na academia, o que me levou a pensar que aquilo era uma real exposição agropecuária de homens, só faltou o leilão.
Chegando do lado de fora, havia uma total anarquia. Lá dentro tocava axé, mas do lado de fora, tocava qualquer coisa. Música eletrônica, sertaneja, funk, e.... um estranho grupo tocava ali também... Me aproximei para entender aquela cena grotesca, e entender a letra da música...
Muito me surpreendi quando descobri que eram cristãos evangélicos. Estavam tocando uma espécie de rock gospel, ou pelo menos tentando. Enquanto isto, algumas moças distribuíam panfletos. A cantora era realmente desafinada, mas tinha muito empenho. Realmente, algo que jamais esperava.
Uma das grandes críticas contra o cristianismo sem dúvida é que ele se "apoderou" das festas pagãs e as transformou em cristãs. Pelo visto, os olhares evangélicos pairam sobre a última festa pagã. E como um dia Paulo, o apóstolo, se fez de judeu para conquistar os judeus, e grego para conquistar os gregos, aqueles jovens estavam se tornando mundanos para conquistar os mundanos. Havia alguma coisa de errado nisto, e eu estava tentando definir o quê. Eu imaginei como seria se os cristãos primitivos fossem tocar harpa durante as Saturnálias, e cheguei à conclusão que ninguém teria dado atenção a eles. De fato, naquele carnaval, ninguém estava dando atenção para aqueles jovens, além deles mesmos.
O que eu entendo por cristianismo é que deveria causar uma mudança na vida das pessoas, agora as pessoas é que estão mudando o cristianismo, para continuar com a mesma vida. É uma inversão interessante de valores, talvez por isto ninguém dava atenção àquele grupo. Eles mesmos estavam demonstrando que não davam valor aos seus valores.
Mas este tipo de coisa não acontecia só ali não. Já tinha visto muitos programas evangélicos pela TV, e outras coisas do tipo. Me lembro que a palavra "profético" era proferida como um mantra. Tudo tinha que ser profético, para garantir aos ouvintes que era o próprio Deus quem estava assinando em baixo. Outra vez estava no ônibus e um grupo de 4 rapazes gritava histericamente sobre um encontrão que era tremendo... Eu estou tremendo até agora só de pensar... A fogueira santa de Israel prometia queimar o dinheiro excedente dos fiéis, e por isto tinha que ser em Israel. Quanto mais longe, mais fácil deste dinheiro se perder por aí.
Deixei aqueles jovens com seus shows, e fui embora, pensativo.
Eu sou Pedro, e certamente a minha ex-companhia não vai mais ouvir falar de mim.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Diário de um lunático - 2

20/01/2007

Olá para todos. Eu sou Pedro, já devem ter ouvido falar de mim.
Domingo passado fui obrigado a acordar mais cedo, apesar de ser domingo. À minha porta estavam duas moças muito bem vestidas, que tocaram minha campainha para me avisar que o mundo estava próximo de acabar. Bem, não é uma coisa que se ouve todos os dias, geralmente as pessoas avisam que um ladrão invadiu sua casa, ou que seu cachorro está estragando as margaridas da vizinha... Mas como aquelas damas estavam tão bem vestidas bem cedo em um domingo de manhã, achei que pelo menos elas levavam aquilo ali bem a sério.
Tivemos uma boa conversa sobre como as guerras estavam mais violentas, a fome estava mais faminta e as pestilências mais graves. Me perguntei ali por que é que damas tão distintas e educadas estavam ali fazendo o trabalho dos jornalistas criminalísticos... Eu pessoalmente achava o Gil Gomes mais divertido. Ao fim da conversa, ganhei livretos gratuitos, que achei o máximo. Não é todos os dias que a gente ganha algo. Entrei e fui ler. Leitura interessante, e que me motivou a pesquisar mais sobre aquelas pessoas. Tive muita leitura para a semana toda.
Hoje de manhã, as moças vieram novamente à minha casa. Chamam isto de revisita, já que eu parecia para elas muito interessado, disposto até a ler seus livros. Então tivemos nova conversa.
É curioso como estas pessoas basicamente fazem o papel daqueles termos de compromisso de programas do Windows. Você desce a tela toda e no final clica em aceitar. Todas elas fizeram isto, e agora saem pelas ruas oferecendo o mesmo para os outros. Uma diferença é que você depois de clicar no botão aceitar deles, não tem garantias que vai ter seu programa instalado. Tudo depende de você.
Qualquer um pode se perguntar por que a comparação. Ora, apesar deles oferecerem cursos bíblicos, e uma pessoa se tornar membro de sua igreja somente após este curso, eles basicamente não refletem muito sobre aquilo que eles estudam. Tive oportunidade de testar isto perguntando a elas por que achavam que a gente poderia comer sangue injetando-o nas veias. Me contaram uma estória sobre um senhor que injetava álcool na veia para se embriagar, talvez pensando que isto explicaria alguma coisa. Não é preciso pensar muito para concluir que tanto o álcool quanto o sangue vão passar pelo processo que todos desde o primário conhecem como digestão. O sangue nem fornece nutrientes para o sangue da pessoa.
Em certo momento, me disseram que eram politicamente neutros. São tão neutros que adotaram a posição política de não votar em ninguém. Eles fizeram melhor. O mundo hoje conta com pelo menos umas 150 nações. Eles dizem que no reino de Jesus, no entanto, haverá 144.000 reis e sacerdotes. É a maior politização do mundo já vista. Eu fiquei surpreso, pois achava que quem tinha poder de mandar uma tempestade parar conseguiria governar o mundo tranquilamente...
Um tema muito citado era da tal Babilônia a Grande. Disseram que em breve eles seriam destruídos. Me lembrei de alguns trechos dos livros deles, onde disseram que cultivavam o amor cristão. Se amor é venerar a destruição alheia, então acho que tenho que rever meus conceitos.
Bem, depois de muito conversar, elas desistiram de mim. Não estava querendo o estudo delas. Eu imaginei que era necessário muitos estudos e livros para chegar ao ponto delas, e não tinha muito tempo para isto. Afinal, é necessário muito estudo para pensar que pessoas que previram o fim do mundo para pelo menos 3 datas diferentes, ainda sejam os representantes de Deus na Terra. Aliás, é necessário muito estudo para pensar que estes erros comprovam isto...
Espero poder dormir até mais tarde no domingo que vem.
Eu sou Pedro, talvez vocês já tenham ouvido falar de mim...

