segunda-feira, 21 de abril de 2008

Allons enfants de la Patrie

Em entrevista publicada na Folha de S. Paulo de ontem, 20/04/08, a historiadora Mary del Priore, ex-professora da USP, autora de 25 livros, entre os quais "História da Criança no Brasil", respondeu algumas questões sobre a enorme repercussão do caso Isabella Nardoni no país. 

Uma das razões (que a pesquisadora chama de "pequena hipótese") para a comoção nacional causada pelo assassinato é o fim dos rituais religiosos numa sociedade moderna e consumista (ver íntegra da entrevista aqui). 

Entre outras questões que são levantadas, como os altos índices de mortalidade infantil até pouco tempo atrás, e o fato de Isabella e João Hélio (outro caso que marcou o país em 2007) serem crianças de classe média, que geram maior repercussão, Mary del Priore chama a atenção para o fim dos rituais religiosos num mundo sem Deus. 

Até o século XIX, por exemplo, era muito comum que as crianças morressem, e havia todo um ritual religioso que fazia com que as pessoas arrefecessem a tragédia mediante a crença num Deus que recebia esses anjinhos no paraíso. 

No mundo moderno, não há mais espaço para Deus nem para anjos, mas ainda há resquícios de uma certa religiosidade, de um certo senso de justiça (e de injustiça), além de, por assim dizer, um instinto moral que obriga a mídia a oferecer-se como instrumento de catarse de uma indignação coletiva que não encontra mais as vias tradicionais de escape para diluir a sua dor. 

A professora identifica - nos casos de Isabella e João Hélio - uma espécie de sacrifícios que não têm mais equivalentes religiosos que permitam entendê-los e assimilá-los dentro de um sistema de crenças que facilitem a consolação dos que ficam.

Gostaria, entretanto, de ir um pouco mais além. 

Parece-me claro que a religiosidade brasileira é um fenômeno resistente até certo ponto, dentro do que a relativização da religião e dos valores morais permite, circunstância que se agrava quando a própria sociedade brasileira se desagrega e se desestrutura, sobretudo do ponto de vista político-institucional, diante da impunidade que grassa em todas as esferas de poder. 

Por muito tempo, o Legislativo aprovou leis que viam apenas o lado do criminoso, dentro da sua ótica de que a impunidade deve ser incentivada no atacado e no varejo, ou seja, já que ninguém é punido decentemente aqui embaixo, logo não exijam que eles sejam punidos lá em cima. 

Esses "desvalores" foram - em larga escala - encampados pelo Judiciário, que, não raras vezes, interpreta e aplica a lei para favorecer quem a descumpre. 

Punição é a exceção à regra da libertinagem jurídica. 

Obviamente, esta é uma visão muito mais ideológica do que seja o direito e a justiça, mas representa um retrato crível do que oferece a realidade brasileira neste aspecto. 

Logo, o clamor popular por justiça, por mais que desagrade alguns desembargadores paulistas, engloba e canaliza uma série de frustrações acalentadas por séculos de impunidade. 

Na ausência da nobreza e do clero, a mídia apenas se encarrega de jogar brioches para o povo, mas todo cuidado é pouco: algumas Bastilhas já caíram por muito menos.

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