Carta aos Romanos - 1

No Forum Dotgospel, estamos fazendo um estudo conjunto da carta aos Romanos, e eu vou aproveitar para colocar as minhas impressões aqui também. Acho importante, antes de mais nada, situar a carta no contexto tanto de Paulo como das pessoas a quem se destina :

Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs, Ed. Vozes e Ed. Paulus, 2002, p. 1.076:
I. A comunidade cristã de Roma nos primeiros três séculos.
Sobre o período que precede a época constantiniana, são pouco numerosas as informações exatas sobre os bispos de Roma. A documentação que foi recolhida sobretudo por Eusébio de Cesaréia, na Hist. Eccles., é bem escassa e pouco segura. Também os catálogos dos papas, compostos em vista de uma demonstração apologética da sucessão apostólica, são bastante problemáticos. O de Ireneu (Adv. Haer. III, 3,3) merece algum crédito pelos nomes que são repetidos por tradições confiáveis. A lista, porém, não nos permite estabelecer o momento em que a direção colegial da comunidade romana passou para o episcopado monárquico. Ainda mais incerta é a cronologia que Eusébio (+ 339) e, depois dele, o chamado catalogus liberianus (336 ou 354) tentaram fixar, sincronizando cada pontificado com os dados dos governos imperiais. Apesar do caráter fragmentário das informações historicamente comprovadas, pode-se aceitar que quase desde o início o cristianismo se difundiu rapidamente até a capital do império (cf. At. 2,10). A notícia histórica mais antiga sobre a presença cristã em Roma encontra-se na Vida de Cláudio (41-54), escrita por Suetônio no séc. II (Mirbt n. 3; cf. At 18,2). Contudo, não se pode considerar a comunidade romana como fundação nem de Pedro nem de Paulo, como o quer a tradição referida pela primeira vez por Ireneu (Adv. haer. III, 1,1; III, 2,3). Foi antes fundada por judeu-cristãos desconhecidos.


Bíblia do Peregrino, Ed. Paulus, anotada pelo Pe. Luís Alonso Schökel, pág. 2702:
Roma, capital de um império sem precedentes, centro de um mundo que se considerava “o mundo”. Centro de irradiação e atração. De Roma partiam exércitos para conquistar, procônsules para governar províncias, leis e correios que percorriam a rede vital de estradas e rotas. Para Roma afluíam estrangeiros de todo tipo: embaixadores, vassalos, comerciantes, fugitivos, mestres, pregadores de muitos cultos. Entre seus habitantes havia uma comunidade de judeus compacta, diferenciada e numerosa: contaram-se treze sinagogas (ou comunidades). Flávio Josefo fala de oito mil judeus adidos de uma embaixada.
Não obstante tal riqueza de informações, a origem da igreja cristã em Roma ficou às escuras. É certo que Pedro foi a Roma e aí sofreu o martírio; não tem fundamento histórico que tenha estado antes ou tenha fundado essa igreja. Então, quem foi o missionário anônimo que levou a semente cristã a Roma? A que grupo pertencia? Dado o vai-e-vem humano da capital, perderam-se seus traços.
Teria sido um judeu convertido? Lucas, com sua mente universalista, diz que entre os ouvintes de Pentecostes havia peregrinos romanos (At 2,10); o mesmo Lucas menciona um casal judeu, Áquila e Priscila (At 18,2), que se mudou para Corinto quando o edito de Cláudio expulsou os judeus (ano 49); Suetônio registra laconicamente o fato: “expulsou os judeus que, incitados por Cresto, multiplicavam seus motins”.
É uma conjetura apenas plausível que surgissem contendas entre judeus agarrados às suas tradições e judeus convertidos ao cristianismo. Pode-se citar a analogia de At 17,1-8. Podemos contar com prosélitos, ou seja, pagãos atraídos à religião e ética judaica; também entre os prosélitos se davam conversões ao evangelho; a etapa judaica lhes servia de ponte (At 13,43). Finalmente, temos de contar com pagãos convertidos. A comunidade cristã de Roma, como indica a carta, era em sua maioria de origem pagã e em parte de origem judaica. Para o judeu apóstolo dos pagãos, esse dado era muito importante.




"Bíblia Sagrada - Edição Pastoral - Ed. Paulus"
Introdução
Nada sabemos sobre a origem da comunidade cristã de Roma, nem sobre suas condições na época de Paulo. As únicas informações são as que se podem tirar desta carta. Formada talvez por cristãos vindos da Palestina e da Síria, essa comunidade logo se tornou conhecida no mundo todo. Um edito do imperador Cláudio, no ano 49, expulsou de Roma os judeus e, provavelmente, também cristãos. Priscila e Áquila, um casal judeu-cristão, vítimas dessa expulsão, foram para Corinto, onde se encontraram com Paulo (At 18,1-3), que realizava a segunda viagem missionária (50-52 d.C.). É através deles que Paulo é informado sobre a situação dos cristãos em Roma. A partir dessa época, o Apóstolo começa a fazer planos para visitá-los pessoalmente. Por ocasião da terceira viagem (57-58 d.C.), ele se encontra novamente em Corinto (At 20,1-3), e projeta ir até a Espanha. Escreve, então, a fim de preparar os cristãos de Roma para a sua tão desejada visita (Rm 15,14-29).
A carta aos Romanos parece ter uma finalidade bem precisa: os temas teológicos tratados e o debate com o judaísmo mostram que Paulo está preocupado em corrigir falsas interpretações a respeito de sua pregação entre os pagãos, provavelmente levadas a Roma por judeus e por cristãos judaizantes (Rm 16,17-18 ).
O Apóstolo expõe de maneira serena, ordenada e aprofundada, a doutrina que já havia exposto de modo polêmico na carta aos Gálatas: a gratuidade da salvação pela fé. Ele mostra que só Deus pode salvar e que ele salva não apenas os judeus, mas toda a humanidade destruída pelo pecado. E Deus salva por meio de Jesus Cristo. Ora, para que a humanidade seja salva, Deus lhe dá uma anistia geral sob uma condição: que o homem acredite em Jesus Cristo, manifestação suprema do amor de Deus aos homens, e se torne discípulo dele.
A seguir, o Espírito age dentro do homem, assim anistiado, e constrói nele uma vida nova, que destrói o pecado. Solidarizando-se com Jesus Cristo, princípio da nova humanidade (novo Adão), a humanidade pode recomeçar seu caminho e salvar-se.
Paulo quer mostrar aos judeu-cristãos de Roma e a nós que nenhuma lei pode salvar, por melhor que seja, nem mesmo a judaica, pois não consegue destruir o pecado; ao contrário, ela até alimenta o pecado. Somente a fé que temos em Jesus Cristo é que nos insere no âmbito da graça e nos possibilita construir, no Espírito, a humanidade nova.



Primeiramente, eu já li isto em algum lugar, e compartilho da opinião de algumas pessoas de que, se toda a Bíblia tivesse se perdido e só sobrasse a Carta ao Romanos, mesmo assim o cristianismo continuaria vivo e forte.

Com relação aos três primeiros capítulos, especificamente, o que eu acho importante destacar é que, às vezes, a subdivisão dos livros da Bíblia em capítulos e versículos faz com que a gente perca boa parte do significado que os escritores quiseram dar ao texto. Assim, por exemplo, o capítulo 1 de Romanos, na minha opinião, deveria terminar no primeiro versículo do cap. 2, e não no verso 32, como termina. Após descrever toda a devassidão do homem, e a maneira como Deus se revela na natureza e nos corações dos homens, mesmo os gentios, Paulo termina este raciocínio dizendo:

Rom 2:1 Portanto, és inescusável, ó homem, qualquer que sejas, quando julgas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu que julgas, praticas o mesmo.

Assim, imaginamos que o que está escrito em Romanos 1 diz respeito única e exclusivamente aos outros, aos que não conhecem a Cristo, aos que não fizeram parte do pacto com os judeus, quando, na verdade, Paulo está nos condenando a todos nós, indistintamente, como indesculpáveis diante de Deus, pelo que não devemos nos preocupar em julgar e condenar ninguém, mas cuidar da nossa relação única e especial com Deus, raciocínio que ele leva magistralmente durante toda a carta a Romanos, mas dá especial ênfase no capítulo 3, dizendo que "não há justo, nem um sequer" (v. 9) e "todos pecaram e carecem da glória de Deus" (v. 23), já preparando o terreno para a graça de Deus, "sendo justificados gratuitamente por sua graça" (v. 24), "mediante a fé" (v. 25), tema que desenvolverá ainda mais nos capítulos seguintes, no 5 em particular.

Outro dado interessante é que no capítulo 1, Paulo fala da depravação dos homens na terceira pessoa ("eles"), e no capítulo 2 passa a dirigir-se na segunda pessoa ("tu"). A Bíblia de Genebra diz o seguinte sobre essa mudança de perspectiva de Paulo:

Naquilo que se segue, Paulo volta-se para um representante imaginário de um grupo real e identificável de pessoas. Embora ele tenha mencionado especificamente os judeus apenas no v. 17, provavelmente ele já os tivesse em mente. Eles concordam com a declaração paulina sobre a ira de Deus, mas supõem-se a salvo dessa ira (o que explica a severa advertência do apóstolo no v. 5). Mas a natureza dessa presunção, se não em sua forma específica, não se limita aos judeus. Neste contexto, Paulo firma os princípios do julgamento divino que todos os seres humanos terão que enfrentar. Esse julgamento está baseado sobre a verdade (v. 2) e será marcado pela retidão (v. 5). Será de conformidade com as obras de cada um (v. 6), imparcial em sua natureza (v. 11) e executado por meio de Cristo (v. 16). Esse julgamento divino trará uma agonizante ruína a todos os pecadores.
Nesta perspectiva, me parece que a grande conclusão do capítulo 1que está no v. 3 do capítulo 2, ou seja, "tu, ó homem, que condenas os que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?". Talvez os leitores de Paulo pensassem, ao ler ou ouvir o 1º capítulo, que ele se dirigiria genericamente aos outros, àqueles que não tinham um passado judeu, ou que haviam se convertido a Cristo, mas eles são surpreendidos por esta transição abrupta do "eles" para o "tu", acompanhada de uma condenação explícita, ou seja, não havia nenhuma diferença entre "tu" e "eles", "nós" e "vós", mas todos são igualmente pecadores, raciocínio que ele levará ao ápice no capítulo 3. Paulo deixa claro que, "para com Deus não há acepção de pessoas" (2:11). A Lei judaica era apenas um parâmetro para o julgamento daqueles que a conheciam, mas Paulo também alerta que os gentios, que não haviam conhecido a lei, se procedessem, por livre e espontânea vontade de acordo com a lei, seriam justificados segundo "a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se, no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens" (2:15-16). Caem por terra, portanto, os argumentos daqueles que se vangloriam de sua ascendência judaica (vv. 17- 27), bem como algumas idéias gnósticas como as dos mórmons, que julgam que os mortos que não ouviram o evangelho ou desconheceram a lei, poderiam ser batizados por procuração. Paulo conclui, portanto, o capítulo 2 afirmando que "não é judeu quem o é apenas exteriormente... porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus" (2:27-28).

E é dentro deste espírito que o capítulo 3 de Romanos começa com as tradicionais perguntas de Paulo, um processo que lembra a maiêutica socrática, em que ele vai, por assim dizer, "definhando" o seu raciocínio de maneira que não lhe sobrem quaisquer objeções. Assim, o povo judeu havia, de fato, sido privilegiado por lhe terem sido "confiados os oráculos de Deus" (3:3), mas isso, em si mesmo, não significava nenhum tipo de ascendência ou exclusividade sobre os outros agrupamentos humanos. Paulo ainda pergunta se não seria melhor praticar atos de injustiça para que, por meio disso, a misericórdia de Deus se manifeste (3:5-8), já adiantando a resposta ("Certo que não!"), mas que ele responderá de maneira mais abrangente nos primeiros versículos do capítulo 6 (vv. 1-2), concluindo em 6:15, "havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça? De modo nenhum!". Deus haverá de julgar o mundo (3:6-8), e ninguém pode dizer que tem vantagem sobre o outro, já que "não há justo, nem um sequer" (3:11). Daí a carta prossegue dizendo que todos se extraviaram e se fizeram inúteis (v. 12), e "todos pecaram e carecem da glória de Deus" (v. 23). Já que "ninguém será justificado diante dele por obras da lei" (v. 20), somos "justificados gratuitamente por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus" (v. 24). Qual é o critério, então, para o julgamento de judeus e gentios, circuncisos e incircuncisos? Um só: a fé (v. 30). Afirmar a fé anula a lei? Certamente que não, diz Paulo, mas afirmar a fé confirma a lei, raciocínio que ele desenvolverá nos capítulos seguintes.
OBS.: O Gustavo fez um estudo mais detalhado sobre os 3 primeiros capítulos de Romanos. Para acessá-los, clique nos links abaixo:

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Diário de um lunático - 1

13/01/2007

Olá para todos... Sou o Pedro, vão ouvir muito falar de mim.
Me perdoem a falta de jeito ao escrever, não tenho este costume. Mas resolvi registrar alguns de meus pensamentos, para que depois eu ou você mesmo possa avaliar se sou ou não sou, o que me definiram: um lunático. Isto aconteceu quando meu colega de faculdade, Jaime, descobriu que eu era, de alguma forma, ateu. Ele me disse então:
- Muito bem! É bom mesmo não estar ligado a dogmas e misticismo.
Olhei para ele com uma cara reprovadora, e disse:
-Ué, por que "Muito bem"? Você que é ateu não deveria achar isto bom, na verdade, não deveria achar nada...
Foi então que iniciou a conversa onde fui chamado de louco, lunático... Mas a questão para mim era simples demais, ele devia ter entendido. Afinal de contas, por que ele tem que achar algo que eu decidi para mim mesmo, bom ou ruim?
Navegando pela internet, encontrei cenas das mais grotescas também. Ateus se reunindo em grupos para discutir o ateísmo, e trocar informações. Pareciam até uma alegre igreja cristã, se reunindo para discutir a Bíblia. Todos eles possuíam os seus gurus, que escreviam grandes best-sellers ensinando como ser um ateu. A doutrina ensinada é a doutrina do conhecimento científico. Não entendam mal, a ciência nunca pediu para ser tratada como uma religião. Mas o fato é que alguns ateus são mais religiosos que muitos religiosos, abandonam a religião mas continuam com o velho costume de discutir doutrinas e seguir pastores. Assim eles transformam aquilo que foi descoberto para transformar a sociedade em algo melhor para transformar a sociedade em uma segregação melhor. A ciência que nunca se propôs a estudar o mundo dos místicos (já existem muitas religiões fazendo isto), acaba sendo colocada na argumentação contra o teísmo pelos próprios ateus. É claro, muitos religiosos não conseguem entender nem a própria religião, acabam achando que ciência é a mesma coisa que budismo. Aí, eles atacam é a ciência, pobre coitada. Aí aquele ateu que primeiro confundiu ciência com religião (por mais que negue isto, ele confunde sim, ele a usa como religião) espertamente cita as maravilhas científicas da atualidade, sem as quais o religioso não viveria... Claro, o fato de eu estar digitando este texto em um blog na internet prova que Deus não existe!
Então, depois de tudo isto, percebi que o ateísmo atual na verdade é mais uma religião, a religião do conhecimento científico. Nem todos os ateus são assim, fico feliz de haver ateus sinceros, que sinceramente não ligam para nada disto nem ninguém. Infelizmente a grande maioria deles está presa, já que é preciso ser muito ateu ou muito louco para atropelar a consciência moral (que só para o ateu que não existe), e cometer os vários crimes que levam as pessoas às cadeias. Se vocês perceberam, não sou dogmático, e principalmente, sou ecumênico. A maioria dos ateus que promovem seus encontros em sites de internet e sociedades (tem algo mais religioso do que uma sociedade?) vai dizer que estes não são ateus. Claro que não, parece que é um dogma no ateísmo atual, o fato de que um ateu tem que conhecer bastante sobre matérias acadêmicas, principalmente Biologia e Física (mais precisamente sobre Evolução e Big Bang, para responder aos crentes). É difícil ser um ateu pobre hoje em dia. E o pior de tudo, é que estes ateus que se vangloriam de ser muito racionais acham que os ladrões são religiosos, quando toda religião que eu conheço deve condenar o roubo. E como eu disse antes, estes ateus são mais sinceros, eles não ligam para nada nem ninguém. Eles não se envergonham de dizer que acreditam em Jesus ou em Confúcio, isto não deve significar nada para eles, e também não ligam para as pessoas que os condenam por se dizerem religiosos e cometerem tais crimes.
Em suma, fiquei meio apreensivo por adotar o título de ateu, exatamente por que o ateu hoje me parece religioso demais. Nem o título cético serve. Uma vez provaram que o ceticismo é auto-contraditório. Além disto, o cético não é tão cético assim. Os escritos de Darwin despertam mais ceticismo nos crentes do que nos próprios céticos. A verdade é que os céticos são céticos somente em questão de religião, nos outros assuntos são pessoas normais (ou não) como qualquer outra. O que é uma total falta de ceticismo, já que eles estão escolhendo em que áreas eles são céticos. Quando eles escrevem que a Evolução foi provada, me vem à cabeça quantas e quais perguntas eles se fizeram antes de aceitar isto como fato, e se algum dia eles comprovaram isto pessoalmente. Nada me tira da cabeça que a resposta é nula. Será que eles comprovaram que são elétrons mesmo que fluem por um condutor para que nós tenhamos luz à noite?
E aí volto a meu amigo Jaime, que ficou boquiaberto por perguntar a ele por que ele deveria achar alguma coisa sobre mim. Por que no fundo, ele compartilha aquele sentimento religiosamente peculiar de comunhão, que foi influenciado no ateísmo pelas religiões.
Eu não sou assim. Eu sou Pedro. Não digo que seja um grande prazer em te conhecer, pois não sei se o fato de te conhecer será útil para mim. Mas certamente você ouvirá falar de mim.

O evangelho de Lucas - parte 2

David Alan Black¹, no livro "Por que 4 Evangelhos?" (Ed. Vida, 2004, pp. 23-34), tem algumas idéias bastante interessantes sobre os motivos que levaram Lucas a escrever seu evangelho. Tentarei resumir aqui.

A primeira geração de cristãos bebeu diretamente na fonte dos apóstolos, que se encarregavam pessoalmente da pregação do evangelho, mas também sofriam intensa perseguição das autoridades romanas e judaicas, além do cuidado natural com as igrejas. Não havia, portanto, condições de se escrever algo que pudesse instruir, discipular e confortar os irmãos, até porque a igreja podia se reunir hoje num lugar e amanhã já estava fugindo pelas estradas poeirentas da Palestina. Neste sentido, a dispersão dos cristãos, especialmente para Antioquia, fez com que muitos pagãos se convertessem. Pedro e os apóstolos, em geral, estavam mais preocupados em apaziguar os judeus do que pregar o evangelho aos gentios. Se tentarmos colocar-nos em seu lugar, é bem capaz que a gente pensasse isso também. A coisa estava feia. Enviaram, então, Barnabé a Antioquia, e este pediu o auxílio de Paulo. No ano 45, houve uma grande fome em Jerusalém, e os dois retornaram a Jerusalém com doações dos irmãos antioquinos (Atos 11:25-30 e 12:24-25). Aí houve o encontro entre Paulo, Pedro, Tiago e João (Gálatas 2:1-10), em que as bases iniciais para a pregação aos gentios foram estabelecidas.

Paulo, então, iniciou a sua primeira viagem missionária, tendo obtido um sucesso estrondoso na sua pregação, o que o obrigou a retornar a Jerusalém para o primeiro concílio (Atos 15) que decidiu sobre a liberdade dos gentios. Mais ou menos nessa época, o evangelho de Mateus começou a circular, e conforme Paulo viajava, sentia cada vez mais a necessidade de um evangelho escrito que atingisse não só os judeus, mas toda a variedade de povos e nações que ele havia visitado e onde havia implantado igrejas que necessitavam de discipulado. Para tanto, Paulo precisava produzir uma versão mais abrangente do evangelho, e certificar-se de que Pedro e os demais apóstolos a aprovariam. Assim, antes de terminar a terceira viagem missionária, Paulo teria escolhido Lucas, que se juntou a ele nos últimos estágios de sua volta a Jerusalém (Atos 21). Durante os dois anos seguintes, Paulo se envolveu em uma série de disputas com os judeus e ficou preso o tempo suficiente para que Lucas conhecesse os apóstolos e discípulos remanescentes, e fosse recolhendo material para compor o evangelho. Assim, pôde entrevistar muitas pessoas que haviam estado com o próprio Jesus 20 anos antes, mas sempre teve em mente o seu papel de "ponte" entre o contexto judeu e o mundo helênico, a quem dirigiria, preferencialmente, o texto que estava produzindo. David Black acredita que, nesse período, Lucas extraiu os primeiros capítulos, direta ou indiretamente, da própria Maria ou de pessoas que lhe seriam muito próximas, de quem teria obtido os detalhes pré-advento, que só existem no seu evangelho. Isto serviria também para compor uma espécie de "épico", a narrativa de um herói bom demais para este mundo, punido injustamente, e que ainda assim salvaria e regeneraria as pessoas mesmo após sua passagem por este planeta.

Quando Paulo foi enviado a Roma, Lucas foi junto, mas ainda não havia publicado o seu evangelho. Como ambos não haviam conhecido Jesus pessoalmente, o que eles estavam produzindo poderia ser considerado um relato de segunda mão em todos os sentidos da expressão, e, por isso, eles teriam aproveitado a chegada a Roma, no ano 61 ou 62, para obter a chancela apostólica de Pedro, que já estaria lá, garantindo assim que o seu trabalho fosse endossado por uma testemunha ocular apostólica. Além de ser versado no evangelho de Mateus, Pedro já tinha consigo, também, o evangelho de Marcos, que havia sido seu companheiro de viagem e de trabalho, e, a seu pedido, Marcos lhe preparara o evangelho, que Pedro lhe transmitira oralmente, a fim de organizar a sua pregação em Roma. Esta seria uma das razões para o fato do livro de Marcos ser o menos extenso dos evangelhos, já que teria servido como uma espécie de guia para a pregação de Pedro. Dizem que, por esta razão mesmo, nem Pedro nem os pais da igreja consideravam o relato de Marcos propriamente um evangelho, mas uma espécie de roteiro - de fácil manuseio e transporte - para uma série de pregações ou discursos. Pedro já dispunha dos rolos do evangelho de Mateus, e agora, de posse do evangelho de Lucas, teria pedido ao próprio Marcos que o ajudasse a "ajustar" a pregação dos três evangelistas, e Marcos dividiu-os em cinco discursos (didaskalias), cuja duração variava de 25 a 40 minutos, intercalando os evangelhos para facilitar o manuseio dos rolos. Pedro não tinha dúvidas de que o evangelho de Mateus já tinha ampla circulação e aceitação, mas a aprovação pública ao relato de Lucas animou-o a autorizar a sua publicação. Marcos ficou, portanto, com o terceiro evangelho em popularidade, e talvez nem tenha sido sua intenção pessoal (nem de Pedro) que integrasse o cânon, mas ele só vai se firmar como evangelho realmente por ocasião da oficialização do cânon neotestamentário, no fim do século IV, sendo que apenas no século seguinte há registro de um comentário a seu respeito. Assim, Lucas passa a ter uma espécie de aprovação oficial do cristianismo, embora, na sua origem tenha sido, na verdade, um evangelho de Paulo.


(1) Para outra análise do livro de David Black, recomendo o comentário do meu amigo e irmão Vítor Grando, no blog Despertai, Bereanos!

O evangelho de Lucas - parte 1

Estamos estudando o Evangelho de Lucas no Forum Atos, e, fazendo as minhas pesquisas, tenho lido bastante coisa interessante que eu vou transcrever aqui também, começando pela introdução, falando da autoria, da cronologia, das fontes e do estilo literário do evangelho de Lucas. Entretanto, é necessário lembrar um primeiro dado que geralmente se nos escapa, que é o fato de que, inicialmente, os relatos da vida de Jesus se propagaram oralmente, através dos Apóstolos e daqueles que lhes foram mais próximos. Chegou um momento em que foi necessário relatá-los por escrito. Existe muita controvérsia sobre a cronologia dos dois evangelhos, Mateus e Marcos, sendo que é pacífico que João tenha sido o último, e quase pacífico que Lucas tenha sido o terceiro. Com relação aos dois primeiros, existe uma tendência moderna de que se baseiem, ambos, num escrito anterior, chamado de "fonte Q", mas também é controverso, havendo quem advogue a existência de dois proto-evangelhos que desapareceram até a formação do cânon.

Retomando o tema de Lucas, praticamente não há dúvidas de que, em virtude do estilo literário comum a ambos e do fato de terem o mesmo destinatário, Teófilo ("aquele que ama a Deus", em grego), o evangelho de Lucas é considerado como um conjunto com o livro de Atos dos Apóstolos, sendo que este último livro, logo no primeiro versículo, fala da existência de um "primeiro tratado". Muito provavelmente, ainda que Teófilo possa ser um apelido, se tratava de uma pessoa real, alguém de alta posição no império romano, com recursos suficientes para patrocinar o escritor, o que era algo relativamente comum à época (inclusive a dedicatória ao patrocinador).

Pouco se sabe a respeito da biografia de Lucas. Aproveitando-se disso, a escritora americana Taylor Caldwell fez uma versão romanceada de sua vida, intitulada "O Médico de Homens e de Almas", que teve relativo êxito. Entretanto, a tradição mais aceita dá conta de que era sírio, nascido gentio em Antioquia (há quem diga que ele era filipense), muito bem educado na cultura grega, e que, como Paulo afirma em Colossenses 4:14, era médico. Sua ligação com Paulo (que o chama de "cooperador" em Filemon, v. 24), parece ter sido decisiva para que conhecesse os outros apóstolos e vultos principais do cristianismo primitivo. Há alguns autores que afirmam que ele teria sido um dos setenta e dois discípulos enviados a pregar o evangelho (Lucas 10), mas não há maiores evidências de que ele tenha conhecido Jesus pessoalmente, ou tenha sido testemunha ocular de muitos dos fatos por ele narrados no livro em questão. Tudo indica que tenha sido companheiro de viagens de Paulo, mas não se acredita que tenha se convertido pelo ministério do apóstolo. Afinal, em Atos, relatando os acontecimentos que envolviam o apóstolo, várias vezes ele utiliza o pronome "nós" (16:10-17; 20:5-15; 21:1-18; 27:1-28:16). Termina o livro de Atos em Roma, com Paulo, antes da execução deste último, e antes também, da destruição do templo em Jerusalém, no ano 70. A maioria dos estudiosos entende, comparando as evidências internas de Lucas e Atos e sua correspondência com os fatos históricos e as cartas de Paulo, que a data mais provável para o Evangelho de Lucas é o começo da década de 60.

O estilo de Lucas é cativante. Tem, sem dúvida, uma cultura grega muito bem formada, daí seu desejo de colocar em ordem os fatos da vida de Jesus (cfe. Lucas 1:3). Talvez por ser médico, gosta particularmente dos detalhes, de dizer que a mulher tinha hemorragia havia 12 anos e tinha gasto todo seu dinheiro com médicos (Lucas 8:43), ou ainda a mulher possessa de um espírito de enfermidade havia já 18 anos (Lucas 13:11). Procura relatar um grande número de parábolas, de maneira detalhada e inédita, como é o caso da parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-32), que consta somente do seu evangelho. Neste quesito de ineditismo das parábolas, ganha de Mateus por 15 a 11 (Marcos tem uma parábola inédita apenas, a da semente em crescimento – Mc 4:26-29). Há 7 parábolas contadas pelos três, 5 por Mateus e Lucas, e 1 por Marcos e Lucas.

O evangelho de Lucas é considerado, cronologicamente, o terceiro evangelho escrito. Conforme se depreende do primeiro versículo de sua obra ("Visto que muitos têm empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram"), é muito provável que conhecesse os escritos de Mateus e Marcos, mas procura trilhar um caminho independente. As fontes de Lucas parecem ser, principalmente, as "testemunhas oculares e servos da palavra" (1:2), embora provavelmente tivesse se aproveitado do esquema narrativo de Marcos, tendo em vista a similaridade entre alguns episódios comparados e sincronizados. Em geral, Lucas amplia a descrição dos fatos anteriormente narrados pelos dois primeiros evangelistas, já que, além do particular gosto por parábolas inéditas, se interessava também nas minúcias médicas, geográficas e históricas daquilo que relatava.

Enfim, a leitura do evangelho de Lucas mostra um autor muito interessante, que procura, digamos, ampliar a "audiência" dos evangelhos. Ainda que haja controvérsia sobre qual tenha sido o primeiro, se Mateus ou Marcos, o que parece é que Marcos seja um evangelho para "consumo interno", de uso sobretudo de Pedro, para que os novos discípulos saibam quem é o Cristo que eles estão pregando. Já Mateus dirige o seu relato muito mais aos judeus, como uma espécie de apologia do cristianismo em meio ao judaísmo. Lucas já amplia as boas novas para o mundo, aproveitando-se da língua e da cultura grega universal. Por se basearem numa espécie de sinopse da vida de Jesus, são chamado de evangelhos sinópticos. João virá depois, pouco preocupado com a narrativa histórica (a sinopse, portanto), e muito preocupado com aquilo que entende como sendo a verdade da revelação divina, o que leva a escrever um tratado teológico defendendo a divindade plena de Jesus contra o gnosticismo que ameaçava solapar as bases da nascente Igreja cristã. Eu gosto particularmente disto: embora creiamos que todos os quatro tenham sido inspirados pelo Espírito Santo para escrever os seus evangelhos, nem eles nem a Bíblia escondem os seus estilos pessoais, e as motivações que os levaram a escrevê-los.

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